Revista Rua


Da parede ao corpo social: a carne que não satisfaz
From the Wall to the Social Body: the Meat Doesn't Satisfy

Gesualda dos Santos Rasia

talvez, ao efeito de naturalização da realidade hoje inerente à paisagem urbana, como se fosse uma categoria própria desse ethos, significada no sintagma violência urbana. A substituição, no sintagma, de violência por carne, produz um deslize que deriva outras formas de simbolização, porque produz polissemia no reaparecimento reformulado. E não deixa de reportar ao fato de que há uma parcela da população, a dos sem-parcela, que não tem carne sobre sua mesa diariamente.
Deslocando-se do âmbito das práticas de saúde e das questões ambientais, é possível relacionar o E1 a uma quarta-posição, na qual se inscrevem práticas religiosas que condenam o consumo de carnes. Exemplos dessa posição encontram-se em correntes do budismo, do hinduísmo, do islamismo e do judaísmo, cuja interdição recai, essencialmente, sobre a carne de porco. No âmbito da tradição cristã ocidental, ainda se preserva, em algumas comunidades e de parte de algumas pessoas, a prática de abstenção de carnes na Sexta-feira da Paixão. As razões de cada corrente mereceriam abordagem à parte, na perspectiva de se reconstituírem os domínios de memória que sedimentam de modos diversos a mesma postura de modos. No entanto, o ponto de encontro entre elas, é a noção de pecado, de transgressão, que não gratuitamente associa-se, na dimensão humana, a carne em oposição ao espírito.
Vale dizer que se está diante de um lugar de deriva, com possibilidade de abertura para outros sentidos, preenchidos pelo leitor transeunte; lembrando, porém, a afirmação de Orlandi (1996: 66), de que “a interpretação não é livre de determinações. Ela não pode ser qualquer uma e não é igualmente distribuída na formação social.”
A parede, não aleatoriamente qualquer uma, mas a de um açougue, é o suporte de diferentes modos de pensar e de dizer, é o lugar onde se instaura a voz social que afronta o establishment da normalidade tanto do comércio quanto do consumo de carnes. E, tal como um muro, constitui-se ponto de cisão entre grupos sociais e culturais, simbolizando a divisão, materializada pela linguagem que nela se encontra decalcada.