Revista Rua


A que Tradição Pertence a Tradição Gramatical Russa
(To what tradition does the Russian grammatical tradition belong?)

Patrick Seriot

a forma de uma questão retórica: “vale mais estudar a gramática e a retórica ou, sem aprender todos esses artifícios, viver uma vida simples que agrade a Deus?”[25] Nesse sistema de valores, é bem evidente que a gramática, assim como a retórica, era assimilada a um “artifício do espírito”, porque inútil à Saúde do homem. O que é oposto é uma outra “sabedoria”, considerada como superior, herdada dos Padres da Igreja Oriental, ascética e monástica, que se pode chamar “greco-oriental”, por diferença ao universo intelectual grego clássico do século V a.C.. Essa sabedoria bizantina afirma a primazia da fé sobre o conhecimento, da integridade espiritual e da pureza sobre os “artifícios intelectuais”. O ensino é rejeitado em seu princípio, por causa de sua inutilidade à saúde, pois a humildade é mais importante que um grande conhecimento e que a “soberba” do sábio, e lhe é superior.
            Diante do “perigo” que constituía a seus olhos a abordagem ocidental, “latina”, quer dizer, racionalista, intelectual demais, da teologia, os letrados eslavos ortodoxos ocuparam uma posição de defesa, o que os impulsionou a formular os princípios essenciais de sua oposição à cultura que eles chamavam “ocidental”.
            Compreende-se então a oposição do princípe Kurbskij (1528-1583), emigrado para a Lituânia na época de Ivan, o Terrível, ao abandono do texto eslavo da Bíblia, e sua recusa da tradução dele para a língua vernácula, assim como sua recusa da gramática, que opõe os silogismos artificiais dos filósofos pagãos à verdade evangélica. A gramática para ele é: 1) uma invenção ocidental, portanto ímpia (a Grécia clássica, porque pagã, é assimilada ao “Ocidente”) e 2) inútil para a Saúde.
            B. Uspenskij lembra a esse respeito (1994: 14) que as pessoas que polemizavam contra a gramática e a retórica não eram obscurantistas, elas poderiam ser muito eruditas. Elas sustentavam uma posição ideológica determinada. Pode-se encontrar semelhante posição nos Padres da Igreja, mas se trata então da luta contra o paganismo. Essa polêmica não concerne mais à Rússia do século XVI e XVII: nesse outro contexto cultural a polêmica se deslocou em direção ao latinismo”.[26]
 
            Mas, ainda uma vez, esse conflito teológico que envolve a gramática é uma situação específica da Rússia?


[25] Extraído de um tratado escrito por Eufêmio, monge de um monastério em Cudovo no final do século XVII, citado por Florovskij (1937: 174).
[26] É preciso salientar que a luta contra o latim enquanto língua da Igreja se reencontra nos ataques contra a gramática, também na mesma época, em textos da Reforma na Polônia.