Revista Rua


Rememoração/Comemoração no Discurso Urbano
(Rememoration/commemoration in the urban discourse)

Maria Cleci Venturini

mantém, isto é, o dizível, a memória”. Podemos dizer que é pela rememoração, enquanto discurso de, que os sujeitos filiam seu dizer a determinadas FDs e falam “com palavras já-ditas” (id.: 36), que reinscrevem o dizer no mesmo, cristalizando sentidos ou instaurando o diferente nesse mesmo.
A rememoração é da ordem do não-totalmente inconsciente, uma vez que as recordações ou esquecimentos não fazem parte de escolhas, mas de desejos e de demandasdo sujeito e da formação social. A demanda e o desejo relacionam-se à identificação do sujeito consigo mesmo, com o outro (com “o” minúsculo) e também com o Outro (com “o” maiúsculo), segundo Pêcheux, (1997: 167) numa ordem em que “o efeito-sujeito e o efeito de intersubjetividade são contemporâneos e co-extensivos”.
A segunda posição é que a rememoração constitui-se de um texto fundante. Essa segunda modalidade de funcionamento da rememoração nos permitiu dizer que a rememoração/comemoração é uma prática discursiva constitutiva de um imaginário urbano. Nesse caso, o texto autobiográfico, de Érico Verissimo, Solo de Clarineta I, seria um dos textos fundantes, na medida em que esse texto é, em si mesmo, uma rememoração em torno do espaço urbano e do sujeito/objeto rememorado nesse espaço.  Nesse sentido, instaura-se a partir de um sujeito desejante, que segundo Lacan (1985) estrutura-se pela falta e pela falha. Por meio desse conceito, é possível compreender, de um lado, como, pela linguagem, o sujeito urbano revela o desejo de identificação a um sujeito imaginário, que é ao mesmo tempo, como salientamos, a causa do desejo (objeto a) e também o que falta (objeto do desejo) no espaço imaginário da cidade. 
Nesse funcionamento, o sujeito desejante constitui-se pelo efeito de espelhamento, procedimento pelo qual os sujeitos “se vêem” e “vêem” o espaço urbano pela imagem do outro, tomado como ideal de eu. Henry (1992: 176) refere-se ao sujeito desejante como o efeito de “estendimento” do inconsciente ao imaginário do sujeito. A discordância entre o eu-ideal (sujeito da enunciação) e o ideal de eu (instância do interdiscurso e do inconsciente) provoca o desejo, que pode chegar ao desejo sem controle. Pela rememoração, o sujeito imaginário, que emerge como memória, representa os sujeitos urbanos e a imagem que eles fazem de si mesmos por esse processo de espelhamento, em que um constitui o outro e é por ele constituído.
A rememoração ocupa, portanto, o lugar do já-dito e é da ordem da estabilidade. Como memória, materializa-se pelas repetições, que, pelo processo parafrástico, formam redes, as quais irrompem no fio do discurso, como o lugar em que as repetições sintagmatizam-se e constituem o mesmo ou rompem essa rede e instauram o diferente.