Revista Rua


Um glossário contemporâneo: a língua merece que se lute por ela
A contemporany glossary: the language that deserves to fight for it

Vanise Gomes de Medeiros

 

As listas de palavras deram origem aos glossários que, por sua vez, resultaram em dicionários. Seguindo as pegadas de Auroux e de Nunes, ficamos sabendo que os glossários se multiplicaram substancialmente na Idade Média e que se desenvolveram a partir do século VI com a “prática da decodificação e interpretação de textos gregos e latinos na escola” (NUNES, 2006, p. 47).  Prestavam-se, portanto, à leitura de uma língua outra ou de textos antigos a serem decifrados.
     Os glossários vinham à margem do texto ou no meio deles (idem). Eram, portanto, dependentes do texto, frutos do texto e serviam ao texto. Indo adiante, podemos dizer que os glossários faziam parte de algum modo do corpo do texto: sua cicatriz. Marcava-se no corpo do texto um discurso outro: alteridade inscrita na glosa. Sua função era explicar, conforme Nunes, “palavras difíceis” substituindo-as por “palavras fáceis ou do vernáculo”. A ”tradução” era, pois, a marca do descompasso entre texto e leitor, a marca do descompasso entre discursos e entre línguas. Somente em momento posterior o glossário se fez autônomo.
     Ao ler sobre glossários em Auroux e Nunes, é possível ainda depreender que eram escritos por outrem que não o autor do texto. Outra ordem de alteridade: daquele que seleciona o que marcar e explicar no texto outro. Os glossários marcavam no texto o heterogêneo e inscreviam neste gesto uma posição-sujeito leitor a quem se supunha “facilitar” a leitura.
     Recuperando e sintetizando,os glossários nasceram presos ao texto, serviram à leitura e funcionavam como cicatrizes de uma dupla alteridade: das palavras com as palavras – em que a fórmula X é Y diz da diferença[6] – e da posição-sujeito lexicógrafo constituída por um lugar discursivo do lexicógrafo incidindo sobre uma posição-sujeito escritor.  
     Esta reflexão nos leva a observar que, no livro de Buzzo, tal como os antigos glossários, as marcações estão no corpo do texto. E a perguntar: onde incidem estas cicatrizes? Que descompasso promovem? Que diferenças estão em jogo? De que alteridade nasce seu glossário?


[6] Devo esta reflexão à palestra de Agostinho Ramalhono II Simpósio do GTDIS Discurso arquivo, e...(UFF, 2011), em que ele comentou que o sinal de igualdade marcava duas diferenças.