Revista Rua


Separação e mistura: alusões utópicas e imaginação espacial no filme A Vila
Separation and mixing: utopians allusions and spatial imagination the movie The Village

Antônio Carlos Queiroz Filho

Convivemos no filme com “duas” florestas. Uma, que nos é apresentada a partir da vila e a outra, a partir da cidade. Uma, preserva o sentido de “não entrar”, a outra, o de “não sair”. Ambas, porém, cada qual à sua maneira, conservam a ideia de não penetrar, não cruzar. Elas são as mesmas enquanto ambiente, mas são outras enquanto narrativa e memória. Convivem e, talvez, não existiriam se não fosse assim. Essa contaminação existente entre elas, espécie de penetração de sentidos, me trouxe algumas palavras de Simon Schama, historiador britânico que no seu livro, Paisagem e Memória, fala desse “legado ambíguo dos mitos da natureza”, que:
 [...] pelo menos nos faz admitir que a paisagem nem sempre é mero “local de prazer” – o cenário com função de sedativo, a topografia arranjada de tal modo que regala os olhos. Pois esses olhos, (...), raramente se clarificam das sugestões da memória. E a memória não registra apenas bucólicos piqueniques. (SCHAMA, 1996, p. 28)
 
Para os que estão dentro – vila – a floresta como impedimento se dá mais diretamente pelo conjunto de ações que garante, a todo instante, a criação de um imaginário para seus moradores. A floresta se configura para eles como um local de perigo, habitada por seres monstruosos devoradores de pessoas. Isso faz da tentativa de cruzá-la algo proibido, em virtude da segurança e do bem-estar comum. Seu barreiramento se dá por meio de simbologias que dão a sensação para o espectador de que a floresta deles é como uma das florestas (selvas) do Inferno, trazidas por Maria do Céu Oliveira:
A selva é selvagem, áspera, rude e forte... as árvores são nodosas e antiqüíssimas. Boccaccio escreve que a floresta é o Inferno, il quale è casa e prigione del diavolo, no qual nenhum homem entra se não cai em pecado mortal. É escura pois é plena de ignorância do amor de Deus, a luz do santo nome que não pode ser pronunciado. A selva é selvaggia, uma duplicação da intensidade de valores, pois nela inexiste habitação humana... nenhuma humanidade, piedade e clemência, mas crueldade e bestialidade. As árvores ásperas, repletas de espinhos são os pecados que continuamente ferem a consciência da alma em tentação. (OLIVEIRA, 2003, s/p)
 
É numa floresta que Dante começa sua trajetória: perdido. É após atravessar uma floresta que ele chega à entrada do Inferno. É também em árvores de uma floresta que os suicidas são transformados. A porta do inferno alude a uma floresta. Enfim, são florestas de sonhos, de transformações, de ligações, de isolamento, de estabilidade, de memórias e assim são as palavras-imagens e imagens-memórias da floresta (selva). Tanto no Inferno como na Vila ela separa, assombra, provoca medos, dificulta a transição, mas também protege e legitima.