Revista Rua


Futebol no Brasil: sentidos e formas de torcer

Simone Hashigutti

“presidente” Ronaldo)[14], retomando a relação historicamente marcada entre Estado e Igreja[15], abrindo espaço para a enunciação das expressões de adoração, e retomando também, os mitos olímpicos relacionados à força física e ao esporte.
Essa discursividade religiosa provoca um truncamento de posições discursivas, e a posição-sujeito-torcedor se funde com a posição-sujeito-religioso[16]. Em um dos comentários na entrevista de um dos informantes, a relação futebol/religião foi mencionada:
 
 (23) (I6) Hoje em dia, nego tá se matando por causa de futebol. Nego não se mata por religião? Então, hoje em dia, futebol virou religião. Que nem no Oriente Médio, esses fundamentalistas.
 
            A questão da violência no futebol, entretanto, pode ser pensada a partir de outro viés, qual seja o do movimento das relações interpessoais da/na cidade, com suas formas de violência. O futebol nasceu e se mantém no meio urbano e na sua discursividade, e o seu funcionamento retoma suas questões e conflitos sociais.

            A rivalidade entre times é um sentido fundador da prática esportiva no Brasil. Segundo César (1982)
[17], quando surgiram os primeiros times, junto com o movimento urbano de industrialização, já havia separação de grupos e classes. O Corinthians Paulista, por exemplo, era o time de proletariados brasileiros, em grande parte negros e pobres, que concorria no mercado de trabalho ainda reduzido com os imigrantes, que também formavam seus times, como o Palestra Itália. Os jogos entre eles representavam simbolicamente mais uma forma de disputa por um lugar social e um espaço na cidade. Esse sentido de rivalidade se mantém no discurso de cada time, circulando até hoje. Os times mantêm as identificações de classes sociais com as quais se fundaram. O Corinthians e o Flamengo, por exemplo, são chamados de times “mais populares”, pelos torcedores em geral, representando imaginariamente a população mais pobre. Na


[14] Ainda segundo reportagem da revista Época (12/12/2005), o jogador Ronaldinho Gaúcho, atualmente do Barcelona, tem sido referido como “Ronaldiós”, também numa referência à discursividade religiosa. Os jogadores Adriano, Kaká e Ronaldo jogam, no momento desta pesquisa, no Inter de Milan (Itália), Milan (Itália) e Real Madrid (Espanha), respectivamente.
[15] A relação entre Igreja e Estado, como um só corpo institucional no processo de determinação do sujeito, existiu até a Idade Média. Com o surgimento do capitalismo, as sociedades sofreram uma reorganização e os sujeitos passaram a ser determinados e individualizados pelas diversas instituições e seu funcionamento disciplinar (Foucault, 2004), num processo que funciona para manter o sistema e seu mecanismo de poder.
[16] Aqui é importante ressaltar que a posição-sujeito religioso é uma posição discursiva, que faz parte do funcionamento do discurso religioso. Ela difere da forma-sujeito-religioso, que existiu até a Idade Média, quando houve o aparecimento da forma-sujeito-jurídico da Idade Moderna – que foi uma mudança de subordinação do sujeito às leis da Igreja e do Rei, que representava Deus, para as leis jurídicas da sociedade capitalista. A esse respeito, conferir Haroche, 1992.
[17] Apud TOLEDO (op.cit.). CESAR, Benedito Tadeu. Os Gaviões da Fiel e a Águia do capitalismo. Dissertação de Mestrado. Campinas: IFCH/Unicamp, 1982.