Revista Rua


O silêncio nos morros: relações de sentido silenciadas presentes nos livros Abusado e Cidade Partida
The silence in the hills: sense relations silenced in such books Abusado and Cidade Partida

Felipe Rodrigues

acentuam as diferenças culturais entre as pessoas do morro e do asfalto. Como exemplo disso, Caco contextualiza os “mutirões” realizados pelos moradores do bairro de Santa Marta na “arquitetura” do local.
            Em 1940, os barracos de Santa Marta abrigavam dezenas de famílias vindas do interior fluminense e também de ex-escravos de Minas Gerais. O Rio de Janeiro tinha então menos de 100 favelas, com cerca de 140 mil pessoas, em sua maioria migrantes. Em 1960, esse número já chegava a perto de um milhão de pessoas. 
Os migrantes erguiam seus barracos na parte mais alta dos morros, para fugir da vigilância dos guardas florestais que expulsavam quem derrubasse árvores para construir moradias. A perseguição só acabou quando a Igreja Católica se tornou aliada da favela, com o bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, Dom Hélder Câmara. O religioso defendia a fixação das favelas, levando os benefícios da urbanização aos seus moradores.
 
A água potável da rede pública também só chegou à Santa Marta, em 1960, por influência de Dom Hélder Câmara. Ele buscou apoio externo e se envolveu pessoalmente na construção de um reservatório da capela do pico do morro (...) eles participaram do esforço coletivo para carregar o material de construção no ombro e assentar tijolo por tijolo na grande obra do reservatório, uma caixa de alvenaria com capacidade para 200 mil litros d’água (...) Pronto o reservatório, num clima de euforia, os próprios favelados providenciaram a construção de uma rede de distribuição de água pioneira, numa ação coletiva que envolveu trabalhadores, desocupados, malandros e bandidos na obra de maior orgulho da história de Santa Marta (grifos nossos). (BARCELLOS, 2004, p. 67)
 
            Além da influência da Igreja na construção do local, a citação mostra a solidariedade em nome de um bem comum: a melhoria da favela. Integrantes do tráfico e população local se aproximam para tornar o lugar, em que moram, mais agradável. A falta de políticas públicas e a consciência de que uma mobilização é necessária fazem com que os criminosos do local tratem os demais como iguais. Nesse caso, a deontologia marginal não interfere no andamento de melhorias da favela.
No morro do Santa Marta, havia os chamados “Tribunais de Sangue”, em que os bandidos donos do morro decidiam o destino de pessoas em julgamentos que culminam muitas vezes com execuções sumárias. São esses tribunais que ajudaram a consolidar, pelo medo, o poder do trio (Juliano, Claudinho e o irmão, Raimundinho) na gerência do morro. Foram julgados homens indisciplinados e suspeitos de colaborarem com a polícia (o ódio aos informantes pode ser considerada a primeira regra da deontologia