Revista Rua


A que Tradição Pertence a Tradição Gramatical Russa
(To what tradition does the Russian grammatical tradition belong?)

Patrick Seriot

Depois de o trabalho de M. Foucault ter sistematicamente questionado o termo tradição[8], podemos nos surpreender que ele tenha ainda direito de cidadania na história da lingüística, ao menos de um modo não teorizado, fazendo apelo à evidência. Ora, quando Foucault rompia com os objetos incertos da “história das idéias”, ele não imaginava sem dúvida que se pudesse manipular sem precaução a noção de tradição para designar conjuntos culturais separados uns dos outros, modos culturalmente determinados de trabalhar o objeto da lingüística. Assim, G. Mounin (1972: 149) faz apelo, sem lhe dar uma definição, a uma “tradição profunda do pensamento russo”, assim como J.-C. Milner opõe “nossa tradição” à dos lingüistas russos (1982: 334).
Uma interpretação culturalista semelhante dos procedimentos na lingüística não seria, afinal, tão chocante se não fosse essa ausência total de definição dos objetos que se manipulam, esse apelo amortecido à evidência, à intuição. Se existe uma “tradição ocidental” em lingüística, um “pensamento ocidental”, como diz, por exemplo, a Enciclopédia filosófica universal (P.U.F., 1989), então se coloca uma questão que raramente é colocada nesses termos, “aqui”, no Ocidente: o“pensamento russo” faz parte dela, como pensam os ocidentalistas russos? Ou representa um “mundo” à parte no movimento das ciências na Europa, como o afirmam os eslavófilos?
Trata-se então de um pensamento às margens da Europa, ou de uma outra Europa? Será que houve uma “secessão oriental da civilização européia” (BRETON, 1991: 107), ou duas civilizações diferentes? De fato, é talvez ao século XVI que seria preciso remontar, a esses primeiros estremecimentos daquilo que se tornará depois de 1504 a oposição irredutível de duas leituras da cristandade, a “ocidental” e a “oriental”, duas variantes de uma mesma cultura, duas “redações” de uma mesma tradição: a bizantina e a latina. Dois “mundos” dos quais se pode, conforme seus desejos ou a tese que se vai defender, ressaltar as semelhanças profundas ou ao contrário sublinhar as divergências intransponíveis. Dois mundos religiosos, mas também filosóficos, artísticos, científicos, unidos por uma relação de atração e de repulsa.


[8] “Há, em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da continuidade. Elas, sem dúvida, não têm uma estrutura conceitual bastante rigorosa; mas sua função é precisa. Assim é a noção de tradição: ela visa dar uma importância temporal singular a um conjunto de fenômenos, ao mesmo tempo sucessivos e idênticos (ou, pelo menos, análogos); permite repensar a dispersão da história na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da origem; graças a ela, as novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência, e seu mérito transferido para a originalidade, o gênio, a decisão própria dos indivíduos. O mesmo ocorre com a noção de influência (FOUCAULT, 2000: 31-32).