Revista Rua


Uma enunciação sem comunicação: As tatuagens escriturais
An utterance without communication: the scriptural tattoos

Marie-Anne Paveau

2.1. BINARISMO E ANTROPOCENTRISMO DA TEORIA ENUNCIATIVA STANDARD          

As instâncias enunciativas são, com efeito, enviesadas de maneira binária, um (ou vários) locutor(es) se relacionam, explícita ou implicitamente, com uma marcação lingüística na superfície (dêiticos) ou em profundidade (um enunciado não marcado éconsiderado marcado em “estrutura profunda”) com um (ou vários) interlocutor(es), em um quadro dialogal ou polidialogal. A noção de coenunciação introduzida por F. Jacques (1985) e explorada lingüisticamente por A. Culioli (1990-1999) permite certamente ver as coisas de modo mais circular que binário, propondo um continuum entre os dois agentes: os enunciados sendo produzidos, a partir de representações e de recepções antecipadas do interlocutor, a enunciação tornando-se então mais uma negociação do que uma emissão de signos. Mas no quadro binário locutor/interlocutor permanece a referência. Os trabalhos atualmente numerosos e considerados canônicos que se inspiram no dialogismo de Bakhtine reforçam esta visão, introduzindo o dialógico e, portanto, uma ancoragem comunicacional em todos os enunciados, mesmo nos mais monológicos e nos mais desprovidos de marcas enunciativas. Os partidários da indexicalidade generalizada de práticas linguageiras (pragmáticos, interacionistas, em particular, conversacionalistas) mantêm firmemente a ancoragem interacional de todo enunciado, mesmo não marcado (ver sobre esse ponto SCHEGLOFF, 1992, e a síntese de KEBRAT-ORECHIONI, 2006). Nesta perspectiva, o contexto é construído pelos participantes da interação, ele é, em certa medida, interno à interação, constituído do que lhe parece pertinente para a construção e interpretação dos enunciados. Parece, portanto, que a visão doxa é interacional ou ao menos dialógica e que a idéia de um enunciado depreendido da relação comunicacional binária é heterodoxa.
São os trabalhos sobre a enunciação literária, que sem dúvida, têm mais fortemente modificado a teoria standard, propondo essa alternativa heterodoxa para a “linha comunicacional” (Philippe, 2004: p. 4): a obra d’A. Banfield, Phrases sans parole, surgiu em 1982 sob o título Unspeakable Sentences), traduzida para o francês em 1995, defende, com efeito, a idéia que na ausência de marcas enunciativas, não há razão de postular uma situação de comunicação. Suas análises concernem essencialmente à figura do narrador, mas elas são possíveis, a meu ver, a propósito do locutor-receptor. Sobre um outro corpus