Revista Rua


A que Tradição Pertence a Tradição Gramatical Russa
(To what tradition does the Russian grammatical tradition belong?)

Patrick Seriot

A história das idéias gramaticais pode trazer elementos para uma resposta a essa interrogação.
 
A “QUESTÃO DA LÍNGUA” NA EUROPA ORIENTAL
 
Nem ruptura nem continuidade, categorias antitéticas mas simples demais, que não permitem dar conta dos problemas que a noção de “tradição gramatical russa” coloca. Há passagens de uma tradição a outra, ou seus limites são hermeticamente fechados? Os riscos de aporia são grandes. É por isso que parece razoável falar de “pensamento gramatical na Rússia” ao invés de “tradição russa”.
Ressaltemos de início o lugar limitado que a reflexão gramatical bizantina ocupa na historiografia européia da lingüística medieval[9]. Teria havido em Bizâncio uma “falta da Europa”[10]?
O que se chama em francês “o grande Cisma do oriente” e em russo “a separação das igrejas” (1054) é a data oficial de uma ruptura espacial. Esse recorte no espaço, no entanto, somente mascarava um acontecimento muito mais importante, a ruptura temporal que representou o fechamento da Escola de Atenas em 529 pelo imperador Justiniano.É nesse contexto ideológico profundamente abalado pelo cristianismo que nasce na Europa oriental a “questão da língua”, de que vamos expor agora os traços principais, e que forma o quadro de análise gramatical nos países eslavos ortodoxos.
O mundo intelectual bizantino parece ter uma abordagem dupla da herança grega clássica. De um lado, uma atitude conservadora: as descrições e análises dos gramáticos eram essencialmente comentários de textos clássicos a preservar e a imitar (cf. ROBINS, 1976: 46). De outro lado, como vimos, uma ruptura ocorreu com a rejeição da sabedoria pagã pelo pensamento cristão.
A situação é diferente nos países eslavos. Entrando no mundo cristão, os eslavos herdavam uma disputa que não era sua, mas eles desempenharam aí um papel muito ativo. É importante compreender a evolução das idéias gramaticais no mundo eslavo


[9] Cf., no entanto, ROBINS, 1993.
[10] “Vista do Oeste”, a cultura bizantina suscita por vezes comentários pouco amenos: “Se a Europa é filha da Grécia antiga, a Rússia seria antes de Bizâncio, quer dizer, de uma Grécia contaminada pelas práticas persas do despotismo oriental, e até mesmo do césaro-papismo” (BRETON, 1991: 104, tradução nossa). O mesmo autor lembra que a cultura bizantina era considerada como “oriental” pelos Ocidentais (ibid.: 15). “Visto de Bizâncio”, ao contrário, a passagem das Cruzadas ocidentais pilando Constantinopla em 1204 deixou a impressão geral de hordas bárbaras atacando o último bastião da civilização...