Revista Rua


Cidade e cultura: conflito urbano e a ética do reconhecimento
City and culture: urban conflict and the ethics of recognition

Vera Pallamin

 

Os reincidentes desfechos “policiais” destas ocupações têm reafirmado a opção da municipalidade e suas estratégias sociais, de que é melhor manter o descalabro destes edifícios lacrados. Objetivam desestimular a “ousadia” dos sem teto em pensar em habitar tais imóveis. Querem fazer crer que estas pessoas não devem fazer política, não devem de modo algum mexer em nenhum vetor do dano imposto às suas vidas e sim carregá-lo quietos, sem nada fazer para deste se livrar. No entanto, quando estes movimentos sociais se calam, cala-se a própria democracia, termo tomado aqui não como o nome de um regime, mas como sinônimo do modo de ação política conflitual em arena pública.
Como visto com Honneth e Rancière, o reconhecimento só ocorre através de lutas e a lógica do dano dirige-se à negação do reconhecimento experienciado pelos dominados. Se há algumas aproximações entre ambos, o modo como Rancière entende a lógica específica do político, distancia-o de Honneth. Para ele, a lógica do político e seu princípio fundamental assenta-se na radical igualdade de todos os indivíduos. Este é o único universal existente neste campo. Esta igualdade não deriva – e nunca derivará – das desigualdades e hierarquias que fundam a lógica social, reino das oligarquias. 
O ponto central que diferencia ambos os autores em relação à ética do reconhecimento deriva justamente das implicações postas por Rancière em relação à lógica do dano. Na matriz pensada por Honneth, as lutas por reconhecimento são pensadas, em última instância, na chave da reconciliação, retendo nisto, muito do esquema hegeliano. “A divisão entre sujeitos é substituída por uma ampliação da auto-representação e da representação de outros.”[13] A luta é tida como o meio para se atingir graus maiores de entendimento, levando a visões pacificadas dos seus campos.
 
[Porém] “Se a ordem social é inevitavelmente constituída como uma estrutura hierárquica, há um grande perigo na tentativa de definir a luta por reconhecimento em termos de reconhecimento da contribuição do indivíduo à sociedade, como Honneth faz. Em última instância este reconhecimento só atinge a conservação de uma ordem social que está estruturalmente baseada na desigualdade.”[14]
 
Rancière não se aproxima deste modo teleológico de compreensão dos conflitos políticos. Como explícito no seu emprego filosófico da expressão ‘partilha do sensível’, ele coloca o movimento de comunhão e de divisão no coração mesmo de todo momento reconciliado. Em meio a este sensível sempre dividido, cabe-nos inevitavelmente a tarefa de verificar os termos de operação da igualdade, uma tarefa, a rigor, infinita.


[13] Deranty, Jean-Philippe. Jacques Racière´s contribution to the ethics of recognition. p. 138.
[14] Idem.