Revista Rua


A que Tradição Pertence a Tradição Gramatical Russa
(To what tradition does the Russian grammatical tradition belong?)

Patrick Seriot

Para Kostenecski, a noção de reforma conservadora não é um oxímoro: ele defende a restauração de uma norma lingüística pura e unificada, pela adoção de um formalismo religioso muito estrito, que distancia cada vez mais a língua escrita do vernáculo, sacralizando o escrito enquanto tal. Essa prática de restauração filológica dos textos, cuja importância será considerável na discussão sobre a noção de “tradição gramatical russa”, só pode ser compreendida sobre o fundo doutrinal do hesicasmo.
A ligação estreita que faz Kostenecski em seu Tratado das letras (Kniga o pismenax, 1423-1426) entre a ortografia eslava (pravo-pisanie) e a Ortodoxia (pravo-eslavia) se explica pelos princípios da doutrina hesicasta, definida no início do século XIV por Santo Gregório Palamas, para quem a luz que os apóstolos, surpresos, haviam contemplado, no Monte Thabor, no momento da Transfiguração do Cristo, não era um símbolo, mas uma energia real que emanava de Deus.
Do mesmo modo, para Kostenecski, que postulava para o eslavo antigo uma pureza original, apesar da contingência de sua origem, as letras eslavas são "divinas", porque elas não são símbolos intermediários, mas uma manifestação direta da presença de Deus. Essa atitude com respeito ao signo em geral implicava que os signos gráficos inspirados por Deus, representação visível da fala divina, deviam ser cuidadosamente distintas dos signos imperfeitos forjados pelos homens. O eslavo da Igreja era um ícone da Verdade, ícone essencialmente visual, porque somente a forma escrita da língua podia desempenhar esse papel de ícone (cf. GOLDBLATT, 1987: 348). E como a noção de língua era inteiramente assimilada à "língua dos textos", puro mundo de signos, toda reflexão sobre a língua que fosse além da ortografia, por exemplo, ocupando-se de paradigmas morfológicos, era inaceitável: no pensamento hesicasta, a totalidade do dizível é reduzida ao conjunto do já-escrito. Nenhuma elaboração de gramática é necessária para a reprodução gráfica fiel dos textos canônicos. Quanto à língua eslava, ela se definia por seu conteúdo, religioso e não laico[15].
A atitude fideísta de Kostenecski com relação à escrita é coerente: ele estabelece uma ligação necessária entre erro ortográfico e heresia, entre barbarismo e blasfêmia. A ortografia é o que permite estabelecer uma diferenciação formal, pelos signos gráficos, entre o temporal e o sagrado.
Sua doutrina ortográfica se baseia em um ideal de transparência e de univocidade do signo. Assim ocorre com o uso do antistoicon, ou par de grafemas que


[15 Daí sua freqüente nomeação de “eslavo eclesiástico” ou “eslavo de Igreja” (Church Slavonic, Kirschenslavisch).