Revista Rua


As coisas-a-saber sobre uma cidade na Wikipédia e na Desciclopédia: Pouso Alegre entre edifícios e buracos
The 'things to know' about a city at Wikipedia and Desciclopedia

Ana Cláudia Fernandes Ferreira

 

Ao lado disso, o rural é significado no artigo pelas atividades econômicas, que “consistiam na criação de gado de corte e plantio de cana, mandioca, arroz, milho, feijão, banana” (p. 357). O interessante é que a descrição dessas atividades se faz através de uma operação narrativa[6] que as coloca no passado: “consistiam”. Nesse sentido, a relação entre urbano e rural é determinada pela distinção entre cidade e campo, na qual uma cidade não pode significar também pelo rural, pois o rural é significado como campo.
Também vale aqui destacar uma descrição relativa ao processo de urbanização da cidade:
 
(...) surgiram várias indústrias de transformação e a cidade começou a adquirir nova fisionomia. Instalaram-se hotéis de luxo, restaurantes, cinemas, estações de rádio e TV, ao mesmo tempo em que a indústria de construção conhecia grande impulso.
Não obstante essas transformações, que alteraram as suas primitivas feições, Cuiabá ainda exibevestígios do urbanismo apressado que lhe imprimiu a origem bandeirante.
 
Vemos funcionar, nesse recorte, uma divisão nos sentidos de urbano: a) um sentido negativo em “urbanismo apressado”, como “vestígios” de um passado no presente, em relação à “origem bandeirante”; e b) um sentido positivo em relação à “nova fisionomia”, adquirida pela instalação de hotéis de luxo, restaurante, cinemas, estações de rádio, TV e indústrias.
Nos dois artigos, podemos observar que as coisas-a-saber sobre uma cidade a significam pela existência e quantidade de: habitantes, prédios, bancos, hotéis de luxo, restaurantes, cinemas, estações de rádio e TV, indústrias... Uma cidade, nesses artigos, é um espaço que cresce, é um lugar onde há progresso e onde o rural não pode significar senão como passado.
Nos itens a seguir, passaremos a analisar os artigos sobre a cidade de Pouso Alegre, primeiramente na Wikipédia e em seguida na Desciclopédia, buscando observar, de um lado, em que medida essas enciclopédias reproduzem as discursividades de uma enciclopédia tradicional, como a Enciclopédia Abril e, de outro, que outras discursividades são por elas produzidas.


[6] As operações narrativas mobilizam marcas de temporalidade (verbais e em partículas como desde, até, , etc.) que constroem uma história no texto, relativamente ao outros textos, estabelecendo relações de diálogo, debate, confronto, etc. O termo ‘operações narrativas’ é de E. Guimarães (2001), “O Sujeito e os Estudos da Significação na Década de 70 no Brasil”. Propus esta definição de operações narrativas em meus trabalhos de iniciação científica partir da leitura desse artigo do autor e, desde então, venho trabalhando produtivamente com ela.