Revista Rua


O discurso da normatização da terra
The discourse of the land normatization

Ana Luiza Artiaga R. da Motta

Segundo Castoriadis[9], um título de venda, uma folha de pagamento, é um símbolo de direito. No caso da primeira Ata que se registra em Mato Grosso, a Ata de Fundação de Cuiabá em 08 de abril de 1719, refere-se indiscutivelmente a um texto que, simbolicamente, delimita sentidos na institucionalização da propriedade da terra. A Ata regulamenta a transação e mobiliza a formalização burocrática de direitos à terra no momento em que os presentes assinam e dão ao que o texto institui, enquanto ordem simbólica. Ou seja, é a escrita da Ata que legitima o espaço em que se institui o povoado. Ou ainda, a Ata, uma vez instituída, dá direito de posse, de propriedade à Capitania de São Paulo sobre uma parte da terra espanhola.
A determinação do registro da Ata configura o lugar hierarquizado que se projeta no direito à terra, pois sem esse acontecimento não há legitimidade. Ou seja, é a textura da escrita da primeira Ata que marca o acontecimento, o fato que institucionaliza a terra de Mato Grosso, no século XVIII. Em outras palavras, a Ata representa o lugar em que aflora o poder da língua pela materialidade do discurso.
Podemos acrescentar que o gesto da escrita da Ata aponta o lugar de uma juridicialização da memória (cf. ROBIN, 2003, p. 17), ou seja, um presente como objeto de posse e de patrimonialização. Um presente que quer delimitar, sedimentar, um passado.
A formulação da redação da Ata dá visibilidade ao discurso que delimita sentidos de resistência, de poder. Como também, é atravessado por diferentes formações discursivas, por posições-sujeito, vozes que sedimentam a instituição do núcleo, o povoado, o “Arraial do Cuyabá”. Podemos dizer que a Ata, pela sua natureza discursiva, produz um deslocamento, uma autonomização institucional sobre o espaço em que se projeta o povoado. De uma maneira análoga, retomamos Castoriadis (Op.cit), que argumenta que não podemos compreender a instituição, necessariamente, como uma rede simbólica, mas, sobretudo, como algo que não se limita ao simbolismo e que, suscita questionamentos se tentarmos nos ater somente à interpretação das instituições de maneira simbólica.
A teoria discursiva a qual nos filiamos permite interpretar que a materialidade simbólica não é neutra, ela tem seus efeitos de sentido, uma vez que está revestida, atravessada ideologicamente por uma exterioridade que a constitui e que é tangível pelo discurso.


[9] Castoriadis (op.cit.p.142).