Revista Rua


Cidade narrada, tempo vivido: estudos de etnografias da duração
City told, Time lived: Studies in Ethnography of the Duration

Ana Luiza Carvalho da Rocha, Cornelia Eckert

O pesquisador, mediante seu narrador, agencia uma interlocução para arranjar um cenário de evocações em que o habitante pode “transcriar”[1] imagens e formas de ler a si na cidade refigurada no tempo da narrativa. Neste jogo de reciprocidade cognitiva, o problema da refiguração do tempo pela narrativa se vê transportado para o nível de uma ampla confrontação entre uma aporética da temporalidade e uma poética da narratividade (Ricoeur, 1991: 8).
Esta declaração epistemológica nos faz seguidoras de categorias arquitetadas por Paul Ricoeur em sua obra O si-mesmo como um outro em que o narrador é vulnerável à ação do tempo que o constrói na “ipseidade” (reconhecer-se a si mesmo, no tempo narrativo) ultrapassando a identidade-mesmidade sobre os traços da experiência temporal que separam identidade-idem e a identidade-ipse na formulação da identidade pessoal. A noção de identidade narrativa só ocorre no processo de ipseidade, tal qual arquiteta Ricoeur, uma distensão no tempo da identidade de um si-mesmo relacional, que supera as classificações dicotômicas, as identidades fixas, abrindo-se no circulo hermenêutico, a palavra do mundo em sua circularidade e reciprocidade.
Nesta acepção, não são as representações sobre a cidade em suas lógicas e feitos externos que o habitante racionaliza, mas a interpretação que faz de sua própria experiência de sujeito da memória que o inscreve num mundo amalgamado de sistemas práticos e sistemas simbólicos. O narrador que pulsa a cidade em sua voz e em sua escrita (no caso de autobiografias, crônicas, contos, entrevistas escritas etc.) momentaneamente ordena e ultrapassa as “identidades emblemáticas” (referência a Émile Durkheim) e “identidades contrastivas” (referência a Pierre Bourdieu) que o aprisionam na analogia e na reprodução da mesmidade, para se estender agora em uma “identidade narrativa” (Ricoeur, 1997). Nesta obra de restauro da narrativa, se estabelece o gesto necessário para impor um tempo que flui como inconstante no trajeto humano e que contempla “as representações subjetivas explicadas pelas acomodações anteriores do sujeito ao meio objetivo” (Piaget citado por Durand, 1989: 30).
A noção de identidade narrativa de Paul Ricoeur é que nos permite articular a dimensão temporal da existência humana com a constituição do conhecimento de si na experiência narrativa, posto que, para o autor, a identidade narrativa consiste em uma


[1] Referência ao poeta concretista Haroldo de Campos.