Revista Rua


A que Tradição Pertence a Tradição Gramatical Russa
(To what tradition does the Russian grammatical tradition belong?)

Patrick Seriot

Ao avançarmos, um grave problema de nomeação se coloca a propósito do ou dos territórios concernidos quando se trata da “tradição russa”. Com efeito, convém ressaltar que as primeiras gramáticas eslavas entre os eslavos orientais não foram publicadas na Rússia moscovita, mas em um Estado pouco conhecido: o Estado Federal Polonês-Lituano, ou Rzeczpospolita (cf. DUROVIC, 1995; USPENSKY, 1994a), cuja elite dirigente era católica, mas que compreendia uma importante minoria eslava oriental ortodoxa. Ora, muitos pesquisadores russos ainda persistem em chamar atualmente esse Estado, muito diferente da Rússia Moscovita, de “Rússia do Sudoeste”. A situação se complica mais quando se percebe que as gramáticas eslavas em questão são chamadas “gramáticas do bielo-russo antigo” pelos pesquisadores bielo-russos (JASKEVIC, 2001) e “gramática do ucraniano antigo por pesquisadores ucranianos”. Quanto a I. Susov (1999: 79), ele fala das “primeiras gramáticas russas impressas”. Ainda que todo esse processo de nomeação esteja sujeito a controvérsia, decidimos chamar “Ruteno” aos eslavos orientais (cf. UNBEGAUN, 1953) cujos descendentes tornaram-se mais tarde os bielo-russos e os ucranianos[18].   
O Estado Polonês-Lituano, fundado em 1569, e que durou até as divisões da Polônia no final do século XVIII, foi marcado por incessantes disputas religiosas que culminaram com uma contra-reforma ambiciosa, da qual uma das conseqüências originais foi a criação da Igreja uniata no momento da União de Brest (1596): muitos ortodoxos reconheciam a autoridade do papa, mantendo ao mesmo tempo a totalidade do seu ritual, inclusive a liturgia eslava. Essa zona de contatos entre eslavos do oeste (polonês) e eslavos do leste (rutenos), entre católicos, ortodoxos, uniatas e protestantes (sem contar os judeus e alguns tártaros muçulmanos), zona que os poloneses chamavam “territórios do leste” e os russos “territórios do oeste”, foi o viveiro de discussões teológicas apaixonadas, nas quais o que estava em jogo precisamente era a língua e a gramática. À “tradição gramatical russa” permaneceria pouco compreensível fora da “questão da língua rutene”, que marcou as disputas religiosas na época da Contra-Reforma no Estado Federativo Polonês-Lituano.


[18] Nenhum desses dois termos existia no século XVII. Os eslavos orientais ortodoxos da Polônia-Lituânia denominavam a si mesmos “Rus’kye” ou “Rusiny”. Eles eram chamados “Ruskie” pelos russos de Moscou. E eram chamados “Ruthene” em alemão e Ruthini em latim, enquanto que os russos da Moscóvia eram “moscovitas”. A comunidade das populações dos dois lados da fronteira era reforçada pelo fato de que o patriarca de Moscou tinha jurisdição sobre os ortodoxos da Polônia-Lituânia: a igreja ortodoxa autocéfala russa era transestatal.