Revista Rua


A que Tradição Pertence a Tradição Gramatical Russa
(To what tradition does the Russian grammatical tradition belong?)

Patrick Seriot

A história da língua livresca nos países eslavos ortodoxos e da reflexão metalingüística que a acompanha é assim feita de períodos sucessivos de evolução local divergente e de reação purista centralizadora, cujos fundamentos são de ordem religiosa antes do que propriamente lingüística.
 
Konstantin Kostenecski: Fideísmo e Hesicasmo
 
O cristianismo, religião do livro, privilegia o texto escrito como meio de acesso ao conteúdo (ao dogma). Mas logo surgem atitudes divergentes frente à escrita. Logo se torna difícil falar de uma tradição eslava em matéria de língua ou de gramática[13].
Assim, no início do século X na Bulgária, na geração dos letrados que acolheram os sobreviventes da missão de Cirilo e Metódio, expulsos da Moravia, já se distinguem dois centros, duas escolas, duas “tradições” embrionárias. Com as reflexões de João o Exarca sobre a tradução, a Escola de Ohrid dá prioridade ao sentido sobre a expressão: a ausência de equivalência estilística e gramatical entre as línguas (a não-correspondência dos gêneros gramaticais, por exemplo) necessita de uma tradução livre, pelo sentido. Nisso, João o Exarca não se diferenciava de São Jerônimo (342-420), autor da tradução latina da Bíblia (a Vulgata), que dedica uma de suas cartas ao exame da teoria da tradução, sustentando que é preciso traduzir o espírito antes do que a letra (“sentido por sentido antes do que palavra a palavra”: Jerônimo, Lettres, 57, citado por ROBINS, 1976: 74).
Mas logo, na mesma Bulgária, a Escola de Preslav depois a de Turnovo defendem ao contrário a exigência de seguir literalmente o texto original em nome da fidelidade ao dogma canônico (KOLESOV, 1991: 208; SUSOV, 1999: 74). É aí que vai se formar em seguida uma atitude que se pode chamar de fideísta[14] diante do texto escrito, prolongada pelo búlgaro Konstantin Kostenecski, refugiado na Sérvia no século XV, no momento em que o território búlgaro já estava ocupado pelos turcos. Nessa época, os falares vernaculares eslavos já haviam se distanciado de modo notável dos textos originais, e os manuscritos apresentavam variações lingüísticas cada vez mais importantes.


[13] Sobre a noção não discutida de “tradição eslava em filosofia da linguagem” no sentido de “filosofia da linguagem nos países de língua eslava”, cf. RUDENKO & PROKOPENKO, 1995.
[14] O fideísmo baseia-se em uma desconfiança em relação à razão: a Fé só deve ser fundamentada na Fé. A Razão não nos ensina nada sobre a verdadeira natureza das coisas, a verdade absoluta só pode ser fundamentada na revelação e na Fé.