Revista Rua


Cidade e cultura: conflito urbano e a ética do reconhecimento
City and culture: urban conflict and the ethics of recognition

Vera Pallamin

 

convencimento social de que as “soluções razoáveis” são estas impostas pelo estado e seus especialistas, pela esfera policial, afirmando que não há nada mais a fazer senão o que está aí.[11]
 
Quando se quer [porém] substituir a condução da política dos litígios pelo tratamento gestionário dos problemas, vê-se reaparecer o conflito sob uma forma mais radical, como impossibilidade de existir, como puro ódio do outro.[12]
 
Os movimentos por moradia e as ocupações que vêm ocorrendo em São Paulo, desde 1997, são nitidamente de natureza dissensual e, neste sentido, são agentes fundamentais do político nesta cidade. São iniciativas operadas por grupos dos “não contados” na ordem social, dos que não têm vez. São grupos que experienciam de modo dramático a lógica do dano político, lógica que desfaz todas as suas tentativas de sua inclusão na esfera da cidadania. Ao adentrarem um espaço relegado, como era o Edifício Prestes Maia, e o transformarem num abrigo e objeto de conflito, estas pessoas encetaram um modo de rejeitar o destino que lhes é imposto socialmente, através do “desentendimento” de regras sociais de dominação que os subjugam. Buscaram verificar na prática o imperativo político da igualdade, forçando a arena política a criar cenas de diálogo que de outra forma não existiriam, já que lhes é negado o direito à fala. Estes movimentos, em conjunto, criando “cenas polêmicas”, agiram de modo a expressar que não estão predispostos a se sujeitarem ao fim danoso que lhes é reservado pelas decisões conjuntas de uma elite que mantém milhares de domicílios fechados no meio da maior metrópole do país, e por um estado conivente com tal situação.
Pessoas abandonadas e prédios fechados transformam-se, no exemplo dos cinco anos da ocupação, em sujeitos políticos e lugares litigiosos. Inicialmente anônimos, sem teto, passaram a operar um modo próprio de subjetivação política capaz de lhes configurar um “nome” e um objetivo. Estes sujeitos desafiaram o princípio organizacional da sociedade que lhes diz não estarem aptos a terem visibilidade e a “ocupar” um lugar no “centro”, considerando-se aqui a ambigüidade do termo. Foi o conflito em torno desta questão que os constituiu como uma comunidade. Trata-se, portanto, de uma comunidade de litígio, longe da idéia de comunidade de natureza quase religiosa, cuja subserviência é tão elogiada pela ideologia consensual.


[11] Rancière, Jacques. O Dissenso, p. 379.
[12] Idem, p. 380.