Apresentação do Dossiê: Poéticas do Corpo em Paisagens Pandêmicas: criar comunidades para reavivar afetos com a cidade


resumo resumo

Ana Maria Rodriguez Costas
Laila Renardini Padovan
Juliana Semeghini
Laís Cardoso da Rosa
José Teixeira dos Santos Filho



A pandemia da Covid-19 deixou mais marcas do que ainda é possível prever. Só no país foram mais de 35 milhões de casos registrados e mais de 690 mil óbitos até dezembro de 2022, quando ensaiamos este dossiê. Números que poderiam ter sido menores não fosse o descaso do governo federal ao deixar de impor medidas sanitárias urgentes e atrasar as compras das vacinas. As relações com o espaço público, com a rua, com a cidade, com o outro e com o meio social sofreram transformações vertiginosas. Quem pôde, isolou-se em casa e inventou formas de se relacionar remotamente, esvaziando as ruas. Os mais vulneráveis não tiveram outra opção senão enfrentar o risco da contaminação diariamente ao sair de casa e se deslocar por transporte público. Grande parte da população perdeu o emprego e muitas crianças não conseguiram acompanhar o ano letivo virtualmente por falta de condições concretas e emocionais. Os profissionais das artes da cena tiveram que buscar outros espaços de atuação e novas plataformas para os encontros que antes se realizavam em teatros, escolas, centros culturais, espaços públicos e espaços da cidade que comportavam um coletivo em presença. Em 2022, voltamos aos poucos a ocupar esses lugares e vivenciamos a reabertura dos teatros e das universidades.

O Projeto de Extensão Poéticas do corpo em paisagens pandêmicas: criar comunidades para reavivar afetos com a cidade, vinculado ao Instituto de Artes (IA) da Unicamp, inseriu-se nesse contexto. Concebido pela artista da dança e pesquisadora Laila Padovan (Doutora - PPG Artes da Cena | IA | Unicamp) e coordenado em parceria com a Profa. Dra. Ana Maria Rodriguez Costas (Ana Terra | Dep. Artes Corporais | PPGAC | Unicamp), o projeto foi realizado de modo colaborativo com um grupo de artistas e pesquisadores formado por José Teixeira dos Santos Filho (Mestrando do PPG Artes da Cena | IA | Unicamp), Juliana Raposo Semeghini (Mestra - PPG Artes da Cena | IA | Unicamp), Laís Cardoso da Rosa (Mestra em Artes Visuais com foco em Arte nas Esferas Públicas - ÉDHÉA/Suíça) e Flora Viviani (Bacharel e Licenciada em Dança IA | Unicamp), a qual atuou como estudante bolsista (BAEF/SAE). Esse coletivo se reuniu para discutir por quais caminhos a arte seria capaz de recontextualizar e reavivar a criação de relações poético-afetivas com os espaços cotidianos da cidade. Com o objetivo de promover experiências que fossem capazes de restabelecer relações sensíveis e criativas com as paisagens pandêmicas, foi realizado um Ciclo de Leituras com convidados(as) atuantes em diferentes áreas do conhecimento, uma residência coordenada por Laila Padovan e duas oficinas ministradas pelos integrantes do coletivo, abertas ao público geral interessado, entre eles artistas, estudantes e educadores.

Como memória e aprofundamento das reflexões decorrentes das ações do projeto, concebemos este dossiê para a revista Rua, celebrando a interlocução entre investigações das artes e das ciências humanas sobre as dimensões simbólicas e políticas do espaço urbano. Este dossiê é composto por nove textos propostos pelos artistas-pesquisadores da equipe do projeto e pelos(as) convidados(as) do Ciclo de Leituras, o qual abarcou diferentes áreas do conhecimento, tais como a dança, as artes visuais, o teatro, a geografia e a história. Vale a pena ressaltar que o dossiê não se restringe a retomar exclusivamente o que aconteceu durante o Projeto de Extensão, mas significa um convite amplo para a investigação das linhas de forças mobilizadas por seu tema, incluindo trabalhos e materiais com autonomia narrativa.

O dossiê se inicia com o artigo “Dos confins, algumas notas”, da artista visual Karina Dias, (Departamento de Artes Visuais, Universidade de Brasília), que reúne pensamentos dos confins, de um tempo de isolamento que ainda nos olha e que nos convoca a experimentar radicalmente a casa, a ser-cabana. Suas inquietações sobre uma paisagem que pareceu ter recuado durante a pandemia, intercaladas com suas obras artísticas, aguçam nossa atenção para o que a queda nos convida a praticar e propõem que a espera seja experimentada como um gesto.

A seguir, no artigo “Paisagens Mutantes: processos de (de)composição em dança”, a pesquisadora e artista da dança Laila Padovan evoca as paisagens distópicas do filme Stalker (1979) de Andrei Tarkovsky para relatar experiências da Residência Artística Paisagens Mutantes, em que propôs aos participantes que se deslocassem de suas percepções cotidianas, experimentando a pulsação interna das plantas em remodelações do próprio corpo e a potência subterrânea avessa às normatividades, na tentativa de gerar (de)composições em dança em meio a paisagens em ruínas.

No artigo "Pele e cartografia: paisagens para pesquisa em dança", a artista e pesquisadora Marina Guzzo (Departamento de Saúde, Clínica e Instituições do ISS da Unifesp, Campus Baixada Santista) propõe que o método cartográfico de produção de pesquisa em dança seja percebido como forma de inventar paisagens, a partir de saberes encarnados e relacionais. Ao situar o pesquisador e o objeto (ou a prática) no mesmo campo de afetos, procura estimular a criação de um corpo atento ao fato de que a pele é também paisagem que toca e faz tocar.

Em “Exercícios de sentir-paisagem: fotografias e notas poéticas sem finalidade alguma”, o artista-pesquisador Carlos Queiroz (Departamento de Geografia, Universidade Federal do Espírito Santo), se colocou em estado de presença e atenção para sentir e capturar toda imagem que o atravessou durante o processo de escrita, compondo uma paisagem urbana e poética que desafia as normas acadêmicas e os formatos padronizados de um artigo. Propõe, assim, um material que se agrega justamente pela sua força em relação à experiência vivida.

Na primeira parte de seu artigo “Imagens sensoriais que sobraram”, Juliana Semeghini relata como foi a experiência de criar a identidade visual do Projeto de Extensão coletivamente, ao mesmo tempo em que nos convida a reler a experiência de atravessar a pandemia da Covid-19, pelas lentes de autores e artistas que investigaram a desaceleração como prática ético-relacional. Na segunda parte, resgata suas memórias de ter participado do Ciclo de Leituras de forma a multiplicar os procedimentos compartilhados, rumo à invenção de outros modos de estar com nossas paisagens.

"Uma coreo-infância para tempos de reencontros" é o título da entrevista realizada pela pesquisadora Ana Maria Rodriguez Costas (Departamento de Artes Corporais, IA, Unicamp) com a artista da dança, pesquisadora, professora e diretora do grupo Lagartixa na Janela, Uxa Xavier. A conversa se concentra sobre as ações e os projetos do grupo entre o período mais intenso da pandemia da Covid-19 e a fase de retomada gradual de suas atividades presenciais. A dinâmica da entrevista deixa claro esse movimento tanto de produzir artisticamente nas condições contextuais do isolamento, quanto de sair do espaço íntimo e retomar os espaços coletivos, sem desconsiderar as marcas que a crise sanitária, social e política deixou.

Josianne Cerasoli (Departamento de História da Unicamp) escreveu “‘Mande uma mensagem quando chegar’: corpos tesos e cariátides nuas na cidade” procurando nos aproximar da dramaturgia cinematográfica que Agnès Varda propôs em seu documentário As Tais Cariátides (1984). Ao apresentar as cariátides das ruas de Paris em uma montagem que prevê ângulos que os caminhantes não seriam capazes de capturar, a pesquisadora flagra essas presenças esculturais que nos olham de volta, e que sustentam estrutural e ideologicamente projetos de cidade marginalizantes. Uma vez conscientes dos paradigmas que formaram nossas cidades, poderemos reavaliar a posição históricas dessas cariátides, nossa posição diante do que elas representam, e vislumbrar possíveis futuros para o lugar do feminino no mundo urbano.

Em “Espiralando o cima-baixo do mundo: por uma contracolonização do corpo-espaço”, os artistas e pesquisadores José Teixeira e Laís Rosa partem do desejo de investigar formas de contracolonizar o corpo, o espaço e a linguagem. Durante a oficina que coordenaram juntos, experimentaram a posição horizontal rente ao chão de nossas histórias, o movimento de rebolar um quadril aterrado e como seria se a terra ocupasse as cavidades do corpo. O relato dessas vivências inclui exercícios de escrita que os participantes produziram logo depois das práticas e que nos conduzem por movimentos espiralados tais como as próprias escolhas estéticas de seu ensaio.

O artista Paulo Nazareth (Borun Nak [Vale do Rio Doce], América do Sul) explora temas ainda incipientes no circuito nacional e internacional de arte, ligados à imigração, ao racismo e ao colonialismo. Embora seu trabalho produza também arquivos fotográficos, são os encontros vivenciados durante suas longas caminhadas que potencializam sua criação, especialmente quando envolvem pessoas colocadas à margem devido ao seu status legal ou reprimidas pelas autoridades governamentais. Essa força se faz sentir no texto "Sobre o deslocamento de coisas y gente", construído a partir da transcrição da fala do artista no Ciclo de Leituras do Projeto de Extensão e que encerra este dossiê. A equipe do projeto investigou maneiras de assumir como estética da escrita a qualidade vertiginosa e em fluxo contínuo da fala do artista, mantendo as marcas da oralidade. Desse modo, convida-se para o encontro com sua fala que se manifesta enquanto ato performativo.

Com tais contribuições, cultivamos o desejo de que as redes de conexões criadas durante as ações do Projeto de Extensão possam se expandir em várias direções e formar novas redes que incluam os(as) leitores(as) deste dossiê, seus próprios projetos e os interesses comuns de suas comunidades. Os (as) convidamos, então, para uma leitura encarnada dessa reunião de artigos e relatos que ensaiam ser disparadores de novas reflexões e experiências capazes de reavivar afetos e inventar novas paisagens com a cidade.

 

Agradecimentos

Ao Serviço de Apoio ao Estudante (SAE) da Unicamp, à Coordenadoria de Extensão do Instituto de Artes da Unicamp, ao Espaço Cultural Casa do Lago da Unicamp, à Jussara Miller (coordenadora do Salão do Movimento) e ao grupo Prática como Pesquisa: processos de produção da cena contemporânea vinculado ao PPG Artes da Cena da Unicamp.






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