Revista Rua


A que Tradição Pertence a Tradição Gramatical Russa
(To what tradition does the Russian grammatical tradition belong?)

Patrick Seriot

permite diferenciar homônimos (por exemplo, conservando na escrita eslava o ípsilon e o iota do grego, homófonos nas duas línguas nessa época). O objetivo dessa prática é desmascarar a heresia por meio de uma ortografia desambigüisante. A homofonia resulta freqüentemente da perda de uma antiga oposição fonológica, por exemplo entre i e y (vogal posterior) em búlgaro e em sérvio, marcada pelo emprego aleatório das duas letras nos escritos errôneos que Kostenecski denuncia. A manutenção da distinção ortográfica vai permitir em compensação manter à distância todo risco de desvio dogmático: se a seqüência edinorodnyi syn (“o Filho único engendrado pelo Pai”) apresenta a ortografia edinorodnii (antiga forma de nominativo plural), vê-se imediatamente, materialmente, aparecer a heresia nestoriana, que afirma que existem duas pessoas no Cristo (e não uma pessoa única sob duas “naturezas”, humana e divina).
Mas, talvez mais do que a ortografia (combinação de grafemas), são os signos diacríticos, quer dizer, não diretamente ligados à oralidade, que importam para Kostenecski. Assim, a escrita hebraica do nome de Deus (somente por consoantes) tinha sido repensada em Bizâncio como a expressão secreta do santo Nome. Acima do nome sem vogais escrevia-se um traço horizontal, modo de colocar a palavra em evidência. Depois, na escrita bizantina e eslava, as abreviaturas de palavras santas e o traço sobre a palavra (em eslavo: “titlo”, do grego titloz, ‘inscrição’, ‘título’) são considerados como sagrados[16]. Esse sistema de abreviatura torna-se a única escrita possível das palavras sagradas, e por conseguinte a marca visual dessa distinção. Encontra-se em numerosos manuscritos dos séculos XIV e XV que as palavras angel, apostol, arxiepiskop escritas sem abreviatura e sem titlo designam os anjos e os apóstolos de Satã. A palavra Deus sob o titlo ( ) só pode designar o Deus cristão, mas escrita com todas as letras ( ) ela permite colocar à distância visualmente os deuses pagãos.
Trata-se do momento mais intenso da fé na letra: depois de Kostenecski, ninguém escreveu de modo tão apaixonado, ameaçou tanto de anátema os “faltosos” ou “pecadores da escrita” (pogrešajušcie) nem profetizou aos apóstatas que eles queimariam nas chamas do Inferno.
Na mesma época, no Ocidente, a gramática, ocupando-se do sermo congruus, começava a se separar da lógica, que visava ao sermo verus. Kostenecski não se situa


[16] No entanto, aí novamente é preciso desconfiar de uma interpretação geografista da cultura: para a tradição latina cristã antiga encontra-se também freqüentemente a idéia de que Nomen Dei non potest litteris explicari.