Povos originários e a cidade: territorialidade e fronteiras simbólicas


resumo resumo

Luciana Vedovato
Antônio Carlos Aleixo



Considerações iniciais

Ao pensarmos a cidade como espaço1 de conflito e disputa, é necessário observar que o território e sua divisão, ou melhor, a forma como ele nos é dado a conhecer, é parte, também, de um jogo simbólico: as nomeações de ruas, bairros etc., podem ser tomadas como parte dos percursos tensivos de diferentes grupos sociais que, aos tentarem organizar seus espaços2 e territórios, passam a mobilizar materialidades para além do campo descritivo. Refletir o território deixa de ser, como propunha a geografia física, uma leitura de relevos e divisões de tais relevos - e passa, também, para uma possibilidade de observação representações de poder: delimitação dos lugares das pessoas, onde podem e onde não podem morar, quais espaços podem ou não ocupar na cidade.

Para refletir sobre a cidade de Campo Mourão - Paraná, em nosso trabalho, optamos por um olhar interdisciplinar que reorganiza o dispositivo de análise territorial que não toma a Geografia apenas como a “ciência dos lugares” (MOREIRA; HESPANHOL, 2007, p.49), mas como um campo de saber mobilizador de categorias a serem tratadas a partir das relações sociais. Entendemos que os saberes geográficos passam a ser pensados não mais a partir das determinações naturais e, desse modo,

 

“[...] acompanhamos o sujeito que se individualiza em seus modos, que se identifica e (se) produz sentidos que são afinal o que vai significar a cidade com todas as consequências que isso acarreta. É, pois, na base de como se produzem os sentidos - seja o da violência, o da sociabilidade, o do trabalho, o da cultura etc. - e os sujeitos que trabalhamos, o que nos permite ter uma visão privilegiada do que é a cidade. E nem é necessário dizer, pensando o alcance dessa reflexão, que embora seja a cidade o lugar de nossa observação, esta não se reduz à cidade, e tem sentidos que vão muito além, tocando a sociedade, a história, a cultura. São esses os domínios em que nos servimos da linguagem para navegar, sempre atando materialmente o sujeito à história (à sociedade), e à língua.” (ORLANDI, 2004, p.14).

 

 É refletindo a partir da relação dos estudos sobre território e a análise de discurso de base materialista, que nos voltaremos para a análise da notícia sobre um abaixo assinado organizado por moradores de um bairro, em Campo Mourão, Paraná, posicionando-se contra a demarcação de um “terreno de passagem”, proposto pelo município para abrigar povos originários, da etnia Kaingang, que se movimentam pela região. Para darmos conta de nosso objetivo, dividimos o texto em dois momentos: primeiro, o debate sobre a cidade de Campo Mourão, trazendo as contribuições teóricas de Raffestin (1993); Haesbaert (2007); Lefebvre (2001); Bennedetti (2011) e o segundo momento, a análise dos enunciados, retirados da notícia sobre o abaixo-assinado, que designavam o povo originário Kaingang e os motivos pelos quais eles não poderiam ficar próximo ao bairro, considerando para tanto a proposta teórica da Análise de discurso de base materialista, em especial, Lagazzi (2001) e Orlandi (2001;2004).

 

Sobre espaço, território e cidade

Para tratar das relações contraditórias nas cidades é preciso pensar que a cidade é um território. Mas então, o que é um território? Para Raffestin (1993) ao mobilizar os conceitos de espaço e território

 

[...] é essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator “territorializa” o espaço. (RAFFESTIN, 1993, p.143).

 

Ainda para o autor o território deve ser compreendido como fato sociopolítico e não apenas político, como considera a geografia de orientação positivista. Como se pode ver em Benedetti (2011), para a geopolítica clássica, o conceito de território não se desvinculava de solo e Estado. Território era o fundamento material do Estado. Segundo ele, Ratzel, o mais importante nome da teoria geográfica determinista, defendia que o ser humano e o solo eram os dois elementos de relativa permanência e, ao lado da noção de “espaço” e “posição”, eram o fundamento dos estudos geográficos, que, ao fim, deveriam auxiliar naquilo que chamava de definição do espaço vital, o ponto de partida para que os Estados nacionais, supostamente mais fortes e desenvolvidos, pudessem ampliar sua atuação e subordinar os demais, no seu entorno. Tais ideias e conceitos, notadamente na Alemanha, em razão dos debates acerca do processo de unificação que constituiu aquele país, mas também em outros Estados europeus, foram predominantes até o final da primeira metade do século XX. Estendeu-se um pouco mais nos países latino-americanos, em razão dos Estados ditatoriais instalados em quase todos os países, até, aproximadamente, 1980. Nesta perspectiva, território, fronteira, Estado, solo e defesa compartilham o mesmo campo semântico de forma estreita. Bem como “poder de Estado”.

O tema do “poder” descentrado, ou seja, a visão de que o poder não se encontra apenas no Estado (pode estar também nas organizações privadas, empresariais etc.), é uma das formas recentes para se abordar a chamada geografia crítica e sustentar pontos de vista de alguns autores, como é o caso de Raffestin (1993). Para ele, complexas, as relações de poder se inscrevem numa “cinemática”, num movimento, portanto, que não se caracteriza pela facilidade de seu reconhecimento, visto que o poder, ao invés de objetivar-se com limites claros, não pode ser capturado ou percebido com facilidade, pois o que o caracteriza e lhe dá garantias de existência é o seu exercício. O poder se apresenta, se materializa, no exercício. Esta posição, com a qual este trabalho se identifica, permite afirmar que a cidade não é expressão imediata e simples da sociedade. Para que isso se comprovasse, seria necessário admitir uma posição estática da sociedade, bem como da cidade, o que, inegavelmente, não acontece uma vez, que a cidade torna concreto os modos de existência das disputas pelo poder, das contradições e das tensões em torno das contradições.

Podemos dizer, que ao olharmos para a cidade e suas configurações sob a ótica das disputas,

[...] que através do discurso, de sua relação com a memória histórica e com a ideologia, o que procuramos determinar são esses condicionamentos sociais, coletivos de natureza política que, de modo não consciente, “anônimo e impessoal” (não subjetivista, diríamos nós), mobilizam nossas maneiras de estar, de agir, de pensar, de compreender e de perceber o espaço, garantindo o que é “tido como adquirido por cada um”. (RODRIGUEZ-ALCALÁ, 2014, p.270).

 

E, para Raffestin (1993), ao designar o sistema territorial, é preciso pensar que a ocupação do espaço é feita a partir de “modelos que podem ser aleatórios, regulares ou concentrados” (p.150)3 que possuem uma relação com a distância (que pode ser espacial, temporal, psicológica ou econômica) e acessibilidade. Essa distância também é apontada por Lagazzi (2001) para refletir como a relação centro-periferia é organizada a partir de como como o poder econômico arranja as pessoas nas cidades, movido por interesses que não são apenas a preocupação com a função da cidade.

Desse modo, a metáfora do nó da rede é que une, em nosso entendimento, as produções de sentidos possíveis e as malhas da cidade, pois para Raffestin (1993)

 

A distância se refere à interação entre os diferentes locais. Pode ser uma interação política, econômica, social e cultural que resulta de jogos de oferta e procura, que provêm os indivíduos e/ou dos grupos. Isso conduz a sistemas de malhas, nós e redes que se imprimem no espaço e que constituem, de algum modo, o território. Não somente se realiza uma diferenciação funcional, mas ainda uma diferenciação comandada pelo princípio hierárquico, que contribui para ordenar o território segundo a importância dada pelos indivíduos e/ou grupos às suas diversas ações. (RAFFESTIN, 1993, p.151).

 

Nesse sentido, todos os grupos sociais4, para viverem, organizam o campo operacional de suas ações, ainda que temporariamente. Ou seja, trabalho, formação, relações afetivas, lazer, condições de vida, proteção, mobilidade, realizam-se no interior de um campo operacional. Tal organização, realizada a partir de um conjunto de interesses, valores e objetivos, se dá numa ordem hierárquica e tende a provocar: a) o controle sobre o que pode ser distribuído, alocado ou possuído; b) a manutenção de uma certa ordem; c) a integração e coesão de outros atores em contatos e relações.

Controle, manutenção da ordem e integração do grupo são, portanto, determinantes da categoria “território” e não existem por si. Tais construções não estão na ordem do mundo natural. Não existem como pressuposto sobre o qual as pessoas simplesmente “atuam”. No caso do território urbano, por exemplo, existe uma legislação específica que define o que é permitido e proibido para se viver ali e como se pode explorá-lo. Tanto este controle, previsto em legislações permanentes ou temporárias, como a “manutenção da ordem”, dão-se como pressupostos para os habitantes da cidade. Tal legislação, regramento, é herdeira de uma certa ordem de poder. No caso da cidade, a escolha dos dirigentes municipais, que, autorizados pelo acordo de organização do território, em forma de “escolhas democráticas”5 – entre aspas para destacar o caráter impróprio do termo – conduzem, por sua vez, a tentativa da construção do imaginário territorial, por meio da organização da tessitura da cidade, bem como por meio linguagem que simboliza a cidade.

Assim como o estado nacional organiza o território, por meio de estabelecimento de fronteiras nacionais, tecidos, nós e redes, conforme Raffestin (1993), as demais configurações estatais no interior do território nacional – no nosso caso a cidade6 – também estabelecem seu microssistema territorial. Pela ordem, empresas privadas organizam seus campos operacionais, ora limitadas, ora auxiliadas pelo Estado. Na estrutura do Estado moderno e contemporâneo, as empresas privadas, para existirem, se submetem ao regramento do Estado nacional e isso gera o efeito de as fronteiras locais, no âmbito da municipalidade, serem pouco efetivas para controle de grandes corporações. Como consequência, paulatinamente, em algumas situações, o poder das corporações empresariais se equipara ou se sobrepõe aos estados municipais. As malhas privadas, se fosse possível as identificar fisicamente, ultrapassam as malhas urbanas.

Dessa forma, ora ao lado, ora acima do Estado, as empresas privadas também organizam ou determinam as redes. Condicionado pelo público e privado, o sujeito também estabelece seu território. O controle do seu “espaço”, embora seja, na relação com as corporações contemporâneas e com o poder do Estado, o mais limitado, mais determinado. E é sobre ele que se abate, permanentemente, o terceiro ponto enunciado por Raffestin (1993) a respeito da organização territorial: o caso da integração e coesão. Para assegurar que o sujeito se sinta parte de um território e acate a distribuição de redes e nós às quais se submete, é necessário que, nestas relações de poder, a língua, por meio de nomeações, descrições etc., articule os modos de interpelação dos sujeitos, assim como as práticas cotidianas que, pressionadas pelo processo de organização do território, arranjam a existência7.

Os sujeitos são, nesta cadeia, mais territorializados (pelo Estado, pelas empresas privadas, etc.) que territorializantes. O que faz com que um trabalhador da região metropolitana de uma capital como Curitiba, por exemplo, se sinta mais curitibano que outro de qualquer região do estado do Paraná? O que faz com que uma pessoa que mora nos conjuntos habitacionais e toma o mesmo caminho todos os dias, para o local de trabalho tenha o mesmo sentimento de pertencimento pela cidade que os moradores de bairros cujas construções se assemelham a palacetes? Para responder a tais questões é necessário pensar sobre o modo como é construído o imaginário sobre o território urbano, um arquiterritório em relação aos bairros periféricos, cujas regiões de fronteira8 ora se flexibilizam para garantir a imagem integradora do território, ora se enrijece para “proteger”, separar, os moradores dos bairros mais ricos daqueles outros habitados pela população, que, à medida que o sistema capitalista se reorganiza, torna-se cada vez mais precarizado.

Então, a possível distinção que Lefebvre (2001) estabelece entre “cidade” e “urbano” talvez contribua para as reflexões acima. O urbano seria uma construção no âmbito do pensamento, ao passo que cidade seria o lugar das características prático-sensíveis. A cidade – arquitetônico – seria o espaço sobre o qual as relações sociais são tecidas. Lugar de todas as contradições, conflitos e confrontos. É sobre a cidade que se territorializa o urbano. É sobre ela que se constrói o “imaginário da cidade”, os lugares permitidos e proibidos para determinados grupos sociais. É o imaginário urbano que garante ser o bairro “A” local de trabalho para indivíduos moradores de bairros “D” durante o dia, com restrições a esses mesmos indivíduos no período noturno, por exemplo, sob o risco de sua presença ali, em horário “impróprio” ser confundida com atitudes “ilegais’. A suspensão das fronteiras internas e a naturalização das redes de controle fazem com que, oportunamente, grupos sociais com interesses diversos, sintam-se todos pertencentes à mesma territorialidade.

Já territorialidade, para Raffestin (1993)9 é a relação entre o território, em si, sistematizado e a vida que se exerce e se executa no e sobre o mesmo, constituindo-o. Trata-se de uma redefinição daquilo que se tomou como territorialidade naturalista, ideia vinculada à geografia clássica, em que a territorialidade estaria associada às condições instintivas dos animais para proteger um território ou encontrar nele as condições adaptativas ideais. A retomada atual do termo inclui a noção de poder porque pressupõe a noção de “ator” e movimentos territorializantes: as pessoas que, em relação, alteram o ambiente físico, social e ainda, sua subjetividade. Desse modo, é possível pontuar o debate em torno da territorialidade não passa apenas pelas questões geográficas (arranjos naturais dos espaços), mas é atravessada pela forma como os sujeitos e territórios se encontram para produzir significações.

Nessa perspectiva, podemos tomar os dizeres de Rodríguez-Alcalá (2019, p.137) para quem “o que está em jogo numa visão discursiva materialista, portanto, é o mundo não enquanto espaço físico em si, independente do sujeito, mas enquanto espaço apreendido e significado por ele”. Raffestin (1993, p.160), a partir de uma perspectiva da geografia política, apontará o território como sendo a categoria apreendida e significada pelo sujeito:

[...] vida é tecida por relação, e daí a territorialidade poder ser definida como um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo em vias de atingir a maior autonomia possível, compatível com os recursos do sistema. (RAFFESTIN, 1993, p.160).

 

Pensando em tais condições, é preciso que tais relações de poder sejam marcadas, reguladas e arranjadas pela forma como o Estado atua e torna material as divisões estabelecidas entres distintas forças sociais. Nesse sentido, o zoneamento de uma cidade configura o modo como o poder econômico organiza as formas de existir da cidade. Em um município como Campo Mourão, há, em nosso entendimento, um replicamento do que Cardin (2018) trata por performances do Estado. Desse modo,

 

[...] destacamos que os sujeitos que personificam o Estado na vida cotidiana possuem múltiplas formas de agir, o que impossibilita a visualização de uma instituição objetiva e coesa. De forma sintetizada, as ações destes sujeitos podem ser coniventes com as necessidades locais independente das normatizações oficiais; elas podem ser condicentes com as políticas determinadas pelos respectivos dispositivos estatais; e, por fim, pode ser prevaricantes ao atenderem interesses privados.” (CARDIN, 2018, p.307).

 

Assim, nos encontramos diante de dois movimentos que são contraditórios: as forças econômicas que se alinham e tensionam o campo administrativo do Estado, município etc., para a demarcação do que é um território e as forças sociais que, ignorando tais arranjos, reivindicam o território e seguem construindo territorialidades a partir das condições históricas que as constituíram.

E esse debate nos interessa, pois o recorte que tomaremos como objeto de análise trata o encontro de diferentes forças sociais, cujo poder econômico delimitará o território a ser ocupado estabelecendo fronteiras conforme pontua Cardin (2016), sustentadas pelo “processo de estigmatização” que só é possível “devido a concentração de poder econômico, que, por sua vez foi legitimado pelo processo de depreciação do outro” (p.223), ou seja, olharemos para o modo como a reportagem do jornal, utilizada como recorte de análise, trará designado os povos da etnia Kaingang em relação aos moradores do bairro em que se encontra o terreno em disputa. E para tentarmos entender um pouco melhor o modo como a reportagem foi construída, vamos apresentar, brevemente, a cidade de Campo Mourão.

 

Um caso específico: A territorialidade da cidade de Campo Mourão

Para se compreender e explicar o atual processo de territorialização de malha urbana de Campo Mourão, é necessário retomar, ainda que de maneira rápida, o processo de territorialização regional. Campo Mourão localiza-se na região mesorregional centro ocidental paranaense. O início do processo de territorialização da região, da cidade e do município10 de Campo Mourão deu-se, de acordo com Semionato (2008), em 1903, com a chegada da família Pereira, oriunda da região de São Paulo, com a finalidade de ocupação de terras. E outras famílias a seguiram. Em 1916, por meio da lei 1559, de 29 de março, o estado do Paraná concedeu o domínio das terras, na quantidade de dois mil hectares, para a Câmara Municipal de Guarapuava, com a finalidade de recortar lotes e constituir futuras povoações. O artigo segundo da lei prescrevia que a municipalidade deveria “medir e demarcar para cedê-las em lotes, como for mais conveniente”. A demarcação da malha urbana foi realizada, aproximadamente 30 anos depois, na década de 1940, por um técnico do Departamento de Terras e Colonização do estado do Paraná, Eugênio Zaleski. O estabelecimento de uma vila deu-se, segundo Semionato (2008), em 1943, sobre um espigão, entre o Rio 119 e o Rio do Campo. A presença do agente estatal, ainda que posterior ao processo inicial de territorialização privada, portanto, definiu o traçado regular da malha urbana, como se pode ver no trabalho de Marcotti e Marcotti (2011): ruas e avenidas largas, entre 14 e 18 metros, no formato “xadrez”, quadras retangulares, medindo 160 x 100 metros, com terrenos recortados de 20 x 50 metros. Ao mesmo tempo, tal movimento definiu um dos aspectos das relações de poder que se projetaria nos tempos atuais. Terrenos amplos, de 1.000 metros quadrados, permitiram a edificação de casas comerciais, industriais ou para moradia que projetam a imagem de poder centralizado. Tudo com o benefício de localização na parte superior do terreno, para o qual, futuramente, os moradores dos bairros periféricos, situados a noroeste ou a sudeste, teriam que se dirigir, para trabalhar ou para realizar trocas comerciais.

Se considerarmos o processo mais intenso e concentrado de territorialização do Norte do Paraná, entre 1925 e 1926, promovido, principalmente pela cultura cafeeira, mas também pelas ações da empresa inglesa Paraná Plantations Ltda, que possuía como subsidiária, no Brasil, a Companhia de Terras Norte do Paraná (Padis, 2006) é possível, então, inferir que a região onde se encontra Campo Mourão tenha sido afetada, parcialmente, pelo ambiente de prosperidade de acumulação capitalista que se verificava naquela região e pela ação do Governo Estadual.

Entre 1943 - ano da criação da Vila urbana de Campo Mourão e ano da instalação da Inspetoria de Terras do Departamento de Geografia, Terras e Colonização do Estado, para vender terras devolutas em várias prestações - e 1965, ano em que praticamente todos os atuais municípios do seu entorno deixaram de ser distritos administrativos, a ação do agente estatal atraiu para a região um contingente migratório oriundo, principalmente, do Sul do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Isso explica o rápido crescimento urbano da cidade e sua forma de territorialização, que, após emancipações políticas dos distritos administrativos do entorno, sempre foi a sede da microrregião 12, do estado do Paraná, participante da região intermediária de Maringá.

Poderíamos classificar este período como segundo momento de territorialização da microrregião e primeiro momento da territorialização urbana. O território urbano e suas fronteiras, nesse momento, caracterizaram-se por valores positivados de coesão interna dos proprietários de terra e centralização comercial, especialmente para atender a agricultura regional. Portanto, ainda que não se possa descartar o valor de mercado das propriedades da cidade, naquele momento, lotes, moradias, empreendimentos comerciais se caracterizavam menos como valor de troca que de uso, nos termos de Lefebvre (2001).

O segundo momento da territorialização urbana pode ser compreendido entre os anos de 1980 e 2000. Antes, porém é necessário compreender os fatores externos que criaram as condições para este segundo momento. Para dar consecução ao projeto do capital monopolista que se operava no Brasil, desde a década de 1950, os dois governos do estado do Paraná, da década de 1960, Ney Braga e Paulo Pimentel, criaram as condições para que o Estado se inserisse na sua fase de industrialização, agroindustrialização e modernização tecnológica na agricultura. Com a crise da cafeicultura, foram instituídos – logo no início da década, por iniciativa do Estado – diversos instrumentos autárquicos e programas para alterar a base de produção agrícola, marcadamente cafeeira, no Norte para soja, amendoim, milho, feijão. Além de pastagem, conforme pontua (Padis, 2006)

Tais iniciativas promoveram alteração substancial na base de produção agrícola e na composição de posse da terra do Estado. Pequenos agricultores que trabalhavam no entorno de grandes latifúndios cafeeiros, meeiros e trabalhadores avulsos, estes últimos, conhecidos no interior do Paraná como peões, se viram compelidos a migraram para as cidades, pois, paulatinamente, deixaram de ser assalariados rurais. A região de Campo Mourão, entre o final da década de 1960 e meados de 1970, conheceu a migração da economia de subsistência, da restrita economia cafeeira e da exploração de madeiras e algodão para a cultura da soja e trigo. A exposição deste fenômeno está bem realizada em Onofre (2019) e Andrade (2009) com dados que apontam, entre 1970 e 1996, uma redução de 4.885 para 315 estabelecimentos agropecuários de até 10 há, no município de Campo Mourão. Ainda conforme as autoras, a proporção aproximada ocorreu com os estabelecimentos de 10 a 100 ha. Dos 2.767 estabelecimentos desta escala, em 1970, apenas 494 subsistiam em 1996.

Não por acaso, a territorialidade urbana sofreu alterações significativas, não só pela migração de trabalhadores rurais que se tornaram assalariados urbanos, como ainda pela ampliação dos equipamentos urbanos, públicos ou privados, necessários à gestão da nova conjuntura econômica: ampliação da rede bancária; da rede de serviços públicos como escolas, ensino superior, saneamento, obras públicas; da rede de técnicos e empresas vinculados à nova agricultura. Opera-se aliança entre a agricultura de exportação e o comércio, atraindo para a cidade empresas de maior porte e de maior capacidade competitiva. Altera-se significativamente o centro comercial, tanto no aspecto arquitetônico quanto na finalidade das anteriores casas comerciais vinculadas à agricultura de subsistência ou escambo. Uma grande empresa privada, a Cooperativa Agropecuária Mourãoense, criada em novembro de 1970 seria um dos mais importantes agentes de territorialização da cidade: ampliou o parque industrial vinculado à agroindústria, contratou técnicos e engenheiros não existentes na cidade, implementou novo padrão de acúmulo de capital para os grandes agricultores associados, que, por sua vez, investiram em propriedades fundiárias rurais e urbanas. Isso interfere significativamente nas novas relações de poder e representações urbanas.

O crescimento da cidade, neste período, síntese de todas as condições apresentadas anteriormente, altera a composição territorial e estabelece fronteiras físicas e sociais vinculadas ao efeito de urbanização como valor de troca. Da cidade-suporte para a agricultura dos anos de 1940 e 1950 à cidade-mais-valor, podem-se observar as diversas ações dos agentes estatais e privados, incluindo, como resultado, a inversão na relação rural-urbano. A figura 1 mostra a evolução da população da Mesorregião Centro Ocidental, entre 1970 e 2010 de onde se podem inferir os efeitos sobre o a cidade-sede.

 

Figura 1: População total, urbana e rural da Mesorregião Centro-Ocidental: 1970 a 2010 (Dias, p.70)

 

As décadas de 1980 e 1990 consolidaram Campo Mourão como um município urbano, dependente do capital acumulado pelo agronegócio e transformado em mercadoria de serviços e comércio, o que significa dizer que as fronteiras imateriais rural-urbano tornaram-se, praticamente, inexistentes e as fronteiras imateriais urbanas internas, mais visíveis, especialmente após a segunda metade da primeira década do século XXI, quando o mercado imobiliário, movido pela ação dos agentes estatais em âmbito federal, em cooperação com as empresas privadas de construção civil, tornou-se altamente rentável e um dos principais instrumentos de acúmulo de capital.

Estas fronteiras urbanas, resultado da nova configuração territorial, são delimitadas pelo cada vez mais crescente número de conjuntos residenciais padronizados para população de baixa renda, em contraste com uma quantidade, ainda reduzida, de loteamentos fundiários para zonas residenciais de padrão mais elevado. As formas de expressão de tais fronteiras podem ser descritas tanto na materialidade física das residências, nas vias de acesso e trânsito urbano quanto na produção simbólica e conceitual das malhas territoriais internas.

No primeiro caso, a arquitetura reproduzida em todas as casas de 35 a 60 metros quadrados, em loteamentos contratados previamente por bancos estatais e empresas de construção civil, com recursos garantidos pelo Estado, confere o efeito de sentido de “segregação” social, incluindo as possíveis determinações: ausência de privacidade, pela proximidade entre as casas; menor capacidade de ampliação ou alteração arquitetônica, pelo reduzido espaço ocupado no terreno; ausência de instrumentos urbanos de lazer e arte, homogeneidade plástica. Ainda no primeiro caso, como consequência dos determinantes econômicos para redução de custos e ampliação de lucros, a localização dos conjuntos habitacionais, invariavelmente, encontra-se na extensão de vias de acesso único, o que garante, por exemplo, a possibilidade de maior controle de fluxo de pessoas e automóveis e, portanto, menor mobilidade física, que acaba incidindo no imaginário coletivo como um “valor negativo”. Se os moradores desejarem construir outros caminhos, estes serão considerados “rotas de fuga”. A distância, em relação ao centro comercial é ainda um fator de construção de fronteira física.

A territorialidade da cidade, em 2021, encontra-se, predominantemente, assim distribuída: do centro comercial em direção à parte sul e sudeste, nos limites do Rio do Campo e limites rurais, verifica-se um conjunto fragmentado de bairros residenciais, com pouco comércio descentralizado, mantendo entre si integração caracterizada por residências de alto ou médio padrão arquitetônico e civil, múltiplas vias de acesso e ausência de transporte público regular, o que indica proximidade com o centro comercial. Até 2015, havia apenas um loteamento, nos mesmos padrões, transpondo o Rio do Campo. Já, em direção à parte norte, resultado da territorialização temporal, encontram-se os mesmos padrões acima descritos, exceto pelos efeitos verificados, a partir de 1980 e consolidados após 2014, da transposição do rio 119, com a o estabelecimento, nesta região das ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social, assim descritas no artigo 16 da lei municipal 62/2020, de 03.04.2020: “...destinam-se à ocupação com empreendimentos habitacionais com características sociais e vinculados com entidades públicas que tratam da questão habitacional…”. Entre os objetivos das ZEIS, é relevante destacar, no mesmo artigo, “[...] proteger o interesse da população de baixa renda no que se refere à moradia e à infraestrutura, de forma a garantir a permanência da população, com qualidade de vida”. Situações semelhantes ocorrem com as partes de domínio leste e oeste da cidade. Resta, portanto a conclusão de que apenas a parte sul e outros fragmentos territoriais no interior da cidade não constituem fronteiras com as ZEIS. Isso será determinante para configuração e constituição do imaginário a respeito desta região, como se verá nos eventos11 analisados neste trabalho.

Para isso, vamos tomar como objeto de análise um evento recente, da ordem do conflito e das relações de poder que resultam, em parte, das sobreposições e acúmulos históricos descritos anteriormente, na cidade de Campo Mourão: o rechaço promovido por moradores da parte sul da cidade, à intenção do poder executivo municipal em alocar um “terreno de passagem” para indígenas da etnia Kaingang, sobre espaço público localizado no Jardim Araucária. A manifestação dos moradores, em forma de abaixo-assinado, foi noticiada pelo Jornal Tribuna do Interior em 14.05.2021, com o seguinte título: “Moradores fazem abaixo assinado contra área destinada a indígenas”.

Parte do povo Kaingang fixado no município de Manoel Ribas, distante 116 km de Campo Mourão, regulamente, instala-se na cidade de Campo Mourão, próximo da rodoviária, em terreno destinado a uma praça pública, e se ocupa da produção e venda de artesanatos. Por mais de uma vez a localização de passagem temporária foi questionada por moradores da vizinhança. Instada pelas manifestações de movimentos sociais defensores do grupo indígena em contraste com a vizinhança, a Prefeitura Municipal planejou organizar um “terreno de passagem”, em local de propriedade municipal, no Jardim Araucária, o primeiro dos bairros a ultrapassar os limites naturais do Rio do Campo, na porção Sul da cidade, já caracterizada neste trabalho. E é com o dissídio entre as partes que passaremos a trabalhar agora.

 

Os dizeres sobre a cidade: o caso específico do abaixo-assinado12

Conforme pontuado anteriormente, a narrativa da organização das cidades do interior de alguns estados, como o é o caso do Paraná, é fortemente vinculada a um registro de colonização pioneira branca, masculina que, com força e coragem, desbrava o “selvagem”. Tal narrativa invisibiliza mulheres, negros e negras e, no caso que estamos tratando, os povos originários que eram (e são) tratados como um problema a ser solucionado nas cidades sob dois aspectos: a) primeiro: a expulsão – no período de constituição da própria cidade – de tais povos e b) segundo: o tratamento de tais populações como se precisassem ser escondidas, relegadas a espaços em que não possam ser vistas pelos moradores, tornando-se invisíveis.

Considerando os dois aspectos mencionados e nos centrando no último como norteador de nossa análise, vamos retomar, mais uma vez, a reflexão de Lagazzi (2001). Para a autora, o funcionamento centro-periferia materializa discursivamente como o administrativo organiza as pessoas a partir de uma divisão que é, em nosso entendimento, centrada na classe. Assim, na periferia, ficaria a parcela da população que não tem (e não deveria ter – segundo a ótica de um Estado que atende prioritariamente a superestrutura13) como opinar e decidir sobre a própria cidade. “Normalmente a periferia é pensada como a borda, o limite entre o fora e o dentro. Estar na periferia é estar distante, na coincidência entre a distância espacialmente considerada e a distância politicamente imposta. É estar fora do centro de poder e decisão” (LAGAZZI, 2001, p.52).

É nessa perspectiva que abordaremos a questão do terreno que a prefeitura de Campo Mourão destinaria para que as populações indígenas, aqui especificamente o povo Kaingang, pudesse acampar, comer, produzir artesanatos e seguir. O terreno a ser destinado encontra-se no limite de um conjunto de bairros, da região sul da cidade, que são – pela ordem da discursividade – designados “nobres”. Assim, a possibilidade de um pedaço de terra para uma população nômade provocou a resistência de parte dos moradores dos bairros que organizaram um abaixo-assinado reivindicando junto à prefeitura a mudança do “terreno de passagem” para outra parte da cidade. Elencaremos abaixo alguns enunciados constantes no abaixo-assinado:14

 

[...] os transtornos que os indígenas causaram em outro local da cidade. Durante os últimos anos acompanhamos diversas matérias vinculadas na imprensa, depoimento de moradores próximo ao local em que os indígenas estavam e sempre diziam a mesma coisa: eles causam transtornos no bairro. As condições de higiene são sempre precárias e isso atrapalha o andamento e a ordem do bairro [...] (sem página, grifo nosso)

 

O aparecimento do terreno de passagem nos noticiários locais ocorreu, em um primeiro momento, pela tentativa de localização do espaço em um lugar de marginalidade “reforçando os sentidos das ocupações como atos de desestabilização da ordem urbana e perturbação da ordem pública” (LAGAZZI, 2001, p.58). Assim, a notícia do abaixo-assinado mobiliza “conjunto de dizeres estabilizados historicamente numa sociedade dada” (RODRIGUEZ-ALCALÁ, 2014, p.268) em torno da marginalidade, daquilo que destoa da normalização do espaço público como pertencente a um determinado grupo e este, como guardião de tal espaço, pode dizer quem pode entrar. Como pontua Lagazzi (2001), é comum que as matérias jornalísticas que relatem ocupações e, no caso analisado, o terreno de passagem, vinculem designações que predicam os sujeitos como desqualificados, desprovidos de traços éticos e estéticos para conviver socialmente em lugares centrais e valorizados.

Em outro excerto retirado do mesmo jornal, observamos a relação fundiária que estabelece, em nosso entendimento, entre o público e o privado, entre o Estado e a sua relação com a super e a infraestrutura:

 

[...] Para alguns moradores, a presença dos indígenas no bairro, vai desvalorizar os imóveis, alegando ainda saneamento insuficiente para atender os “novos moradores”. (sem página, grifos nossos)15

 

As duas formulações grifadas nos interessam, pois, ao tomar a propriedade privada como uma medida de valor em torno das relações territoriais, a cidade passa a ter os limites organizados - de quem pode e quem não pode ocupar o território - a partir das relações de classe. O “pressuposto da propriedade privada positivamente suprassumida” (MARX 1867/ 2010, p.106), cria para os moradores dos bairros que estão na disputa pelo território um efeito naturalizado de posse e pertencimento que aciona a reação em torno da divisão da terra. Essa relação naturalizada estabelece a normatividade em torno de quem pode existir, viver e falar no e em nome do bairro. Nesse sentido, podemos pensar, conforme pontua Guimarães (2005), que estamos lidando com as contradições que constituem a existência do político:

 

O político, ou política, é para mim caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos. Deste modo o político é um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma divisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento. Mais importante ainda para mim é que deste ponto de vista o político e incontornável porque o homem fala. O homem está sempre a assumir a palavra por mais que esta lhe seja negada. (GUIMARÃES, 2005, p. 16).

 

Assim, o discurso em torno da desvalorização da propriedade é organizado pela forma como, nas cidades, os territórios são concebidos e como em tais territórios é permitida – ou não - a circulação de parcelas da sociedade e, vejamos, a interdição, ou solicitação de interdição, já é uma formulação que produz sentido a partir de um lugar político, aqui reforçando a normatividade em torno da cidade pela palavra dos moradores do bairro. Nesse sentido podemos tomar os dizeres de Orlandi (2016, p.200):

 

[...] a cidade se materializa em um espaço significativo: nela, sujeitos, práticas sociais, relações entre indivíduo e a sociedade têm uma forma material, resultante da simbolização da relação do espaço, citadino, com os sujeitos que nela existem, transitam, habitam, politicamente significados. (ORLANDI, 2016, p.200).

 

Dessa forma, “novos moradores”16 inscreve os povos originários em um lugar de não pertencimento dos povos indígenas ao espaço que lhes é destinado, uma vez que as aspas marcam o estranhamento, aquilo e, no caso, aqueles que não pertencem e por isso são nomeados de forma marcada na reportagem, a pontuação então “[...] serve assim para marcar divisões, serve para separar sentidos, para separar formações discursivas, para distribuir diferentes posições sujeitos.” (ORLANDI, 2012, p.116). Abre-se, pelo uso das aspas um nós/eles que marca quem está autorizado (ou ainda, administrativamente autorizado) a reclamar direitos e quem não está.

As aspas, conforme pontua Authier-Revuz (2004) marcam “em um discurso algo como o eco de seu encontro com o exterior” (p. 229). Então, considerando o modo como foram mobilizadas na notícia, poderíamos questionar: são mesmo “novos” os povos indígenas? Por que foram assim designados? Quais efeitos são produzidos pelas aspas? A fragrante contradição do enunciado com o atravessamento histórico anterior ao processo de colonização ecoa e faz ressoar os sentidos de territórios em disputa que, ordenados de forma evidente em cidade, bairros, comunidades etc., criam para aqueles que são excluídos de tal ordem um efeito de invisibilidade, de desajuste, de transtorno.

Além disso, os “transtornos” causados pelos “novos moradores” retomam uma relação com o histórico da colonização e colocam, novamente, em causa as disputas entre os civilizados/organizados e os selvagens/desorganizados. E aqui podemos inscrever a reflexão por meio dos conceitos de insiders e outsiders de Elias e Scotson (2002)17 e Cardin (2016): os moradores do bairro que se comportam como aqueles que podem ditar as regras de funcionamento do próprio bairro para si, mas, especialmente, para quem não é do bairro.

Assim, agem como estabelecidos por se apropriarem de um território e o organizarem como se fossem os primeiros a ali chegarem e, mesmo considerando o modo de arranjo do povo Kaingang (marcado pela não fixação demorada, mas pela estadia que pode durar meses e, por tal razão, demandar a estrutura da cidade), ao agir como donos do território, os moradores o fazem por estarem a mais tempo no bairro. A questão do tempo de permanência (consideradas as diferenças culturais entre aqueles que já estão no bairro e o povo Kaingang) também se mostra como um fator a ser considerado na produção do abaixo-assinado, pois tais moradores teriam a legitimidade em dizer quem pode ou não ocupar o espaço. Ou ainda, como nos diz Rodriguez-Alcalá:

 

Podemos assim dizer que moradores, nos discursos analisados, são as pessoas que residem habitualmente no bairro, em lugares privados previstos para tanto (casas, apartamentos), satisfazendo os requisitos econômicos (jurídicos) instituídos nas sociedades capitalistas (serem proprietários ou inquilinos) e respeitando certas normas de civilidade (relacionadas a determinadas ideias de intimidade e de moralidade)”. (RODRIGUEZ-ALCALÁ, 2014, p.283).

 

Nos parece, então, que os sentidos produzidos por morador estabelecem uma relação necessária para a construção do efeito de posse (e aí também pode-se reclamar, ao poder municipal tal posse), organizando também o lugar daqueles que são de fora, “excluídos da categoria de moradores” (RODRIGUEZ-ALCALÁ, 2014, p.283) e

 

[...] eles se colocam em posição de determinar os padrões sociais que deveriam ser aceitos. Por outro lado, os outsiders não são apenas aqueles que chegaram posteriormente, mas são aqueles que supostamente não seguem, não acompanham ou são excluídos dos padrões hegemônicos defendidos pelos estabelecidos. (CARDIN, 2016, p.223).

 

Tal “desajuste” fica linguisticamente marcado em relação aos povos originários acusados de levar desordem, provocar perturbação sanitária, de higiene e pública, pois o espaço deve ser organizado, planejado. Um território de passagem, para nômades, sem estabilidade, sem possibilidade de rastreamento, catalogação, numeração de casa, nomeação de rua é um espaço incomodo, desorganizado que ainda nos termos de Orlandi (2001) perturba o efeito de cidade organizada.

Por fim, chamamos atenção para as designações “terreno de passagem”, em 2021, quando foi realizado o abaixo-assinado e “espaço de passagem” em 202218, quando, efetivamente a prefeitura cede, com algumas alterações estruturais (banheiros, cozinha, etc.) um local que abrigava, em anos anteriores, a banda municipal de música. Se tomarmos as designações “[...] enquanto uma relação linguística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história” (GUIMARÃES, 2005, p.9), observaremos que mesmo a ideia de dimensão de terra a ser cedida para os povos originários diminui. O terreno em si já era insuficiente, mas em 2022 há uma diminuição do espaço cedido (que já era pequeno). Nesse sentido, podemos tomar mais uma vez as palavras de Eduardo Guimarães:

 

O modo de significar os espaços da cidade mostra que eles são espaços políticos. O espaço que se dá como objetivo, por uma descrição (referência), atende a objetividade estabilizada do discurso administrativo que nomeia oficialmente os espaços da cidade [....] o discurso administrativo não se dá senão como efeito de memória discursiva que designou no decorrer da história estes espaços, enquanto divididos”. (GUIMARÃES, 2005, p.82).

 

A Casa da Banda passa a ser, então, “espaço de passagem” e temos, ilusoriamente, o efeito de pacificação entre os desiguais: moradores e “novos moradores” acomodados onde supostamente deveriam estar, escamoteando, via designação, a contradição existente entre o dizer e a história que o sustenta.

 

Considerações finais

O ponto de partida para as reflexões realizadas até aqui foi a cidade, que, sob a modernidade e sob os efeitos das alterações promovidas na cultura ocidental nos últimos dois séculos e meio, em geral, é percebida como algo dado e inconteste, resultado implacável do avanço técnico promovido pelas várias etapas do período que se conheceu como revolução industrial. Utilizamos concepções oriundas da chamada Geografia Crítica de Claude Raffestin (1993), para refletir sobre espaço e territorialidade dialogando com as concepções de cidade advindas em especial da Análise de discurso de base materialista e dos estudos sobre a Cidade de Orlandi (2001, 2004) Lagazzi (2001) e Rodriguez-Alcalá (2004).

Tais necessidades atenderam ao ponto de partida para que se pudesse realizar um movimento de compreensão deste constructo humano, que é a cidade, já com dois pressupostos: o de que a cidade, quer na sua universalidade, quer na particularidade, possui história e o de que é necessário desnaturalizar a tendência dominante sobre os estudos urbanos de que o Estado, especialmente, é a única e incontestável força ativa para organizar a sociedade. As elaborações de Claude Raffestin sobre território, territorialidade, especialmente, acatadas como orientação para pequenas digressões realizadas e para suportar a análise da notícia e disputa em torno do território de um bairro em Campo Mourão, cidade do interior do estado do Paraná, contribuíram para demonstrar que a forma de vida organizada sob o modo de produção capitalista não ocorre de maneira determinada única e exclusivamente pelo fundamento econômico, mas os atores privados, proprietários dos meios de produção e os agentes de mercadoria colocam em movimento a energia mais concentrada em cada fase histórica, capazes de manipular, explorar e pressionar outros sujeitos?

As cidades, de alguma forma, materializam o campo da disputa em torno da territorialidade. Há, na organização dos espaços urbanos, um conjunto de elementos que para além das questões geográficas, colocam em questão as relações de poder. As questões que mobilizaram nossa análise em torno de um espaço dado aos povos originários, da etnia Kaingang, de como os sentidos são produzidos na/pela linguagem, nas designações dadas para tais povos, a forma como a cidade trata aqueles que supostamente não deveriam ser seus moradores.

           Parece-nos que o terreno de passagem (apenas terreno, não terra como seria de se esperar) faz funcionar uma memória outra ancorada nos processos de colonização que destituíram as populações indígenas para nomeá-los sempre estrangeiros, sempre nômades, sempre de passagem por espaços e terras que antes eram lugares de pertencimento.

 

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Data de Recebimento: 15/09/2022
Data de Aprovação: 17/04/2023


1  Apontamos que tratamos aqui as noções de espaço e território pelo viés da geografia de Claude Raffestin obra Por uma geografia do poder (1993).

2  Na seção “Espaço, território e cidade” apontamos a diferença entre espaço e território. Também Raffestin (1993), na obra Por uma Geografia do Poder, no capítulo O que é território?, faz um longo debate sobre a diferença entre os dois conceitos que, por uma opção metodológica, não trataremos demoradamente em nosso artigo.

3  Diremos, relacionando os dois campos teóricos mobilizados em nosso trabalho, que o sistema de malhas, nós e redes de Raffestin (1993), aproxima-se do conceito de “corpo significativo” (ORLANDI, 2001, p.11).

4  Consideramos como constitutivo de todo grupo social o funcionamento contraditório, uma vez que, no caso em tela o que está em disputa é o território que, no Brasil, passa indiscutivelmente pelo modo como o Estado (desde a Leis de Terra de 1850) organiza quem pode e quem não pode ocupar determinados espaços.

5  Nos referimos especificamente ao debate feito por Lenin (1917,2007), em O Estado e a Revolução: o que ensina o marxismo sobre o Estado e o papel do proletariado na Revolução, sobre o funcionamento do sufrágio universal.

6  Poderíamos pensar como configuração do território as demarcações de terra, comunidades tradicionais que não são a cidade, mas também precisam de regramento para que possam existir.

7  É preciso pontuar que, quando falamos de coesão e integração, mesmo tratando-se de território, é possível nos aproximarmos dos conceitos de rede e tessitura de Raffestin (1993). Para que que o emaranhando de nós se constitua em uma tessitura com efeito de coerência, é preciso (assim como em um texto) que haja percursos coesivos para que os possíveis questionamentos em torno do efeito de acabamento textual sejam reduzidos. Assim, o sujeito é constantemente chamado a integrar-se ao território sob a ilusão de pertencimento. Tal ilusão é constantemente reforçada pelo jogo de identidade que se sustenta pela linguagem. Reportamo-nos aqui ao texto de Patrick Sériot (1999) ao tratar da questão da construção e reconstrução da identidade coletiva por meio da língua. O autor fala sobre funcionamento da língua durante as transformações políticas da Rússia e cita a tentativa, no período pós-revolucionário, da construção de uma identidade proletária por meio da língua: “não se trata aqui de criar por completo uma língua universal do proletariado, mas de fazer emergir uma nova norma, aquela das antigas classes desfavorecidas, sem tradição e sem memória”. (SERIOT, 1999, p. 27). A imposição de uma normatividade linguística vinculada ao que se entendia ser a língua proletária era também, segundo o autor, um caminho para a construção de uma identidade coletiva.

8  Pensada aqui justamente como um campo de movência que é afetada pela própria organicidade da cidade, por exemplo. Bairros desvalorizados que passam por revitalizações e valorização imobiliária definirão fronteiras distintas daquelas que quando eram considerados periféricos, assim como, definirão também quem poderá transitar/fazer parte do território que se redefine a partir de arranjos econômicos e políticos em torno da cidade.

9  O autor utiliza designações teóricas específicas e próximas de alguns conceitos da semiótica greimasiana. Entendemos as diferenças dos campos de saberes (Semiótica e Análise de Discurso de base materialista, por exemplo). Lidamos, de algum modo, com as incompletudes: de um lado o debate teórico sobre a organização do território e, de outro, a língua que retoma memórias e organiza saberes inscrita no processo contraditório que marca a relação histórica dos sujeitos com o território. Ao optarmos pela manutenção das nomenclaturas referentes ao campo da geografia de Raffestin o fazemos, pois elas são constitutivas dos pressupostos teóricos do autor.

10  A definição de cidade é complexa e pode ser analisada a partir de diferentes lugares teóricos. Para conceituar município, tomaremos a proposição de Fernandes (2018) para quem o município é a unidade administrativo-política com uma sede que é composta pela cidade.

11  Informações obtidas em conversas junto aos técnicos em planejamento urbano da cidade Campo Mourão.

12  Em relação ao debate contido neste tópico, fizemos uma primeira incursão reflexiva (aqui mantida) sobre o tema no evento: 3o. Colóquio Internacional Museus, Arquivos: lugares de memória e história, no simpósio “Discurso na cidade: comunidades e minorias”, entre os dias 09 e 11 de agosto de 2021, na Unicentro, Guarapuava/PR, realizado na modalidade on-line e com textos disponíveis em < https://evento.unicentro.br/files/Arquivos/car_arquivo/16_12_2021_documento_1233165632.pdf>, p. 71-77;

13  Nos reportamos ao debate proposto por Althusser ([1971,2008) em Sobre a Reprodução, ao tratar dos aparelhos do Estado (repressor e ideológicos). Retomando a leitura sobre o Estado feita por Marx e, depois por Lenin, para explicar o funcionamento material da ideologia em forma de aparelhos ideológicos (para além dos repressores em Marx e Lenin), Althusser retoma a tese leninista de que a existência do Estado é a marca do caráter inconciliável entre as classes, pois o funcionamento do Estado marca as formas de tentativa de reprodução das condições de produção em uma Formação Social Capitalista. Assim, o conceito de superestrutura como aquela que "comporta em si dois níveis ou instâncias: o jurídico-político (o Direito e o Estado) e o ideológico (as diferentes ideologias: religiosas, moral, jurídica, política, etc.) (ALTHUSSER, 1971/2008, p. 79), enquanto a infraestrutura diz respeito à base econômica” (unidade das forças produtivas com as relações de produção (ALTHUSSER, 1971, 2008, p.79).

14  Os enunciados foram retirados de reportagem “moradores fazem abaixo-assinado contra área destina a indígenas” que circulou no site de notícias – Tá sabendo, de Campo Mourão, sob a reponsabilidade autoral da redação do jornal. Disponível em <https://tasabendo.com.br/geral/moradores-do-araucaria-fazem-abaixo-assinado-para-impedir-indigenas-no-bairro/_ acesso em julho de 2021.

15  Optamos por manter o enunciado em formato de recuo, pois se trata de um recorte analítico.

16   Chamamos atenção aqui para as aspas que marcam a separação entre os já moradores do bairro e os não moradores.

17  Os autores analisam o desenvolvimento de um bairro londrino a partir de seu zoneamento (1, 2 e 3), sendo a zona 1 e 2 a mais antiga e constituída por famílias de maior prestígio e a zona 3 formada por moradores recentes e cuja ocupação era feita em lugares de menor valor social. Assim, para os autores, havia, por parte das zonas 1 e 2 do bairro, uma necessidade de estabelecer os modos de existência para os que iam chegando depois. Mesmo que tais moradores não fossem residentes originais do bairro, se comportavam como estabelecidos diante dos moradores da zona 3, por exemplo, ditando o poderia ser feito, os modos de existir, etc.

18  Disponível em <https://www.tribunadointerior.com.br/campo-mourao/inaugurado-espaco-de-passagem-para-comunidade-indigena-em-campo-mourao/> acesso em julho de 2022. A prefeitura “cedeu” um outro espaço para os povos indígenas: a, até então, Casa da Banda Municipal.