Revista Rua


Identidade e Pertença: Estilo de vida e disposição morais e estéticas em um grupo de jovens

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

É a traição, em termos últimos, que assegura em boa medida, junto às práticas ritualísticas de revisão e revisita ao segredo que irmana os membros de um grupo específico, a produção e reprodução deste segredo e da semelhança entre os membros, pela possibilidade da vigilância sobre a sua realização prática, real ou possível. É o medo que, neste caso, parece exercer o próprio exercício da semelhança, ou a busca de novas formas discursivas no interior ou no exterior de uma comunidade específica.
Do mesmo modo que a revelação do segredo permite a traição, leva também à eficácia e permanência do segredo em si mesmo, pela possibilidade de ampliação para novos membros. Aos novos membros propostos pela revelação, contudo, se instaura uma prática de fora e de dentro de si próprios relativa à confirmação da sua fidelidade ao segredo revelado e às diversas inserções práticas da vida cotidiana no grupo. Como informa um entrevistado de 18 anos[22]:
 
“... Faço parte dos Deltas há seis meses, e desde que entrei é tudo uma coisa demais para mim. Eu já não sou, posso dizer com tranqüilidade, o cara que era antes, perdido na vida, jogado nas coisas, não, eu agora sou outro, tenho um caminho pra trilhar. Mas não sei ainda se posso me considerar um Deltaverdadeiro, ainda. Não sei não. O montante de coisas que faz ser um Delta me faz às vezes enxergar para a distância que se situa eu do que eu deverei chegar a ser. E me esforço, me esforço muito, mas vou com cuidado... não quero ser pisado e nem pisar em ninguém. Aí entram umas amizades mais chegadas aqui dentro que vão me orientando, me dando passagem, me fazendo clarear situações e puxando minhas orelhas na intimidade quando eu desando a desandar...”.
 
Como pode ser visto no depoimento acima, apesar da revelação e do nascimento de um novo ser, agora Delta, a insegurança parece ser a companheira mais freqüente desta nova conformação, junto, claro, com o esforço desmesurado de um autocontrole e de uma organização interna para o aprendizado. O que o leva, como parece levar um outro membro qualquer, a procura de proteção, ou a propor proteção a outro, apresentando este jogo como um elemento singular de sustentação de lealdade e da confiabilidade disposta nos outros, para os outros e pelos outros, e da não recaída às ações e projetos anteriores de onde veio e pelos quais ainda não se sente inteiramente seguro de uma ação própria.
              
               A revelação ofertada ou antevista ao novo membro, individual ou grupal, abre, assim, uma possibilidade de inserção ritual e simbólica à prática comum da comunidade dos Deltas, e leva, ao mesmo tempo, a uma reconfiguração deste sujeito às estratégias do seu passado, a ser revisto e revisitado através da nova revelação. O que satisfaz e modifica o plano de vida individual e grupal, socialmente dada. O que também o leva, de um lado, a inseguranças próprias do rompimento da velha


[22] Entrevista concedida em abril de 2002, por um rapaz tímido e sério, estudante da oitava série noturna do ensino fundamental, de uma escola pública estadual do bairro onde mora. Solteiro, mora com dois irmãos, não conheceu os pais, já falecidos. Trabalha como office-boy para uma firma de advogados no centro da cidade de João Pessoa.