Resenha



Roberto Civita: de aliado à vítima da globalização

Roberto Civita: from ally to victim of globalization

 

Vitor Carletti 1

ORCID: https://orcid.org/0009-0008-8196-2143

 

 

Resumo: A resenha faz uma leitura crítica do livro Roberto Civita: o dono da banca. A vida e as ideia do editor da Veja e da Abril. Propõe-se situar a biografia escrita pelo jornalista Carlos Maranhão no contexto da globalização a partir da definição elaborada por Santos (2000). O argumento é a que obra coloca Civita como um empresário de sucesso que pautou a opinião pública, mas que não foi capaz de entender o funcionamento da sociedade em rede, de acordo com a definição de Castells (2003). Além disso, o livro relata como o dono da Veja era responsável por colocar os interesses econômicos acima dos valores deontológicos da profissão (KOVACH; ROSENSTIEL, 2004) sem, no entanto, deixar para o leitor essa transgressão da ética jornalística evidente. A obra, portanto, possui um valor de memória e é rica em informações obtidas por meio de entrevistas e pesquisa no acervo da Editora Abril, mas deixa de mencionar os processos judiciais contra a empresa.

Palavras-chave: História da imprensa; Jornalismo; Globalização.

 

Abstract: The review makes a critical reading of the book Roberto Civita: the owner of the bank. The life and ideas of the editor of Veja and Abril. It is proposed to situate the biography written by journalist Carlos Maranhão in the context of globalization based on the definition elaborated by Santos (2000). The argument is that the work places Civita as a successful businessman who guided public opinion, but who was not able to understand the functioning of the network society, according to the definition of Castells (2003). In addition, the book tells how the owner of Veja was responsible for placing economic interests above the deontological values of the profession (KOVACH; ROSENSTIEL, 2004) without, however, leaving this transgression of journalistic ethics evident to the reader. The work, therefore, has a memory value and is rich in information obtained through interviews and research in Editora Abril's collection, but fails to mention the legal proceedings against the company.

Keywords: Press history; Jornalism; Globalization



Introdução

A globalização2 econômica e cultural e os novos padrões de consumo são fenômenos potencializados pelo jornalismo profissional, que, com mais intensidade, a partir do século XIX, ajudou a organizar os discursos das instâncias de poder em sociedades consideradas democráticas, como os Estados Unidos, Inglaterra e França. Os meios de comunicação passaram a criar, alimentar e a dividir o espaço da opinião pública3 com o Estado, a Igreja, a escola, a família e a política.

Com processos de alfabetização de grande parte da população e de industrialização tardios, no Brasil, a imprensa escrita ganhou mais leitores a partir da segunda metade do século XX com uma estrutura gráfica mais capacitada, distribuição em massa, diagramação atraente e o uso de fotografias de qualidade. É nessa época que Roberto Civita, herdeiro e depois dono majoritário do Grupo Abril consolida e lidera o segmento de publicações no país. O empresário foi um dos responsáveis pela disseminação da cultura escrita e a profissionalização do jornalismo, e a sua atuação se insere neste contexto em que as empresas jornalísticas foram fundamentais para expandir o capitalismo e a economia liberal.

O livro Roberto Civita: o dono da banca. A vida e as ideias do editor da Veja e da Abril, publicado pela Companhia das Letras, em 2016, exemplifica dois pontos fundamentais que ajudam a entender a história da imprensa no Brasil a partir da segunda metade do século XIX até os dias atuais. O primeiro trata da conquista de espaços pelas publicações lançadas pela família Civita. Como a Abril se transformou em um organização que liderou as vendas de revistas mas que, por outro lado, não soubera transportar com a mesma eficiência e rentabilidade sua expertise dos meios impressos para era digital. O outro ponto a ser destacado da biografia escrita pelo jornalista Carlos Maranhão é o relato de fatos que põem em xeque os valores do código deontológico do jornalismo diante das pressões econômicas exercidas pelo mercado.

Segundo o livro, a Abril, em 2001, tinha 13 mil funcionários. Em 2006, esse número caiu para 5.400. Em 2010, de acordo com cálculos de Roberto Civita, a maior editora da América Latina tinha lançado até aquele momento 350 publicações, entre periódicos regulares, especiais e one-shot (números únicos). Em 2013, ano da morte do empresário, o grupo de comunicação reunia 51 títulos e, três anos mais tarde, o quadro de trabalhadores da empresa era de 6.758.

Carro-chefe da editora e menina dos olhos de Roberto, a Veja ultrapassou a marca de mais de 1,2 milhão de exemplares em circulação no começo dos anos 2000, o que confirmava o poder que o empresário tinha e exercia sobre a política brasileira e a opinião pública em uma época em que as mentes e as atenções do público consumidor de informação jornalística não estavam voltados às telas de smartphones.

A revista nasceu em 11 de setembro 19684. A ditadura militar decretou em dezembro do mesmo ano o Ato Institucional Nº 5, que instaurou a censura prévia dos veículos de comunicação, fechou o Congresso Nacional e suspendeu o direito ao habeas corpus em caso de crimes políticos. Mesmo com as dificuldades de vendagens iniciais e o controle dos militares nas redações, Veja venceu os primeiros desafios e conquistou o leitor com furos de reportagens como no relato de Pedro Collor que denunciou, em 1992, um esquema de corrupção no governo de seu irmão e então Presidente da República Fernando Collor de Mello. A revista de informação mais lida do país pautava a política brasileira. O seu conteúdo editorializado sempre foi uma marca, mas também muitas vezes alvo de contestações como quando noticiou na capa que o cantor Cazuza, uma das primeiras figuras públicas no Brasil a assumir ser portador do vírus da Aids, agonizara em praça pública. O ex-líder do Barão Vermelho desmentiu o conteúdo da manchete daquela edição e houve intensa manifestação, por parte de artistas e jornalistas contrários ao enquadramento dado por Veja.

Roberto Civita, segundo o livro, era um entusiasta do livre mercado e da diminuição do papel do Estado na economia e um crítico ferrenho da burocracia estatal e do número de servidores públicos do Brasil. Era um liberal no pensamento, mas que tinha dificuldades de entender a transformação tecnológica pela qual passara o mundo nos anos 90 e a primeira década do século XXI. Civita apostou suas fichas na TV digital por assinatura, o que lhe rendera uma dívida milionária e comprometimento de seu poder de reação econômica.

Inovador e entusiasta da globalização, o empresário em meados da década de 90 não sabia mais onde estava pisando. Os custos de produção aumentaram. A publicidade — grande financiadora da Veja — se pulverizou, e o número de assinantes que, no passado foi uma das molas propulsoras da semanal, caiu. As receitas diminuíram, e o enxugamento da folha salarial foi inevitável. Esses fatos relatados pelo autor da biografia mostram que o mercado e a maneira como as pessoas passaram a consumir informação se transformaram, e parte do domínio da opinião pública passou a não pertencer aos Civita como no passado. Mesmo com o respiro financeiro em meados da primeira década dos anos 2000, com a crise de 2008, que esfacelou o poder econômico das empresas e de países, os últimos anos de Civita à frente da Abril foram marcados pela redução do império das publicações construído junto com seu pai, Victor Civita.

  Como relata Carlos Maranhão, Roberto, apesar de ser um assíduo consumidor de informações, relativizou as consequências da revolução digital que cominou na atual sociedade de rede5. O paradigma comunicacional mudou. Os meios de comunicação não teriam mais o domínio da emissão e foram obrigados a se adequar aos novos tempos e dividir o protagonismo com o público que é o dono do julgamento sobre a credibilidade6 da informação dos veículos tradicionais. O “dono da banca” que montou nos anos de 70 e 80 uma espetacular rede de vendas de assinaturas e fidelizou seu público não encontrou um modelo de negócio no universo digital que desse a sustentação financeira de que a empresa precisara para continuar a perpetuar a sua influência com o novo perfil de consumidor de informação que surgiu no século XXI.

O livro também se qualifica por trazer os relatos de episódios que evidenciam como o jornalismo é uma atividade que está sob constante pressão dos anunciantes e como essas situações minam os valores deontológicos da profissão que são a independência e o compromisso com a verdade7 dos fatos. Quando Roberto Civita manda Juca Kfouri parar de fazer reportagens na revista Placar sobre as falcatruas em que estavam envolvidos o então presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) Ricardo Teixeira e o da Federação Paulista de Futebol Eduardo (FPF) Farah, para não perder contratos de transmissão de jogos, o empresário renunciou ao papel social do jornalismo, que é o de tornar públicos supostos desvios de conduta por representantes da sociedade.

O trabalho de pesquisa com a gravação de 16 horas de entrevista com o dono da Veja, o acesso ao arquivo da Editora Abril e a costura diplomática com os filhos de Civita para publicar uma biografia autorizada merecem lugar de destaque porque permitiram a Carlos Maranhão mergulhar mais a fundo na história da família e da empresa. O autor foi um dos entrevistados da disciplina “A pesquisa histórica sobre a imprensa brasileira realizada por jornalistas”, ministrada pelo professor Victor Israel Gentilli, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), em 6 de outubro de 2021, pela plataforma Google Meet. Maranhão disse que pediu demissão da Abril onde trabalhou por 42 anos para buscar uma independência do objeto de estudo, no caso a vida de Roberto Civita. “Não via como fazer uma biografia independente se continuasse a como funcionário da empresa. Não havia sentido. Para mim, é claríssimo o conflito de interesses”, afirmou.

Esse distanciamento evocado, contudo, nem sempre é percebido nas linhas da biografia. Roberto Civita, na maioria dos relatos, é colocado como um homem super-inteligente, um empresário influente e um patrão generoso com os funcionários cujas críticas foram omitidas da obra. O distanciamento do objeto é uma premissa importante tanto na construção do relato como na honestidade intelectual para selecionar e editar o que merece ou não ser publicado. Em nenhum momento, por exemplo, o autor cita os inúmeros processos judiciais contra a Abril.

O fato de Mino Carta, primeiro diretor de redação de Veja, ter se recusado a dar entrevista a Maranhão para a produção da biografia é uma indicação de que arestas de versões dos fatos não foram devidamente aparadas para que o leitor soubesse das desavenças e intrigas que compuseram a vida de Roberto Civita. Entretanto, o autor disse que tentou falar com Mino, mas que o jornalista se recusou a dar entrevista como também fizeram Mario Sergio Conti (terceiro diretor de redação de Veja), Rui Falcão (deputado federal e ex-diretor de redação revista Exame), Luiz Frias (Folha de S. Paulo), Cossete Alves (amiga próxima a Roberto) e Daisy Carta (primeira mulher de Mino). “A única crítica que eu recebi (sobre o livro) foi de Mino Carta na revista CartaCapital, que eu descobri que tem um grave problema que é a ausência de leitores, porque pouquíssimas pessoas vieram comentar comigo”, disse Maranhão ao ser questionado durante a aula do Pós-Com da Ufes.

É inegável que o livro é uma compilação importante de 66 anos de história da imprensa brasileira, de 1947, ano de fundação da Editora Abril, até 2013, quando morre Roberto Civita. É constituído por uma apuração séria com entrevistas e pesquisa em acervo bibliográfico, duas metodologias que ajudam os pesquisadores a produzir conhecimento. Porém, deve ser um ponto de partida para entender as transformações pelas quais passaram os veículos impressos no Brasil depois da chegada e o domínio da comunicação touch screen. Além disso, a obra de Carlos Maranhão desmistifica o discurso de imparcialidade e independência, valores cruciais da ética jornalística e sempre usados pelos grandes veículos de comunicação para sustentar a sua credibilidade, hoje tão contestada por esse novo público das redes sociais.

 

Referências

CASTELLS, Manuel. Internet e sociedade em rede. IN: MORAES, Dênis de (org). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2012.

KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom. Os Elementos do Jornalismo. São Paulo: Geração Editorial, 2004.

LAGO, Cláudia; ROMANCINI, Richard. História do Jornalismo no Brasil. Florianópolis: Insular.

MARANHÃO, Carlos. Roberto Civita: o dono da banca — A vida e as ideias do editor da Veja e da Abril. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

 

Data de Recebimento: 19/10/2022
Data de Aprovação: 13/02/2022


1  Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Comunicação e Territorialidades da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). E-mail: vitorcarlettie@gmail.com.

2  Entre os fatores constitutivos da globalização, em seu caráter perverso atual, encontram-se a forma como a informação é oferecida à humanidade e a emergência do dinheiro em estado puro como motor da vida econômica e social. São duas violências centrais, alicerces do sistema ideológico que justifica as ações hegemônicas e leva ao império das fabulações, a percepções fragmentadas e ao discurso único do mundo, base dos novos totalitarismos — isto é, dos globalitarismos — a que estamos assistindo (SANTOS, 2000, p. 38).

3  Quando, na metade do século XIX, aparece a imprensa de massa, surge um novo ator: a opinião pública, tal como a chamamos hoje. A imprensa faz constrói, cria a opinião pública. Como diz Pierre Bourdieu, “ a opinião pública não existe, ela é o reflexo dos meios de comunicação”; se não existisse comunicação de massa, não haveria opinião pública, e sim pressupostos e crenças. A opinião pública pressiona os poderes legítimos e, além disso, transmite a eles seu descontentamento ou sua desaprovação em relação a tal ou qual medida, sendo um agente indispensável para o bom funcionamento da democracia atual (MORAES; RAMONET; SERRANO, 2013, p.65).

 

4  O caso de Veja é interessante, na medida que ainda é hoje uma revista líder no campo das publicações semanais de caráter informativo. Elaborada a partir do modelo da norte-americana Time, Veja teve, entretanto, prejuízo nos seus anos e sofreu com a censura prévia. Algumas de suas edições foram apreendidas e muitas matérias censuradas. O jornalista Mino Carta esteve diretamente ligado à criação de Veja, como antes, em 1966, estivera no lançamento do, na época inovador, Jornal da Tarde, do grupo Estado. Mas seria afastado da revista, em 1976, num momento em que a Abril, de acordo com a versão de Mino, negociava um empréstimo com o governo e acreditava que teria a censura abrandada sem ele na direção da revista (ROMANCINI; Richard; LAGO, Cláudia, 2007, p.138).

5  Nesse sentido, a Internet não é simplesmente uma tecnologia; é o meio de comunicação que constitui a forma organizativa de nossas sociedades; é o equivalente ao que foi a fábrica ou a grande corporação na era industrial. A Internet é o coração de um novo paradigma sociotécnico, que constitui na realidade a base material de nossas vidas e de nossas formas de relação, de trabalho e de comunicação. O que a Internet faz é processar a virtualidade e transformá-la em nossa realidade, constituindo a sociedade em rede, que é a sociedade em que vivemos (CASTELLS, Manuel, 2003, p. 287).

6  A perda de credibilidade acentuou-se nas duas últimas décadas, especialmente como consequência do desenvolvimento do negócio midiático. A partir da metade dos anos 1980, vivemos duas substituições. Primeiro, a informação contínua na TV, mais rápida, tomou o lugar da informação oferecida pela imprensa escrita. Isso conduziu a uma concorrência mais acirrada entre mídias, numa corrida de velocidade em que há cada vez menos tempo para se verificar as informações. Depois da metade da década de 1990, e particularmente nos últimos anos, com a expansão da internet, surgiram os “neojornalistas”, que são testemunhas-observadoras dos acontecimentos — sejam sociais, políticos, culturais, meteorológicos ou de variedades — e se tornaram uma fonte de informações extremamente solicitada pelas próprias mídias tradicionais (MORAES; RAMONET; SERRANO, 2013, p.86).

7  À medida que os cidadãos encontram um grande fluxo de dados, eles precisam de mais — e não menos — fontes identificáveis para verificar aquela informação, apontando o que é mais importante para saber e descartando o que não é. Em lugar de elas mesmas expandirem o tempo usado para selecionar informação, uma tarefa que leva cada vez mais tempo por conta do número de fontes, as pessoas precisam de fontes as quais possam consultar e que lhes dirão o que é verdade e significativo (KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom, 2004, p.77).