Revista Rua


Um glossário contemporâneo: a língua merece que se lute por ela
A contemporany glossary: the language that deserves to fight for it

Vanise Gomes de Medeiros

 

embora haja entre eles diferenças significativas. As produções de Alencar e Buzzo têm condições de produção distintas. Alencar situa-se no século XIX e inscreve-se em uma prática literária brasileira de uma posição do literato erudito. Seu glossário, escrito em função de críticas que recebe, marca o nacional em oposição a Portugal; atua, portanto, na legitimação do português do Brasil (NUNES, 2006a). Em Favela toma conta fala-se do lugar social e discursivo da periferia e não do lugar do discurso culto. É, pois, outra a relação com a língua; outras são tensões que aí se instauram. Dessas observações resultaram algumas perguntas:como o sujeito se inscreve e é inscrito no glossário? O que está em jogo no glossário de Buzzo? Por que e para quem o glossário? O que se marca como verbete? O que está em jogo naquilo que se significa do verbete? Antes de nos atermos a elas, cumpre refletir sobre a prática do glossário.
 
III. Nos glossários a inscrição da alteridade
 
Os glossários têm história e ela é antiga. Com Auroux (2006, p. 22), sabemos que os glossários são herdeiros de uma das primeiras formas escritas de saber sobre a linguagem: as listas de palavras. Essas listas, que compareciam entre egípcios, gregos, babilônios e chineses, remontando há três milênios (AUROUX, 2006, p. 22), tinham provavelmente função mnemônica e passaram a servir muito cedo como instrumentos pedagógicos:
Esses tipos de listas constituem sem dúvida os mais antigos instrumentos pedagógicos da humanidade. Elas podem existir antes da escrita e, se não têm originariamente uma vocação linguística, adquirem-na facilmente. (NUNES, 2006, p. 47)
 
As listas de palavras nascem da alteridade. De acordo com Auroux, “o que faz deslanchar verdadeiramente a reflexão linguística é a alteridade” (1992, p. 22, itálico do autor). No caso, Auroux está considerando a escrita e aponta as listas de palavras ou de caracteres (caso dos chineses) como uma das primeiras práticas a configurar saberes linguísticos. Ele explica ainda que a alteridade pode advir de várias fontes; por exemplo, de textos canônicos da antiguidade, de palavras ou textos estrangeiros ou ainda da mudança de um estatuto do texto escrito, como deixar de ser suporte mnemônico para ser leitura (AUROUX, 1992, p. 23). Disto resulta o aparecimento primevo da filologia entrelaçada à lexicografia, afinal as listas serviriam à decodificação de textos antigos bem como deles adviriam.