Revista Rua


A que Tradição Pertence a Tradição Gramatical Russa
(To what tradition does the Russian grammatical tradition belong?)

Patrick Seriot

relação com a língua em relação ao hesicasmo palamita. Um outro tema era a valorização do aprendizado da leitura e da escrita, indispensável à saúde:
 
“Saber ler e escrever é necessário à instrução e à saúde do homem”.
       (ibid.)
 
            É assim que os heréticos em 1483 traduzem do hebreu a Lógica de Maïmonide, conhecida como “Lógica dos judaisantes”. Encontra-se aí um programa detalhado dos reformadores, que faz apelo ao livre desenvolvimento da ciência[23]. Nesse programa é dito que “aquele que é tolo não poder estar ao lado de Deus” (citado por KOLESOV, 1991: 218). A “Lógica” é construída a partir de materiais gramaticais, os exemplos são traduzidos em uma forma híbrida de eslavo e de russo vernacular. Observamos aí os tipos de unidades lexicais (sinônimos, antônimos, homônimos etc.). Numerosas notações lingüísticas organizam o texto, sobretudo a propósito da teoria da proposição, já que é pela fala que se conhece tudo. É assim estudado o problema do juízo e de seus tipos, e aparece a teoria completamente revolucionária, na época, da oposição entre as categorias do real e do possível[24].
                Mas os heréticos russos elaboram igualmente um sistema de terminologia fonética, de classificação dos sons, e descrevem as bases fisiológicas da fonação.
            A implacável repressão contra os heréticos a partir de 1503 colocou fim a essa “tradição” de estudo da língua viva, oral, a partir da qual teria se formado uma língua nacional russa com base vernacular, como em numerosos países da Europa. Na literatura polêmica contra os heréticos todas as notações fonéticas foram substituídas por considerações grafemáticas. É de novo a língua escrita sacralizada a única que permite o acesso ao conhecimento das coisas divinas, e não a “língua do coração”.
            O letrado bizantino Maximo, o Grego, convidado na Rússia,na corte de Vasilij III (século XVI), a ajudar a traduzir os livros sagrados do grego para o eslavo, foi acusado de heresia por ter corrigido mal os livros e passa uma grande parte de sua vida nas prisões dos monastérios, sem jamais ter podido retornar à Grécia. Uma das principais acusações era que ele havia substituído um tempo do passado, o aoristo, por um outro tempo, o pretérito perfeito (em perfeita conformidade com a evolução da


[23] Maïmonide estima que a pesquisa sem preconceitos da “verdade científica”, longe de excluir Deus, leva a compreender sua perfeição.
[24] V. Kolesov escreve que “esse texto traduzido se inscreve em uma outra tradição, aquela dos textos traduzidos do latim” (1991: 219). É precisamente esta tese da origem geográfica das “tradições” que gostaríamos de refutar aqui.