Revista Rua


Identidade e Pertença: Estilo de vida e disposição morais e estéticas em um grupo de jovens

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

 

Pensei que ia morrer, juro, de repente eu era tudo e de repente me vi um nada à esquerda, um bostão... ninguém dizia nada, me evitava como se eu tivesse a peste, fui pra casa, me tranquei no quarto, a cabeça aos pulos, uma dor de cabeça arretada, e como um menino chorei pra caramba, dormi e, no outro dia, resolvi tomar satisfação, saber o que tava acontecendo. Foi difícil chegar aos camaradas, mas já sabendo que fiz alguma merda que não sabia, tava querendo saber que merda era essa pra dar satisfação e resolver tudo aquilo. Não dava pra agüentar viver mais um dia sequer assim. Rodei pra lá, rodei pra cá, os caras fingiam não me ouvir, mas eu falava assim mesmo e ninguém dizia nada... Eu tava quase desistindo quando fui procurado por Porcão[7] a mando dos demais camaradas. Falamos quase a noite toda, ele ouviu minhas interrogações e minhas angústias e ele falou do sentimento do grupo para comigo e do motivo que levou o pessoal a me olhar de banda. Me expliquei, ele deu uns tapas nas minhas costas e foi embora.
No outro dia já havia uma certa descontração no ar, as meninas olhavam e riam e me acenavam ou caras começaram a se aproximar, e de noite a gente se reuniu no Ponto Seis[8], onde o camarada ofendido se aproximou apertou a minha mão e me chamou de mano. E aí se acabou as horas mais horrorosas da minha vida e, então, eu fui e me sinto aceito integralmente pelo grupo”.
 
Este longo depoimento[9] serve para compreender o sentimento de lealdade como um dado de confiabilidade da pessoa no grupo. Os códigos de ação cotidiana servem como delimitadores do comportamento esperado pelos membros e um sinal errado torna-se uma ofensa moral. Ofensa que pode levar a atitudes de rejeição do membro como um indivíduo que não honrou a confiança nele depositada pelo grupo em si, e pelos membros particulares que perfazem o conjunto.
A performance necessária de um Delta passa, desta forma, por uma constante e contínua avaliação do grupo, onde os compromissos baseados na lealdade e na confiabilidade são checados e as advertências disciplinares dispostas de forma imediata através do caldo e do gelo dados aos indivíduos em prova. Dois instrumentos disciplinares baseados na demonstração de invisibilidade do sujeito, da sua não existência e importância para o grupo como totalidade. Uma demonstração de que é o grupo que permite e garante a visibilidade dos indivíduos nele emersa, sem o grupo não há o indivíduo.


[7]   Como se verá de forma mais aprofundada no segundo capítulo deste ensaio, todos os membros do grupo possuem uma espécie de cognome, um apelido que, normalmente, diz respeito a uma característica física ou de personalidade do sujeito apelidado. Porcão é o apelido de um rapaz do grupo, gordo e de aparência suada e com muitas espinhas no rosto, membro dos Deltas. Refere-se a si próprio pelo apelido. O apelido parece assumir para ele uma espécie de marca registrada de sua individualidade e de sua aceitabilidade no grupo, bem como para todos os demais entrevistados que associavam o cognome dado a cada um como uma espécie de marca pessoal distintiva e de reconhecimento individual no grupo.
[8]  O Ponto Seis é um local de encontro da rapaziada do bairro. É uma praça no centro de um dos bairros em que o grupo se espalha, onde se joga conversa fora, se joga futebol e “se paquera as minas”. O nome Ponto Seis é uma espécie de denominação do grupo para os locais de encontro só deles. Os locais de encontro serão apresentados com mais vagar posteriormente.
[9] Entrevista realizada em maio de 2002 com um rapaz de 22 anos, solteiro, que mora com os tios desde que os seus pais morreram, quando tinha 10 anos. Parou de estudar quando terminou o segundo grau, hoje só trabalha vendendo verduras em um boxe do tio no mercado central de João Pessoa. Toca guitarra e tem uma banda que se apresenta nas festas do bairro e no culto da igreja evangélica que freqüenta.