Publicidade contra a violência no namoro: uma abordagem discursiva


resumo resumo

Christina Barbosa Guimarães Ferreira
Eni Puccinelli Orlandi



Introdução

 

Durante toda minha prática pedagógica, que iniciei logo após o término da faculdade em Letras, em 2006, sempre me causou um certo estranhamento o modo como a leitura e a escrita são tratadas e trabalhadas em sala de aula, de forma aleatória e fragmentada, muitas vezes não fazendo sentido, para o aluno, aquilo que ele lê e escreve. Partindo dessa premissa, apresentamos no Mestrado Profissional em Letras (ProfLetras), um projeto de intervenção, que, devido à Pandemia da COVID 19, foi transformado em propositivo, trabalhando um tema que pudesse realmente fazer sentido para eles. Nossa proposta foi trabalhar a leitura e a escrita, tomando como tema a “violência no namoro”.

Nosso trabalho é sustentado teoricamente na Análise de Discurso de linha pêcheuxtiana, iniciada na França, que coloca no centro da discussão a determinação histórica dos processos de produção de sentido, e que tem Eni Orlandi como sua precursora no Brasil. Dessa forma, buscamos trabalhar a leitura e a escrita de nossos alunos com materiais de campanhas publicitárias que tratam do tema da violência das relações de namoro.

Trabalhar com o tema violência, nos dias atuais, é um desafio extremamente importante, principalmente quando essa violência atravessa os muros das instituições de ensino e passam a refletir no processo de ensino aprendizagem dos alunos. A escola tem um papel desafiador nesse processo: ou se omite em relação à violência nas relações afetivas, vistas/sofridas/descobertas dentro da escola, ou assume que existe um problema e busca meios de tentar resolvê-lo ou minimizá-lo.

Durante o ano letivo, vemos alunos que mudam seu comportamento após iniciarem um relacionamento amoroso, ouvimos jovens contando histórias de colegas que mudaram a forma de se vestir por causa do namoro e até mesmo de amizades desfeitas por imposição do(a) namorado(a). Como dissemos acima, isso é refletido no processo de ensino aprendizagem dos alunos, o que faz com que as vítimas dessa violência diminuam sua produtividade e suas notas escolares. Esses são sinais a que os professores devem estar atentos.

Para iniciarmos nossa fala sobre esse tema, precisamos entender, como nos falam Assis e Marriel (2016, p. 42), que “A violência é o resultado da complexa interação de fatores, individuais, de relacionamentos estabelecidos, comunitários e sociais”. Por isso, a escola precisa criar um canal de diálogo para que esses jovens se abram com pessoas que possam realmente dar-lhes condições de compreender os processos de produção da violência que estão vivendo. Observemos o que dizem Santos e Murta (2016):

 

Por serem não raro os únicos a tomar conhecimento de que a violência no namoro está acontecendo, a resposta dos pares a esse tipo de ocorrência é muito importante, pois sem a intervenção de um espectador a vítima pode ficar muito isolada. (SANTOS; MURTA, 2016, p. 792).

 

A influência que os pares – nesse caso, colegas e professores – podem ter no namoro dos adolescentes pode afetá-los tanto de forma positiva quanto de forma negativa, fazendo-se necessária a discussão sobre a pressão e cultura dos pares na formação e manutenção de relações intimas dos adolescentes. É preciso criar condições para os adolescentes aprenderem a compreender e distinguir os conselhos que recebem em relação a problemas no namoro de forma significativa e consequente, para que, assim, consigam promover relações mais saudáveis.

A leitura e a escrita serão praticadas nas atividades propostas para que esses alunos, pela sua escuta discursiva, tornem visíveis os sentidos neles constituídos e possam se colocar como autores do próprio dizer, em relação ao tema proposto. Orlandi (2012) coloca a leitura, discursivamente, considerando a materialidade da linguagem e sua não transparência, como um dispositivo teórico de interpretação. Como afirma Pfeiffer (1995),

 

Para entendê-la como tal, é preciso que compreendamos o funcionamento da interpretação na linguagem. O trabalho da interpretação se encontra onde se dá o deslize dos sentidos, onde língua e história se ligam pelo equívoco. É no movimento em que há trabalho ideológico que há o trabalho da interpretação, se levarmos em conta que sujeito algum é despossuído de sua singularidade. Na linguagem, que é constitutiva do sujeito, temos o trabalho do mesmo e do diferente. Há ruptura no mesmo e há o mesmo no diferente. (PFEIFFER, 1995, p. 02).

 

Assim, na perspectiva discursiva, a questão da interpretação traz, portanto, para si a sua relação com a ideologia. Desse modo, o professor tem de criar e/ou possibilitar aos alunos condições para que tenham um espaço para as interpretações, a fim de que os sentidos façam sentidos para eles e para que se constituam como autores dos seus dizeres, conseguindo dimensionar a presença da ideologia na produção de sentidos (de namoro e de violência, neste caso). Segundo Orlandi (2012):

 

Diríamos que o autor é a função que o eu assume enquanto produtor de linguagem. Sendo a dimensão discursiva do sujeito que está mais determinada pela relação com a exterioridade (contexto sócio-histórico), ela está mais submetida às regras das instituições. Nela são mais visíveis os procedimentos disciplinares. (ORLANDI, 2012, p. 103).

 

Como sabemos é ao sujeito autor que se imputa autonomia e ao mesmo tempo responsabilidade. Também, acrescentamos o que diz Pfeiffer (1995), quanto à função autor do aluno:

 

Muitas vezes falei da impossibilidade, produzida pela escola, dos alunos se posicionarem na função autor. O que quero acrescentar com todo cuidado que julgo necessário, é que à escola não cabe, ao meu ver, produzir a passagem do aluno à posição da autoria; a ela cabe sim dar condições para que tal passagem se dê. (PFEIFFER, 1995, p. 129).

 

A escola só vai sair desse processo de simulação (PFEIFFER, 1995) no qual aluno e professor não ocupam posições realmente livres, mas apenas reproduzem aquilo que já está posto, quando criar/permitir que haja lugares abertos para os gestos de interpretação dos alunos, no qual eles realmente sejam autores daquilo que pensam, dizem e escrevem, e saiam da função de meros reprodutores/espectadores do que a escola lhes manda fazer. Cabe-nos, enquanto professores, escolher materiais, trabalhar atividades, desenvolvendo práticas discursivas de tal maneira que caminhem para estes resultados almejados.

É muito importante que o professor tenha, de forma bastante clara, a noção de que o texto deve ser visto “como unidade de sentido em relação à situação, isto é, às condições de produção” Orlandi (2019, p. 154). Considerando que a unidade do texto e a constituição da posição-sujeito autor estão articuladas, de acordo com a análise de discurso.

Para que os alunos possam se constituir como sujeitos autores de suas leituras e possam produzir diferentes efeitos de sentido em suas formulações escritas, vale aqui referir a uma fala de Indursky (2016), considerando a escrita uma das formas de materializar os discursos:

 

Não que a escrita seja a única via para a materialização do discurso, mas, certamente, ela é uma das formas de fazê-lo. E, também, faz-se mister lembrar que ela é uma das funções discursivas do sujeito, por meio da qual podemos capturar marcas de sua subjetividade, e é por meio dela que se dá entrada no simbólico da discursividade em circulação. (INDURSKY, 2016, p. 34-35).

 

Com estas reflexões, observamos a relação entre a unidade do texto e a posição-sujeito autor na escrita em sua materialidade.

Diante do que já apresentamos aqui, nesse artigo, vamos propor ao leitor nos acompanhar na análise da 2ª atividade proposta na 3ª etapa, que constitui o Capítulo 3, que é um recorte da nossa dissertação: “Violência no Namoro: um olhar discursivo sobre as práticas de leitura e escrita na escola”.

Objetivamos, com nossa proposta, que o aluno se coloque na posição de autor de suas leituras e sua escrita, elaborando sua prática escolar, na compreensão dos sentidos de violência. Queremos que nosso leitor compreenda que a questão do ensino não se desconecta das questões sociais, políticas etc.

Nessa atividade escolhida para analisarmos aqui, trabalhamos com a constituição, formulação e circulação de campanhas publicitárias1. Fizemos essa escolha porque, segundo Thurow, Cazarin e Schneider (2017),

 

As campanhas publicitárias movimentam saberes que são reproduzidos pelo sujeito ao utilizar a linguagem. Esse sujeito, atravessado pela ideologia, indica sua posição frente ao dizer, deixando rastros das possíveis relações de forças que se estabelecem a partir da publicidade [grifos nossos]. (THUROW; CAZARIN; SCHNEIDER, 2017, p. 35).

 

A partir do que se pode compreender pela citação acima, o professor trabalhará textos publicitários com os alunos, de modo que, na campanha publicitária, eles compreendam a constituição da autoria e como se dá a construção dos sentidos nesses textos, sendo, dessa forma, capazes de trabalhar com o efeito leitor, criando um espaço de autoria, não ficando, como dizem os autores, na mera reprodução de saberes, mas sendo eles mesmos capazes de produzir outros sentidos, elaborando, assim, a sua forma de conhecimento da linguagem.

A seguir, vamos apresentar a atividade analisada, dentro dessa proposta aqui mencionada.

 

Definição da atividade: um recorte necessário

Durante toda a escrita da dissertação, propusemos atividades que trabalhassem com a leitura e a escrita, visando o desenvolvendo da posição-sujeito autor dos alunos. A atividade que escolhemos, para analisar nesse artigo, trabalha com esses objetivos propostos, que, aqui, foram delimitados para leitura e escrita nas campanhas publicitárias.

Trazer campanhas publicitárias para nosso trabalho não foi algo aleatório. Segundo Ernst-Pereira e Quevedo (2013),

 

O gesto de olhar − e mesmo o anterior, o de ver − é fundamentalmente um trabalho de leitura e, como tal, é realizado sempre por um sujeito histórico, atualizado no sujeito empírico/indivíduo, a partir de uma dada posição de interpretação e sob dadas condições de produção. (ERNST-PEREIRA; QUEVEDO, 2013, p. 268).

 

Então, sabendo que a discursividade está presente tanto no verbal quanto no não-verbal, produzindo sentidos, e inspirados nas campanhas vistas e discutidas em sala de aula, o professor proporá aos alunos, como prática que resulta das suas atividades, a criação de uma nova campanha publicitária. Para isso, o professor tem de constituir, nesse aluno, uma escuta que tenha como base um dispositivo teórico e analítico da interpretação, para dar condições a ele de compreender o processo de produção de sentidos das campanhas publicitárias a que ele está exposto.

Vale fazer algumas observações a esse respeito, já que consideramos que as campanhas publicitárias que escolhemos não trabalham com o consumo ou com fins comerciais, mas sim visam trabalhar com um problema social muito grave, que é o da violência.

A publicidade, como se sabe, pode se caracterizar como sendo propaganda ou serviço público. A publicidade que faz propaganda vende um produto, visa o consumidor. E a publicidade que se caracteriza como serviço público é a que tem como meta a sociedade, o cidadão. Como exemplo: A campanha de vacinação faz serviço público e não propaganda. Visa o bem comum social, a “informação” ao público etc. Então, as campanhas que utilizamos são importantes por levarmos esse serviço público para ser trabalhado em sala de aula na formação de práticas e valores com os alunos, em sua inserção social.

 

Publicidade e Análise

Nessa atividade que apresentamos para analisar nesse artigo, um de nossos objetivos principais foi trabalhar textos publicitários com os alunos, para que possam compreender a elaboração da autoria, na criação de uma campanha publicitária, manifestando naquilo que ele produz, como campanha, os sentidos que conseguiu aprender sobre a questão da violência, ou seja, aqueles sentidos que são significativos para ele.

Para isso, escolhemos, aqui, a atividade nomeada como “Constituição, formulação e circulação de campanhas publicitárias”, que faz parte de nossa dissertação. Importa, assim, refletir sobre os impactos positivos e/ou negativos produzidos pela campanha publicitária, dando visibilidade aos processos de constituição, formulação e circulação dessas campanhas, compreendendo como se dá a produção de sentidos.

Em nossa dissertação, visando à circulação de nosso trabalho entre pessoas interessadas que trabalham com escola, ensino, linguagem etc, produzimos um caderno de atividades discursivas, que colocamos como apêndice em nossa dissertação, já citada anteriormente. Passaremos, em seguida, a apresentar os materiais publicitários escolhidos para análise, nessa atividade do nosso caderno.

 

Atividade escolhida para análise

Apresentamos, abaixo, um quadro com as especificações que fizemos para cada etapa e atividade. Neste quadro, está especificada, na 3ª etapa de nosso trabalho, a atividade 2, que incide sobre a análise de materiais publicitários.

 

 

Para trabalhar com esses materiais publicitários, propusemos ao professor dividir a sala em grupos e distribuir os textos previamente selecionados para leitura. Cada grupo recebia um texto que, após a leitura, era discutido com o grupo e, depois, era aberta a discussão para toda a turma, momento em que os alunos poderiam se posicionar, de acordo com o ponto de vista de cada um. Nas discussões, eles poderiam observar como os sentidos são diferentes, ou se repetem, para cada um, sem se preocupar com a questão de certo ou errado, mas observando, nas diferentes “opiniões”, os distintos gestos de interpretação dos sujeitos em suas posições. Posições constituídas pela sua inscrição em diferentes formações discursivas, com sentidos com que se identificam. Outros materiais propostos por eles, durante esta fase, também mereceram atenção do professor.

 Ao final de cada aula, eram observados quais sentidos se apresentavam mais nas discussões e como isso produzia efeitos em cada aluno. Para que o professor pudesse ajudar a des-construir, a elaborar os sentidos que se faziam presentes, teriam que oferecer condições de produção que permitam deslizes e rupturas de sentidos que eles têm pré-construídos sobre violência.

 

Figura 1

A figura da campanha publicitária enfatiza, na imagem, um coração puro (em branco) dentro de um sistema vascular interligado por meio de outros sistemas, irrigado com sangue impulsionado pelas inúmeras batidas e pulsações, assim como acontece em qualquer ser humano, em pleno funcionamento. Significando o amor, prevalecem, nesse caso, batimentos cardíacos (frenéticos) que, em outra instância seriam naturais e necessários para dar vida a todos os órgãos vitais do corpo humano. Nessa figuração publicitária, o tamanho exagerado do coração assim como o desenho em arabesco da circulação “romantiza” a imagem, e leva a interpretar a batida do coração como estritamente ligada à vida, onde “bater” é amor, é luz, é vida brotando da vida!

Na legenda destacada na figura, “No namoro só bate o coração”, analisamos as cores presentes e destacadas. Também, faz parte da materialidade significante a distinção dessas cores, porque a legenda da figura nos remete à imagem do coração, nos fazendo ler de determinada forma. Essa imagem nos conduz a absolutizar junto à partícula “só” a questão do coração como “amor”, como “vida brotando da vida” e esquece que no namoro o “só bate”, destacado na cor preta e se diferenciando do restante da frase na cor vermelha, nos traz a ambiguidade da palavra “bater”. Essa palavra, aparecendo dessa forma, nos leva a outros sentidos que produzem um equívoco, podendo ter sentidos diferentes, significando “bate o coração” e, também, “bate no companheiro(a)/namorado(a)”.

Ainda nesse recorte, vimos o trabalho do efeito do pré-construído na figura, que é a violência. Algo que vem junto com a memória para constituir o sentido daquilo que funciona como já estando ali. A relação “tem homem que bate em mulher” está apagada no enunciado “No namoro só bate o coração”. O enunciado presente nessa campanha nos remete a pensar que algo, além do coração, pode, também, estar batendo nessa relação de namoro. Essa formulação poderia ter outras formas que não traria essa ambiguidade, como, por exemplo, a paráfrase “O coração pulsa mais forte no namoro”. Nesse momento, com suas observações, o professor começa a instigar a discussão sobre essa violência aceita ou naturalizada no namoro. A partir daí, o professor pode começar a mostrar que, no namoro, não deve ser aceito nenhum tipo de violência e que nenhuma violência pode ser considerada “normal” ou indistinguir-se do sentido de afeto.2

Aproveitando as discussões e com a proposição da construção de uma campanha realizada pelo aluno, o professor estará oferecendo condições para que ele busque trabalhar sua autoria, se apropriando – tornando próprio – do que fala e do que escreve.

Segundo Costa e Silva (2019, p. 96-97), “a autoria, principalmente, na escola, aparece sempre remetida à produção textual, no entanto, a constituição da autoria no contexto escolar é um processo que tem sido negado” Na maioria das vezes, a escola determina apenas repetições, não propiciando ao aluno condições para ocupar sua posição de autoria e, com isso, trabalhar sua posição-sujeito na escola e, fora dela, na sociedade.

Ainda segundo Costa e Silva (2019):

 

Da perspectiva da análise de discurso, o aluno ocuparia uma função autor toda vez que se representasse na origem do dizer, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não contradição e fim, ou seja, sempre que, mesmo ilusoriamente, na origem do dizer, produzisse uma unidade e se responsabilizasse por ela. (COSTA; SILVA, 2019, p. 97).

 

Infelizmente, o que vemos em nossas escolas é a negação desse espaço de autoria, muitas vezes, contribuindo para que o aluno apenas reproduza aquilo que lhe é “ensinado”. Não há como contribuir na formação de cidadãos críticos sem proporcionar condições de autoria que ultrapassem a paráfrase e dê espaço à polissemia dentro da sala de aula.

Figura 2

Essa outra campanha, interessante e ilustrada pela imagem acima, proporciona a identificação e a reflexão sobre agressões físicas dentro do ambiente familiar, onde o autor das agressões é um homem, na figura, bem trajado, e a mulher, aparentemente, também, bem trajada, é a vítima, tentando defender-se dos socos e murros com as mãos. Significando a desigualdade de força entre homem e mulher. A interpretação de que a violência ocorre em qualquer segmento da sociedade, rico ou pobre, está bem presente na figura, o que nos leva a compreensão deque a violência independe de classe social, gênero, credo ou cor.

Observando-se, agora, que as personagens interpeladas pela violência aparecem postas no interior de uma boca, que se mostra como um grito profundo escancarando o seu interior, podemos caminhar em nosso gesto interpretação. O outro fator preponderante, então, a ser considerado, e que a ilustração enfatiza é que, apesar dessa violência ser grave e rotineira, ela muitas vezes fica omitida da sociedade em geral, fica omitida das Instituições que protegem o direito das vítimas, ficando entre as quatro paredes do casal. As razões dadas são, em geral, a pressão psicológica do autor das agressões, a ameaça ou talvez a vergonha mesmo de fazer a denúncia às autoridades responsáveis pela apuração e julgamento dos agressores. Os pensamentos podem até vagarem para longe, mas as palavras sobre os fatos morrem dentro da boca da vítima – efeito de metonímia produzido pela figura – , ficam restritas ao silêncio da sua dor.

Ainda sobre essa campanha, vimos no dizer “A violência esconde-se no silêncio” que essa violência pode não ser explícita, grito voltado para o interior, sendo o silêncio, nesse caso, uma forma de fuga, de pseudoproteção de um ato grave e inaceitável para a sociedade. Silêncio que acaba protegendo o agressor.

Em seu livro “As Formas do Silêncio”, Orlandi (1992) nos diz que o silêncio não fala, mas ele significa. A autora distingue diferentes formas de silêncio, como o silêncio fundador e o silenciamento, ou política do silêncio. Há um modo de estar em silencio, diz a autora, que corresponde a um modo de estar no sentido. E há também o silenciamento, que cala o sujeito ou impede que ele produza outros sentidos.

Quando se trata de violência, seja ela no namoro ou em qualquer outra situação, o silêncio pode significar de muitas maneiras, como por exemplo, o medo do agressor, o medo de julgamentos, o medo de exposições, dada, em nossa sociedade, à naturalização dessa violência, além da relação de poder que o agressor tem sobre a vítima, sempre a culpabilizando por seus atos violentos. O sujeito que sofre a agressão está, nessas condições, quase sempre submetido à uma relação de silenciamento. É com esse silenciamento que, na escola, o professor pode e deve lidar.

Esse trabalho, na escola, precisa, com urgência, esclarecer aos alunos o que é a violência no namoro, quais são seus sentidos. Porque os sentidos de violência nem sempre estão explicitados ou são visíveis. O boletim informativo do Centers for Disease Controland Prevention (CDC, 2012, p. 01) define a violência no namoro entre os jovens como sendo:

 

Violência física, sexual ou emocional dentro de um relacionamento de namoro, bem como a perseguição, onde os envolvidos podem ser parceiros atuais ou ex-namorados. Tal violência pode ocorrer num contato pessoal ou através de mídia social. (CDC, 2012, p. 01).

 

Essa definição deve ser explorada junto aos alunos, principalmente para nosso público-alvo, que são alunos do 9º ano do ensino fundamental, pois, nessa fase, eles acabam sendo reféns de redes sociais e toleram a violência, muitas vezes, por medo da exposição, e o agressor, sabendo disso, passa a chantageá-los em troca do seu silêncio, pois seu objetivo é ter sempre mais poder e mais controle sobre a pessoa envolvida no namoro.

Nas redes sociais, com o uso mais geral do digital, formas de violência aumentaram e outras formas até foram criadas, o que, sem dúvida, atinge os alunos de uma forma agressiva. Por isso, também, é importante que o professor esteja atento à questão do digital e das formas como a violência chega aos alunos por meio dele. Toda essa conjuntura, em que se produz a violência, deve ser trabalhada junto aos alunos, pois o digital particulariza formas de violência nas relações afetivas, entre outras.

 

Figura 3

Essa última ilustração, trazida para esse artigo, nos remete à reflexões de lados opostos, resultantes de dois efeitos de sentidos extremos, em que o amor pode significar sentimento puro e sincero, e, por um efeito metafórico, em uma deriva, em que se passa de uma formação discursiva para outra, irrompe a contradição, e o amor pode ter o significado de um sentimento carregado por violência e desrespeito.

É o amor que não é amor, amor violento, que é repudiado pela sociedade, expresso no seguinte ditado popular: “Amor para inglês ver”. Ou, em outro modo de significar, por um deslize, pois, com o mesmo número de letras que se escreve “love”, se escreve, também, “hate”. Amor e ódio se cotejam nessa discursividade da violência no namoro, como nos sugere a figura.

Podemos considerar que há uma relação parafrástica entre as imagens, e que há, nessas paráfrases, um deslizamento de sentidos que sempre ocorre de um para o outro, onde um vai significar partilha, e outro ódio.

Na observação da figura 3, nos chama atenção o movimento de mão direita fechada, com punho estendido para frente, utilizado para representar o popular TMJ “tamo junto”, quando cumprimentamos outra pessoa que conhecemos ou acabamos de conhecer, pela qual temos consideração, podendo ser um amigo, parente, colega de trabalho ou o(a) namorado(a).

Esta mesma imagem é ressignificada, nos tempos atuais de pandemia da Covid-19 que assola o mundo, pois foi adotada como protocolo de biossegurança de prevenção pelos órgãos de saúde, ou seja, além de representar um círculo de amizade respeitoso, agora também é um ato de amor pela vida. A prática do auto cuidar-se e ao próximo, evitando-se o contato direto com o antigo aperto de mão, agora poupado pela sociedade por questões de saúde e segurança, para conter a proliferação do vírus.

Note-se que, nas condições de produção, que analisamos, o punho fechado passou a caracterizar um ato de “AMOR” tatuado nos quatro dedos, traduzido para a língua inglesa com a palavra “LOVE”, simbolizando que o amor atravessa a humanidade em suas variadas nações e tribos com seus diversos idiomas e dialetos falados no planeta. A palavra “love” evoca o planeta, o global. Enfatizamos aqui, que o uso da palavra em inglês “LOVE” funciona, também, para mostrar grande amor ao parceiro(a), que mesmo em outra língua, destaca seu amor pelo companheiro(a). Observem-se os dedos unidos para formação do gesto de amor.

Por outro lado, o mesmo punho fechado, com a mão direita, representa a atitude de um soco violento e de uma agressão física em circunstâncias em que foi rompido o diálogo e o respeito. Veja que o gesto aqui significa a brutalidade e a ameaça psicológica de supremacia de força e ódio em que se tatua a violência pura, gratuita e injustificada.

Nesse gesto se tatua o “LOVE” no luto da cor preta, complementada por uma frase em português, versus o “AMOR”, representado na cor vermelha, mencionado na frase abaixo da figura, como em uma espécie de jogo de palavras, proposta pelo autor aos leitores, para encontrarem o caminho correto e construírem três formulações impactantes que, por si só, já são explicativas e taxativas acerca das contradições do amor, que são: F1. “Love violento não é amor.”; F2. “Amor violento não é amor.” e F3. “Namoro violento não é amor”.

Aqui nos deparamos com mais uma contradição: o amor violento. A palavra “amor”, encontrada junto à palavra “namoro”, seguida da palavra “violento”, nos interpela para um outro tipo de amor, praticado por pessoas agressivas, que indistinguem sentimentos de afeto por outra pessoa: um amor violento. Essa dubiedade de sentidos não deveria ser aceita por nenhum jovem, pois o amor deve seguir no caminho oposto à violência, não podendo ser o amor que “tudo suporta”.

O amor, na cor vermelha, nessa forma de significar, não nos remete à vida, mas à sangue gerado pela violência, sendo que deveria ser regado de acolhimento, parceria, sem gerar a violência no amor. O amor escrito na cor preta, se substitui ao amor afeição, que deve ser peça fundamental e intrínseca nas relações de namoro.

Na combinação de palavras e cores, o vermelho deveria estar significando o sangue que chega ao coração, e não como nessa associação de cores entre vermelho e preto, demonstrando sangue e luto, numa triste combinação.

 

Considerações finais

Passei muito tempo em sala de aula questionando a forma como a leitura e a escrita eram trabalhadas, ao mesmo tempo em que, via se distanciarem, dessa mesma sala, os problemas vividos pelos alunos e por toda comunidade escolar. Sempre me questionei sobre o que poderia fazer para preencher de sentidos nosso trabalho, trazendo os problemas, que os alunos vivem, para dentro da sala de aula, pois, como nos diz Orlandi (1996, p. 66-67) “as condições de interpretação não são iguais para todos, pois o conhecimento é distribuído de forma desigual”. E é em uma sala de aula que a divisão das formas de conhecimento se materializam, adquirindo concretude social. A sala de aula se apresenta, assim, como parte importante das condições do próprio ensino.

Vimos na escola, muitas vezes, a resistência que os alunos têm nas aulas em que trabalhamos leitura e escrita. Hoje, já consigo compreender um pedacinho desse problema, que é a falta de sentido que essas leituras podem ter para eles. Segundo Indursky (2001) ler e escrever “é mergulhar em uma teia discursiva invisível construída de já-ditos para desestruturar o texto e (re) construí-lo, segundo os saberes da posição-sujeito em que se inscreve o sujeito-leitor”.

Ao ingressar em meu Mestrado, muitos sentidos mudaram para mim. Conheci uma teoria que, finalmente, poderia fundamentar o trabalho que eu gostaria de desenvolver com os alunos: a análise de discurso. E essa teoria me afetou profundamente, revolucionando minha forma de ver o trabalho com a leitura e a escrita, de forma articulada, dentro de um tema relevante para os jovens: a violência no namoro.

Trabalhar com a leitura e a escrita é trabalhar com a constituição do sujeito-aluno dentro do espaço escolar e constituí-lo em sujeito também fora dele. Em nosso trabalho, conseguimos observar a importância que têm as perguntas em sala de aula. O modo como um tema é discutido contribui, ou não, para que os sentidos possam ser outros para que, a partir daí, nosso aluno tenha condições de se colocar como autor de suas produções textuais. Como nos diz Gallo (1992),

 

A assunção de autoria pelo sujeito, ou seja, a elaboração da função-autor consiste, em última análise, na assunção da “construção” de um “sentido” e de um “fecho” organizadores de todo texto. Esse “fecho”, apesar de ser um entre tantos outros possíveis produzirá, para o texto, um efeito de sentido único, como se não houvesse outro possível. Ou seja, esse “fecho” torna-se “fim” por um efeito ideológico produzido pela “instituição” onde o texto se inscreve: o efeito que faz parecer “único” o que é “múltiplo”, “transparente” o que é “ambíguo”. (GALLO, 1992, p.58).

 

Por isso, a escola não deve trabalhar para silenciar o aluno ou para que ele seja apenas mero reprodutor, a escola tem que produzir as condições que permitam que o aluno reflita sobre seu texto e os dos demais colegas e, a partir dali, por meio de um trabalho atento aos múltiplos sentidos possíveis, ou seja, um trabalho polissêmico, tire suas próprias conclusões e as signifique na escrita de seu texto. Tendo essas condições necessárias, ele poderá se posicionar, a partir dos sentidos que ele mesmo produz e não somente da mesma forma que o professor ou o autor do livro didático.

Des-naturalizar a violência, trazendo sentidos outros para a vida desses alunos, dá sentido ao trabalho do professor, que transcende os limites da sala de aula para contribuir com a sociedade, tornando-se um agente transformador e propiciando a nossos alunos condições para serem “deslocados” da posição inerte em que estavam significados em suas vidas.

Referências

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GALLO, Solange Leda. Discurso da escrita e ensino. 2.ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992.

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ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: No movimento dos sentidos. 6.ed. Campinas: Pontes, 2018.

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Data de Recebimento: 16/02/2022
Data de Aprovação: 25/03/2022


1  Estamos, aqui, apresentando um recorte de nosso trabalho. Em outra atividade de nossa dissertação, trabalhamos diretamente com a questão das Charges. Neste momento, vamos centrar nossa atenção nos textos publicitários, deixando, então, a charge trabalhada, em nossa dissertação, para ser analisada em outro artigo, que vamos apresentar em ocasião oportuna.

 

2  Essas considerações mostram que o professor, no ensino da produção do texto, pode movimentar valores importantes que, a meu ver, poderiam ser considerados no Projeto Político Pedagógico da escola.