Revista Rua


Uma enunciação sem comunicação: As tatuagens escriturais
An utterance without communication: the scriptural tattoos

Marie-Anne Paveau

[Édouard Kouznetsov, que fora deportado para as prisões da Rússia, menciona assim a inscrição “sobre a parte facial” (testa, queixo, face, pescoço) de tatuagens qualificadas pelas autoridades disciplinares de “cinicamente” ou “insolentemente antisoviética”, pior “com conteúdo antisoviético difamatório”, como: Escravo do PCUS, Pão e Liberdade, ou ainda, Abaixo ao Buchenvald dos soviéticos, Morte aos tiranos e às tiranas! Ele se lembra particularmente da impertinência de uma pequena estrofe tatuada na face de um companheiro de infortúnio:
 
“Khrouchtcher, eu não o temo
Eu me casarei com sua Fourtséva
Para acariciar os roberts
Os mais marxistas da terra”]
 
Notamos tatuadores e tatuados explorando diversas possibilidades linguageiras escritas no limite quantitativo do espaço corporal dedicado à inscrição. As formas enunciativas e escriturais, bem criativas, estão limitadas porque são prescritas pelo suporte corporal e o tipo particular de enunciação em questão: sem texto longo, evidentemente, poucas exclamações, sem diálogos. É necessário agora questionar como funciona, sobre o plano enunciativo, essa escrita particular.

2. A ENUNCIAÇÃO NÃO COMUNICACIONAL DOS ESCRITOS TATUADOS

As coordenadas teóricas e epistemológicas da noção de enunciação pouco mudaram depois dos trabalhos de E. Benveniste entre 1950 e 1970, mesmo se modificações importantes algumas vezes foram produzidas para definições e para descrições dos fenômenos enunciativos. Com efeito, a enunciação é sempre enviesada pela maioria dos lingüistas a partir de uma situação de comunicação que coloca em jogo instâncias locutórias e parâmetros espaço-temporais. É a situação princeps apresentada por E. Benveniste, em “Estrutura das relações de pessoa no verbo” de 1946, “A natureza dos pronomes”, em 1956 e “O aparelho formal da enunciação” de 1970 (BENVENISTE, 1966 e 1974), situação reconduzida por pesquisadores como O. Ducrot e A. Culioli, que têm, porém, consideravelmente retrabalhado os dados do início. Esta concepção standard é marcada por dois traços constantes, o binarismo e o antropocentrismo.