Revista Rua


Maquinaria da privacidade
Machinery of privacy

Marta Mourão Kanashiro, Fernanda Glória Bruno, Rafael de Almeida Evangelista e Rodrigo José Firmino

Recentemente, enquanto uma série de textos jornalísticos vêm anunciando o fim da privacidade, e grupos ativistas se empenham em protegê-la, governos buscam regulamentá-la e outros tantos autores (Bauman, 2011; Lyon, 2003 etc) vem apontando o deslocamento dessa noção. Tendo em vista esse panorama, a ideia inicial deste artigo partiu da questão: como se delineia a privacidade da qual se fala hoje, quando se busca constatar seu aniquilamento, protegê-la, ou regulamentá-la diante das novas tecnologias que permitem a comunicação e também o monitoramento, a identificação e a vigilância? O que está sendo produzido ou deslocado nesse processo?
Em seu filme Imagens da prisão (2003), o cineasta Harun Farocki, aborda elementos da sociedade disciplinar de Foucault (2000) e da sociedade de controle de Deleuze (2000), que espelham muito bem a diluição de conceitos aqui tratada. Podemos assistir com Farocki a passagem do conceito de indivíduo como sujeito e objeto de saber na constituição das disciplinas, para o fluxo de dados e informações, na constituição do controle (KANASHIRO, 2006).
No que concerne à privacidade, há em Farocki pistas muito interessantes dessa transformação. Ao apresentar uma recombinação[1] de partes de filmes sobre prisões, em que guardas espiam pelas portas e frestas a sexualidade dos prisioneiros, Farocki parece delinear uma certa concepção disciplinar de privacidade por meio de sua transgressão naquele espaço. Já em outro momento do mesmo filme, o cineasta nos mostra a observação pelos guardas de imagens de câmeras de vigilância em uma prisão na Califórnia (EUA), em que os vigilantes criam possibilidades de brigas entre presos nos pátios da prisão para assisti-las pela tela e apostar naquele que venceria, ou naquele que sairia vivo da situação. Do espaço cela ao espaço pátio, do mais fechado, ao mais aberto (ainda que interno a prisão) passa-se da observação da sexualidade como transposição da privacidade para a observação da luta, da competição e da morte[2], e respectivamente do prazer sexual, para o prazer do ganho monetário com a aposta


[1] Vale notar que nenhum plano foi filmado pelo videasta e que a obra de Farocki se realiza pelo processo de recombinação de imagens e informações já existentes e finitas. Neste sentido, o próprio filme é processo operatório vigente no controle. Orlandi (2002) ao retomar a pergunta “Que estamos ajudando a fazer de nós mesmos”, aborda as combinações de forças no homem e de forças do fora apontando uma forma dominante em cada configuração histórica, e com relação ao século XX argumenta que independente da forma que é necessário levar em conta o tipo de combinação de forças que o caracteriza. Orlandi, retoma a leitura de Deleuze sobre Foucault e aborda esse processo operatório de recombinações: “tem-se uma noção das novas forças do fora quando se pensa o finito-ilimitado; é que essas novas forças são aquelas próprias dos conjuntos compostos por um número finito de componentes, mas passíveis de enveredarem por uma diversidade praticamente ilimitada de combinações, o que abre às forças atuantes no homem uma ilimitação de interferências neste ou naquele domínio, como o do código genético” (Orlandi, 2002: 222)
[2] Direito de morte é algo que para Foucault (1988) relaciona ao poder soberano, típico portanto das sociedades de soberania. Ao apontar aqui a morte, não estamos argumentando a presença de elementos de soberania no contexto do controle (apesar de julgarmos interessantes as investigações que se debruçam sobre sobreposições de elementos disciplinares e de controle). A morte aqui se vincula ao extermínio e a competição.