Revista Rua


Uma enunciação sem comunicação: As tatuagens escriturais
An utterance without communication: the scriptural tattoos

Marie-Anne Paveau

de tatuagens em seu blog kutub.over-blog.com, na rubrica “Gangues à fleur de peau - Gangues à flor da pele”), mesma denominação das categorizações de si para um procedimento próximo da etiquetagem. Incluiremos igualmente nesta categoria algumas tatuagens de ressignificação[13]: KKK sobre a mão de um GI negro, bitch [vadia] no quadril de uma mulher (www.fotosearch.fr).
Esta leitura é situacionalmente coerente mas lingüisticamente inverificável: o que me diz o homem que porta a tatuagem Enfant du malheur [Criança maldita] ao se autodesignar? O que me diz a testa tatuada com a sigla MS acompanhada de um 13 sobre o queixo de um membro de uma gangue? E a mulher que tem bitch [vadia] no quadril, o homem que tem Insane [Insano] sobre o braço, se autodefinindo mesmo ironicamente? Na falta de marcas linguageiras, só podemos responder a essas questões intuitivamente, ou recorrendo a dados não lingüísticos: é muito difícil avaliar a decisão do tatuado e, portanto, sua responsabilidade enunciativa. Se as tatuagens dos prisioneiros e dos militares, motivadas pelo descontentamento e os enunciados contestatórios, parecem bem revelar uma automarcação (no sentido no qual o tatuado pede a inscrição), as tatuagens de afiliação (as das gangues ou de alguns grupos militares restritos como os legionários) são mais duvidosas: como o explica J.-E Lundi a propósito da Legião Estrangeira, as tatuagens resultam de uma violência narcísica, isto é, da imposição de imagens do eu que obedece as instituições e são necessárias para ser reconhecido por elas e pelos outros membros[14]. As tatuagens materializam portanto este nó imaginário fazendo se aproximar o eu do legionário do ideal da instituição da Legião Estrangeira garantindo o que o médico chama de um “contrato narcísico” (LUNDY, 1989; ill. 3). Guardadas todas as proporções, é um fenômeno análogo que se produz nos casos de tatuagens de submissão,nos casos de contratos sadomasoquistas: o site jeune-soumise.com apresenta uma jovem mulher tatuada


[13] Eu chamo de ressignificação, de acordo com J. Butler, o fenômeno que consiste em inverter o uso estigmatizado ou ultrajante de uma denominação para produzir um símbolo identitário: por exemplo, negro no contexto da descolonização, Cães de Guarda como nome de um grupo feminista, vagabundas no “Manifesto de 324 vagabundas” protestando pelo aborto, ou mais recentemente queer como designação sexual alternativa à heteronormatividade e de um movimento de pesquisas (sobre a ressignificação também chamada remeter è cena [restaging] ver BUTLER [1997]: 38-41).
[14] Esta função da tatuagem é sem dúvida muito próxima daquela que se assume nas sociedades tradicionais, indicando as mudanças de idade e de estado. Só podemos associá-la ao funcionamento do nome próprio nessas sociedades elas mesmas: de fato, o antroponômio se modifica da mesma maneira, mas sobre a decisão de um outro, nunca de si. Tatuagem e nome próprio têm em comum o fato de responder a uma necessidade de etiquetagem (eu agradeço a Guy Achard-Bayle de me ter chamado atenção sobre este ponto, assim como sobre a analogia apresentada na nota 13).