Revista Rua


A que Tradição Pertence a Tradição Gramatical Russa
(To what tradition does the Russian grammatical tradition belong?)

Patrick Seriot

As fortes tensões ideológicas em torno das lutas religiosas culminam na Rússia moscovita no final do século XV – início do século XVI. Na região de Pskov-Novgorod, próxima à fronteira do Grande Ducado da Lituânia, alguns “heréticos” se opunham à religião oficial. Conservando os vestígios deformados de representações pagãs, seus escritos apresentam um sincretismo de diferentes seitas religiosas russas do século XIV, dos Reformadores da Europa Ocidental e dos bogomilos[22] eslavos do sul. Suas idéias heréticas os fazem se interessar pelas questões científicas, dentre as quais as questões de gramática e de língua ocupam um lugar não negligenciável. O texto fundamental desse movimento é o “Epître de Laodicée”, do pregador Fedor Kuricyn, herético moscovita. Trata-se de um texto codificado, escrito depois de seu retorno da Europa (em uma embaixada de Ivan III, no final do século XV). O texto contém tabelas gramaticais com indicações lexicais, gráficas e, sobretudo, fonéticas. A proposta desse texto é próxima das idéias da Reforma opostas à “tradição” e prega uma leitura pessoal dos textos da Escritura Santa, valorizando o papel do saber, que “traz ao homem a felicidade” (citado por KOLESOV, 1991: 215).
            O princípio de classificação fonética nas obras dos heréticos de Pskov-Novgorod é fundamentalmente binário, e lembra as oposições privativas: vogal/consoante, masculino/não masculino, plural/não plural. Encontramo-nos diante de um sistema de pensamento em oposição à fascinação da ortografia em Kostenecski: é o som “vivo” que se torna objeto de atenção.
            “O sentido está contido na união da carne e da alma com a energia”, quer dizer, na união da consoante com a vogal, que toma vida na pronúncia. Passando assim da letra ao som, chega-se à idéia de que o sentido somente se torna efetivo quando o texto se torna vivo, quer dizer, pronunciado em voz alta.
            A maioria dos Reformadores do século XV-XVI na Europa foram ao mesmo tempo autores de tratados gramaticais. Para eles era fundamental a tradução da Escritura nas línguas vernaculares contemporâneas. Encontra-se a mesma perspectiva na Rússia em Ivan Kuricyn, que conclamava a “escrever os livros divinos de modo fluido e sem ornamentos” (prjamo i gladko) (citado por KOLESOV, 1991: 216). Um dos temas de reivindicação mais correntes entre os reformadores-heréticos russos dessa época era a eliminação do eslavo, envelhecido, transformado em obstáculo ao conhecimento de Deus e não mais considerado a única língua digna. Trata-se de uma inversão radical da


[22] Sobre os bogomilos e as heresias maniqueístas entre os eslavos dos Bálcãs, cf. Bozoky, 2003.