Revista Rua


A que Tradição Pertence a Tradição Gramatical Russa
(To what tradition does the Russian grammatical tradition belong?)

Patrick Seriot

Robins (1976: 72) nota que “nas instituições dominadas pelos clérigos cristãos, a literatura clássica da Antiguidade, que tinha o defeito de ser pagã, é tida como suspeita e alguns se mostram abertamente hostis a esses autores e à língua na qual eles escreveram, porque ela se opõe ao latim recente, mais familiar, da Vulgata e do ritual da Igreja. O Papa Gregório, o Grande (590-610), fez parte de seu menosprezo pelas regras de Donato, aplicadas à língua de inspiração divina.       
A questão é ideológica: a gramática age enquanto matriz, ou modelo: como todo modelo, ela permite produzir textos impregnados de um sentido novo, inclusive textos errados por seu conteúdo teológico. É sobre essa base que na Idade Média no Ocidente também se havia podido associar a gramática latina ao Demônio, porque ela ensina a possibilidade de declinar a palavra Deus no plural. Pierre Damian (1007-1072) comenta no De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda a passagem do Gênese (III) onde a serpente diz a Adão e Eva: “Deus sabe que o dia em que vós comerdes disso, vossos olhos se abrirão e vós sereis como Deuses,  que conhecem o Bem e o Mal”. Damian extrai disso uma conclusão sobre as conseqüências negativas do ensino da gramática:
 
“Ecce, frater, vis grammaticam discere? disce Deum pluraliter declinare. Artifex enim doctor, dum artem obœdientiæ noviter condit, ad colendos etiam plurimos deos inauditam mundo declinationis regulam introducit” (J.P. Migne: Patrologiae cursus completus. Series latina, Paris, 1844-64, PL. CXLV, col. 695, citado por Uspenskij, 1994a: 16, n.41) [Assim, irmão, você quer aprender a gramática? Aprende então a declinar Deus no plural. O hábil professor, com efeito, estabelecendo em novos termos sua arte da obediência, introduz uma regra de declinação da qual o mundo nunca tinha ouvido falar, que honra numerosos deuses.]
 
CONCLUSÃO
 
Como em todos os países europeus, a atividade de gramatização na Rússia é intensa (de início rutena e depois moscovita). Contudo, isso não autoriza a falar de tradição gramatical russa separada. A afirmação local da existência dessa tradição, pela intensidade mesma de seu caráter encantatório, não é suficiente para trazer a prova de sua existência. Os debates a propósito da oposição entre Fé e Razão, que tomam a gramática como questão, são certamente importantes, e seria necessário mostrar como a gramática se encontra no centro de controvérsias teológicas acirradas na Idade Média e na Renascença na Europa Oriental. Mas o essencial de nossa conclusão sem dúvida não