Revista Rua


Tecnologias do corpo: metáforas da sutura e da cicatriz
Technologies of the body: metaphors of suture and scar

Aline Fernandes de Azevedo

Entretanto, é na ordem do invisível de uma rede interdiscursiva que os sentidos se constituem, tomam corpo, a partir de um complexo extralinguístico que comporta um conjunto de imagens esquecidas, apagadas ou negadas. A “eficácia omni-histórica da ideologia”, diz Pêcheux (1990, p.8), consiste em sua “tendência incontornável a representar as origens e os fins últimos, o alhures, o além, o invisível”.
Na aproximação das palavras de Pêcheux com o conceito de tecnologia corporal, diremos que a relação contraditória e tensa do movimento entre sutura e cicatriz é uma relação fundamental ao engendramento do sentido, em que o invisível é aí imediatamente colocado. Daí, convém afirmar que, devido ao atravessamento da ideologia e do inconsciente, a cicatriz que se formula a partir das práticas corporais comporta sempre algo para além do visível do processo parafrástico, ou seja, a produção de sentidos para os corpos será sempre inevitavelmente afetada pelo invisível.
Nesse sentido, o conceito de tecnologias corporais consiste na compreensão da forma com que a ideologia dominante de nossa formação sócio-histórica conduz nossa relação com o invisível, e essa administração torna-se visível nas próteses e na identificação do sujeito com esse Outro, a Tecnologia, comandando as relações de sentido. Nessa direção, é possível afirmar que o conceito de tecnologia corporal abarca o universalismo da tecnologia se inscrevendo insidiosamente no corpo, pelo movimento do desejo, procurando suturar as brechas ao mesmo tempo em que produz cicatrizes.
Ainda, esse processo de sutura/cicatriz não é apenas da ordem da ideologia, mas do inconsciente. Como bem colocou Pêcheux, Ideologia e Inconsciente estão materialmente ligados, embora não se confundam. O que a teoria Freudiana vai nos ensinar, relativo ao inconsciente, é que os pensamentos inconscientes se revelam como aquilo que se mostra em ausência, como nos sonhos. Ou ainda, conforme Lacan (1998), o inconsciente se funda na hiância, na falha onde o recalcado se releva, no capítulo vazio e censurado de nossa história. O inconsciente, estruturado como linguagem, se instala no lugar do vazio do sentido, produzindo respostas à ferida narcísica. E como a hiância é o lugar do não realizado, do impossível, lugar de polissemia, o movimento de tensão entre tamponar/obliterar a falta e fazer cicatriz se mostra no jogo entre visível e invisível.