Revista Rua


Uma enunciação sem comunicação: As tatuagens escriturais
An utterance without communication: the scriptural tattoos

Marie-Anne Paveau

(o discurso científico), P. Ouellet propõe em 1984 a noção de “(des)enunciação” a fim de dar conta da característica instável dos enunciados científicos[10]. A noção é em seguida retransmitida por aquela do “apagamento enunciativo” proposto R. Vion (VION, 2001) depois retrabalhada, entre outros, por A. Rabatel (por exemplo, RABATEL, 2004). Essas duas posições remetem em causa, cada uma a sua maneira, ao princípio da indexicalidade generalizada e permitem olhar a enunciação diferentemente, fora do dispositivo binário. É a primeira que reterá, sobretudo, meu interesse, a segunda apresentando a ausência de marcas enunciativas como uma estratégia linguageira ou argumentativa de superfície (portanto, uma espécie de ficção enunciativa[11]) e não retornando finalmente sobre a existência incontestada de duas instâncias locutórias, enunciador e enunciatário.
Os parâmetros espaço-temporais foram igualmente retrabalhados: sabemos atualmente que as produções verbais circulam de maneira não linear e complexa através de um número de filtros contextuais antes de atingir seu alvo, que permanece, no entanto, irredutivelmente e binariamente neste outro da interlocução. Mas as descrições do contexto, esse elemento necessário a toda interpretação de enunciados na perspectiva comunicacional, são, geralmente, antropocêntricos, no sentido de que elas privilegiam os dados humanos não materiais como cultura, dados sociológicos, históricos, em resumo, todo um mundo representacional que faz pouco de casos de realidades materiais. Os pesquisadores que trabalham sobre a dimensão corporal, em si, e não como simples “contexto” da interação verbal, modificam essa concepção introduzindo o material biológico raramente semiotizado, como o mostra aqui mesmo H. de Chanay, que defende “uma abordagem comunicativa própria” do corpo. Eu considero que o conjunto do ambiente, quer seja ele humano ou não, desempenha um papel nas produções verbais e que o corpo certamente mas também os objetos naturais ou artificiais, os lugares geográficos e


[10] É necessário, no entanto, destacar que para P. Ouellet, a (des)enunciação dos textos científicos é somente de superfície, o dispositivo interacional é conservado, como podemos esperar de 1984, época em que triunfa a teoria do enunciado reativado pelas traduções de Bakhtine em francês: “No discurso científico, a maioria, senão a totalidade, de pressuposições ou de proto-enunciados transformados remetem a uma instância subjetiva e agentiva, animada e antropomórfica, nas quais, as múltiplas transformações de ‘relações primitivas’ estruturam os estados de fatos em ‘relações predicativas’ constitutivas do enunciado contribuindo para mascarar, esconder, apagar” (OUELLET, 1984: 44).
[11] Para R. Viron, o apagamento enunciativo é uma “estratégia”, não necessariamente consciente, permitindo ao locutor dar a impressão que se retira da enunciação, que “objetiviza” seu discurso “apagando” não só as marcas mais evidentes de suas presença (os indicadores da enunciação), mas igualmente a marcação de toda fonte enunciativa identificável” (VION, 2001: 334; grifos meus).