Um olhar transdisciplinar de pesquisa e a constituição da subjetividade fronteiriza


resumo resumo

Vânia Maria Lescano Guerra
Willian Diego de Almeida



Considerações preliminares

Não é de se admirar que milhares de sujeitos, pelos clamores das “massas”, têm reivindicado mudanças diante das insatisfações políticas e jurídicas, como um testemunho de dias ordinários vivenciados especialmente pelos que são oprimidos por gestos de violências, de revolta, de subcidadania (SOUZA, 2018, p. 217-218); quando não dizimados pela fome, pela falta de assistencialismos, tratados como sub-humanos (SOUSA-SANTOS, 2010) por sua cor, por seu fenótipo, por sua etnia, por sua língua.

E exatamente por ser/estar assim é que a sociedade brasileira tem buscado, por meio de estudos e de pesquisas nos mais diversos setores (tanto na academia quanto fora dela), teorizações que possam nos propor reflexões críticas a respeito de ou a partir de tais situações vivenciadas sobretudo por sujeitos considerados periféricos, seja na luta contra a exclusão, seja na busca do respeito pela diferença, pela inclusão social.

Tal aspecto leva-nos a pensar que se é por meio da língua(gem) que o homem se constitui e consegue edificar as suas ideias, é através dela que se pode captar, problematizar e transformar os efeitos de sentidos que são mobilizados na sociedade e, destes, o mundo que os cerca. Também é nas/pelas manifestações linguísticas que se despontam posicionamentos de apelo às mudanças que a sociedade carece, assim como pode-se denunciar como determinados acontecimentos são atravessados por discursos. E são estes, com raízes fincadas numa memória histórica e social, que contribuem para a (re)produção, mesmo que microcapilarmente, das (des)igualdades, dos aspectos culturais e das representações sociais.

Portanto, se é através dos discursos que podemos visualizar o horizonte dessas desigualdades que se explicita nos feitos contemporâneos, é também por meio deles que podemos analisar a produção das nossas identidades, as construções discursivas que temos a respeito de determinados sujeitos sociais, ou seja, aqueles que foram inclusive esquecidos, escamoteados dos/pelos discursos (pós-)modernos, tais como mulheres indígenas.

E ao acolher esse gesto de interpretação, determinadas materialidades discursivas passam a não ser mais vistas como simples ocorrências, mas, sim, como acontecimentos discursivos articulados por práticas discursivas. Suas “aparições” passam a funcionar como uma estratégia necessária por aqueles que têm poder de “instituir verdades”, como também para abrigá-las e dissimulá-las, com o intuito de moldar e de “conferir” aos sujeitos uma determinada identidade para representá-los na nossa sociedade.

Com esses pontos de partida, é plausível dizer que algumas materialidades se tornam objetos privilegiados para investigações discursivas, possibilitando realizar um gesto de interpretação a respeito do discurso enunciado e das emergências sócio-históricas que as edificam.

Ponderando sobre essas materialidades produzidas historicamente, parece-nos interessante analisar uma obra intitulada “Pelas mulheres indígenas”1 lançada no ano de 2015 pela ONG Thydêwá, com parceria da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e Secretaria de Políticas para as Mulheres da Bahia.

O projeto de sua produção2 (2014, p. 4) estaria vinculado ao objetivo geral de fortalecer mulheres indígenas de 08 etnias do Nordeste, seja na pesquisa, seja no estudo ou na promoção de mudanças para as realidades de suas comunidades. No interior dos enunciados da obra, uns autenticam as conquistas, mas outros trazem a afirmação de que se os indígenas sofrem discriminação, as mulheres indígenas têm sofrido muito mais em diversos âmbitos, indo inclusive do público, perpassando o social até chegar no familiar.

Com base nessa materialidade, este texto parte da hipótese de que a obra “Pelas mulheres indígenas” (2015)3, apesar de incluir o gênero feminino na ordem do discurso social, por outro lado, traz marcas de marginalização a respeito da mulher indígena, pela sua posição de vulnerabilidade, por relações (pós-)colonialistas e pelo lócus cultural fronteiriço em que ela se encontra, como um dispositivo discursivo que agencia a construção de uma subjetividade fronteriza.

Por fronteriza entende-se o termo enunciado por Anzáldua (2005, 2009) que, aqui ressignificado, faz referência às marcas singulares que dizem respeito à constituição do sujeito (no caso a mulher indígena), a edificação de crenças e valores sempre condicionados às circunstâncias históricas, políticas e culturais próprias da etnia. Considera o local de nascimento, de onde o sujeito pensa e de onde ele enuncia.

Além disso, a grafia se difere de fronteiriço justamente para enunciar que fronterizo faz referência aos sujeitos que vivem em espaços geográficos e simbólicos que estão na zona do esquecimento do olhar moderno hegemônico, ou seja, sujeitos que normalmente não são e não foram convidados a inscrever o seu quadro de produção epistêmica na ciência moderna, sobretudo pelo percurso de colonização.

Diante disso, algumas perguntas de pesquisa foram mobilizadas: 1) Há marcas linguísticas que, interdiscursivamente, remetem aos trajetos de inclusão e de exclusão social da mulher?; 2) Há marcas linguísticas que fazem referência e sustentam as dicotomias, as diferenças fronteiriças, os aspectos (pós-)coloniais?; 3) Dessas marcas, há possíveis efeitos de sentidos de marginalização e de estereotipação que emergem em relação à mulher indígena? Diante disso, temos o objetivo de problematizar, mediante recorte discursivo, possíveis efeitos de sentidos que emergem da materialidade da obra citada em relação à representação da mulher, de etnia indígena e a constituição de uma subjetividade fronteriza.

A justificativa pela escolha desse tema repousa no fato de que pouquíssimas são as pesquisas que se preocupam em articular as relações identitárias de sujeitos que ainda estão á margem da sociedade, sobretudo nos enunciados de uma obra, cuja circunstância de enunciação diz respeito à mulher indígena.

E para que o dispositivo analítico dos recortes elencadas, utilizamos, transdisciplinarmente, as noções teórico-metodológicas, a seguir:

Da perspectiva discursiva (CORACINI, 2003, 2007, 2010; GUERRA, 2010, 2015), a fim de produzir um outro lugar de conhecimento, afastando-se da mera aplicação da linguística sobre as ciências sociais ou vice-versa nos enunciados analisados;

1) Do suporte teórico-metodológico foucaultiano (1987, 1988, 2008, 2010, 2012) — arqueogenealógico — que suplementa as metodologias teóricas da perspectiva discursiva, como uma visada teórica que procura (re)configurar trajetos de sentido que constituem as práticas discursivas da Análise do Discurso e (d)enunciar como essas formas se desenvolveram;

2) Da desconstrução, por meio das balizagens teóricas derrideanas (1991, 2001, 2003, 2013), sobretudo pela análise de deslocamentos das significações, dos efeitos de sentidos;

3) E de outro fio teórico-condutor: o ponto de vista pós-colonialista de Anzaldúa (2005), de Mignolo (2008), de Castro-Gómez (2005), de Sousa-Santos (2010, 2014, 2019), Agamben, (2010) e de Nolasco (2013, 2015), uma vez que articulam um deslocamento para a análise de uma epistemologia fronteiriça.

Embora saibamos, conforme Gregolin (2007, p. 14) explica, que a natureza complexa do objeto discurso no qual confluem a língua, o sujeito, a história fez com que se propusesse a constituição de um campo em que se cruzam várias teorias, um campo transdisciplinar, existem fronteiras de posicionamentos, encontros e desencontros nada confortáveis entre os pontos de vistas teóricos acima citados. Não há como negar a existência de tais aspectos, mas, também, coloca-se que existem “diálogos” entre as perspectivas, os quais devem levar sempre em conta a contradição.

Coracini (20210, p. 92-93) exemplifica isso ao dizer que as análises discursivas, em sua essência, são todas transdisciplinares, visto que trabalham sempre na confluência com a teorização de outras áreas do conhecimento. Tanto é que a autora pondera o quanto que a escola francesa, mobilizada pelo fundador Michel Pêcheux, tem sua base analítica mobilizada mediante três pilares: a linguística estruturalista, o materialismo histórico e psicanálise de orientação freudiana.

Ademais, dependendo do desígnio da pesquisa, mesmo trazendo noções teóricas de outros campos haverá necessidade de ressignificá-las, na tentativa de realizar ampliações, tecer críticas e propor alternativas teórico-analíticas sobre os gestos interpretativos a respeito da materialidade elencada.

Diante disso, a título de exemplo, traremos à baila autores-filósofos citados com base em outras orientações epistemológicas (filosóficas e pós-colonialistas) a fim de flagrar e delinear com mais atenção as instâncias discursivas no gesto analítico de problematização.

 

1. Pelas “mãos” da transdisciplinaridade

A centralidade analítica das materialidades da obra “Pela Mulheres Indígenas” (2015) (regularidades e dispersões) exige que determinadas noções teóricas venham à tona, o que não tem relação alguma com a questão da desvalorização teórica de outros campos. Tanto é que muitos conceitos derivados dessa própria área não foram tratados aqui pelo fato de os processos discursivos assim não o exigirem. E essa compreensão é fundamental justamente para entender que, ao “chegar em um determinado ponto”, a Análise do Discurso passa a necessitar do diálogo com outras áreas de estudo, trazendo as noções teóricas que solidificam o gesto de interpretação analítico-discursivo em aspectos pontuais, específicos.

Daí a ideia de Coracini (2010, p. 92-93) ao dizer que acabamos por “puxar os fios de que necessitamos, para, com eles, tecermos a teia de nossa rede teórica, transformando, assim, esses fios, ao mesmo tempo em que nosso olhar é por eles transformado”. São esses fios que nos ajudam a analisar a materialidade linguística.

Decidimos, então, utilizar as bases um gesto analítico que considere teorias capazes de apreender e denunciar o funcionamento discursivo das materialidades que compõem esse texto e que fazem parte da realidade de uma sociedade como a brasileira. Nessa nossa leitura de “entremeio”, isto é, no campo relacional com outras esferas epistemológicas (ORLANDI, 2003, p. 3), não nos ocupamos da ideia de que somente um conhecimento é exclusivamente válido. Em decorrência disso é que, após enunciar a importância da perspectiva discursiva, buscamos realizar uma “travessia da tormenta” (ROUDINESCO, 2007, p. 11) e trazer teorizações que se confrontam em muitos pontos, mas que também estabelecem diálogos muito efetivos com os estudos do discurso. Teorizações constitutivas, inclusive, de uma heterogeneidade teórica, na qual o pensamento crítico de uns se efetiva por meio do atravessamento de outros, de maneira indelével. E esse gesto, longe de realizar meras aplicações teóricas (frias ou que estão “na moda”) serve para denunciar que é o corpus que vai evocar a emergência das teorias e não as teorias que vão se aplicar ao corpus.

Como o processo analítico empreendido pela perspectiva discursiva não se dá mediante a compartimentalização de vertentes teóricas unívocas, mas por meio do entrelaçamento entre o linguístico com o social, articulamos que sempre serão diferentes umas das outras em razão do gesto de interpretação do analista e da escolha na mobilização e emprego das noções teórico-conceituais nos recortes discursivos elencados.

Vale dizer que as vertentes podem ser diferentes umas das outras, mas devem dialogar entre si, em razão do gesto de interpretação do analista ocorrer, sobretudo, não só pela “ordem da estrutura, mas da materialidade, é um fato de acontece”. (POSSENTI, 1988, p. 201). Coracini (2003, p. 27) justifica a defesa da constituição e do avanço da perspectiva discursiva, inclusive demonstrando esse progresso ao postular em suas pesquisas como visada discursivo-desconstrutiva. A autora faz isso por considerar que somos sujeitos que (sobre)vivem no bojo de um sistema neoliberal e que, portanto, esse campo teórico de análise vai se relacionar fortemente “a ideologia da globalização que invade o mundo, define posições, demarca relações de poder, cava ainda mais as desigualdades sociais econômicas e sociais”.

A justificativa da autora deu-se também pelo fato de as teorias críticas – sobretudo depois da década de 60 – terem sofrido diversas rupturas epistemológicas que começaram a tomar conta de diversos cenários de pesquisas, sobretudo no campo linguístico. E essa questão, por sua vez, acabou “atingindo” o campo acadêmico, sobretudo nas reflexões teórico-metodológicas e nas pesquisas, tanto nos objetos de análises quanto nos próprios processos e conceitos. Compenetrado desse movimento, o olhar discursivo-desconstrutivo, seja pelas mudanças sociais, seja pelas ampliação das abordagens epistemológicas – visa então a reconhecer o caráter transdisciplinar do processo analítico, sendo este empreendido com o objetivo de mediar o movimento interpretativo sustentado, sobretudo, pelo diálogo entre a Análise do Discurso, da desconstrução, do suporte arqueogenealógico foucaultiano e demais orientações epistemológicas que podem colaborar com a análise discursiva.

No caso deste artigo, como trabalhamos com materialidades que demandam sujeitos enunciadores diversos, propomos pensar uma perspectiva discursiva com o olhar coraciniano, mas articulando outros tipos de conhecimentos, como os resgatados pelas epistemologias do Sul (SOUZA SANTOS, 2019, p. 20), uma vez que estes articulam aspectos discursivos que estão intrinsicamente incorporados em suas práticas sociais. São teorizações que estão relacionadas às propostas de teóricos pós-coloniais, os quais pensamos, entre (du)elos, relacionar conforme a solicitação discursiva do recorte da materialidade.

Além do mais, a utilização de uma crítica que procure “escavar” (FOUCAULT, 2008, p. 8) mais propriamente as discursividades por meio da exterioridade, pelas críticas “fora-do-eixo” (NOLASCO, 2013, p. 47; 2016, p. 57) torna-se importante, pois além de compreendermos melhor os dirscuros que estão na base do aparecimento das materialidades da obra “Pelas Mulheres Indígenas” (2015), podemos analisar o quanto há “negociações” discursivas em seus enunciados. E são essas negociações, por sua vez, que garantem a visibilidade, a re-tomada e a re-circulação de determinados discursos que incidem na identificação simbólica, nos papéis sociais, na representação identitária, por exemplo, da mulher indígena que intervém na disposição das subjetividades.

 

2. Um olhar oblíquo sobre a materialidade discursiva

As marcas enunciativo-discursivas flagradas na obra e relacionadas aos interdiscursos, traços, rupturas, falhas próprias da linguagem, denunciam a inscrição de regiões de sentidos outrora deixados à margem, recusando as “evidências”, oportunizando a marcha das políticas das transgressões. Essa inter-relação entre Análise do Discurso, os “desconstrutores” e epistemologias outras, não pressupõe uma teoria a priori, mas sim, um imperativo de ordem metodológica de análise das discursividades: o empreendimento de um “vai e vêm”, sempre que necessário, da teoria em razão do recorte discursivo.

Esse olhar que buscamos aqui delinear é justamente para exercer um gesto analítico que considera a pluralidade de polos epistemológicos, mas não de maneira hierarquizada, polarizada e essencialista. Concordarmos com Mignolo (2008, p. 291), quando o autor explica que “[...] hoje não há algo fora do sistema; mas há muitas exterioridades, quer dizer, o exterior construído a partir do interior para limpar e manter seu espaço imperial”. Por outro lado, também aplaudimos Souza Santos (2008, p. 24), ao dizer que “[...] é difícil conceber uma alteridade ou exterioridade absoluta à modernidade ocidental.”. E esse gesto se dá porque entendemos que a perspectiva discursiva “é um lugar de discussão constante sobre a construção dessa transdisciplinaridade: língua, sociedade, historicidade, sujeito são os polos em torno dos quais vem sendo erigido o seu edifício teórico [...]” (GREGOLIN, 2006, p. 85). E é no campo deste desafio teórico – ou da incompletude constitutiva seus outros olhares teóricos – que também buscamos apontar que a teoria é mobilizada na construção do objeto e na montagem do corpus.

Se há a necessidade de se trazer outras bases teóricas, conceitos e objetos de pesquisas específicos, como já mencionado, a prática de utilizá-los como um instrumental teórico pode se dar mediante o processo de trandisciplinarização. Metaforicamente, pode-se comparar com a montagem de um mosaico4, cuja técnica incide em encaixar peças diversas, de ângulos diferentes com o objetivo de formar algum tipo de imagem ou figura a ser construída.

Entendemos que “método” de uma perspectiva discursiva, transdisciplinarizar é analisar um enunciado como efeito dos discursos, cuja singularidade só pode ser notada mediante determinadas condições de produção (ou de enunciação). Isso porque os enunciados têm uma “história”, e esta não é apenas um meio de se “saber” o que houve no passado.

É, antes de tudo, um dos elementos necessários nos quais podem ser analisadas as produções sociais dos sentidos, uma vez que a história pode ser observada como o efeito das construções discursivas. Por isso não é transparente. É uma interpretação daqueles que tinham o poder de interpretar (DERRIDA, 2001, p. 11); fato este que motiva um analista a evocar outras noções teóricas que possam considerar a relação de interpretação estabelecida entre as expressões, e os seus efeitos de sentido. Isto é: “[...] quando o corpus a ser analisado estiver sob determinadas condições de produção e quando interessar um enfoque determinado [...]” (POSSENTI, 1988, p. 114). Daí, transdisciplinarizar

 

[...] não se trata de recorrer a outras disciplinas, menos ainda de nos servirmos, enquanto analistas de discurso, de cada uma tomando-as na sua integralidade, como pretende uma certa interdisciplinaridade, sem atentar para a impossibilidade de tal empreendimento, mas de puxar os fios de que necessitamos, para, com eles, tecermos a teia de nossa rede teórica. (CORACINI, 2010, p. 93)

 

Por esse motivo, alicerçamo-nos nesse campo transdisciplinar entre perspectiva discursiva, desconstrutores e teorização pós-colonial, uma vez que, além de buscarmos questões e aspectos que outro analista ainda não desenvolveu, possibilita delinear novas formas de encarar a(s) configuração(ões) dos saberes, considerando o recorte, as condições de produção, a enunciação, a hipótese, os objetivos e as perspectivas traçadas em nosso texto; aspectos essenciais para se ter acesso aos efeitos de sentido outrora deixados à margem e des-cobrir (tirar o que cobre, o que escamoteia) como estes se desenvolveram, se constituíram, se deslocaram e (re)produzem saberes que adquirem um espessura material.

No âmbito da arqueogenealogia foucaultiana, em um exame de como analisar a produção histórica das subjetividades fronteiriças na materialidade da obra, Michel Foucault vem fornecer subsídios para se empreender uma análise dos processos históricos da nossa sociedade e, automaticamente, dos aspectos culturais para se compreender o estabelecimento da “identidade”. Parece-nos necessário fazer uma observação do “porquê” utilizamos a arqueogenealogia, esse “peregrinar”, esse “ir e vir” nos estudos foucaultianos como um dos pilares do processo analítico. É pelo fato do saber, do poder e da estética de si serem produtores de subjetividades. Com olhares oblíquos para o processo civilizatório, Michel Foucault (2010a, 2012, 2015, 2017) aponta para a edificação dos saberes como um arqueólogo que investiga (escava) aspectos que a linearidade do processo histórico teima em escamotear: as rupturas, as descontinuidades, a(s) verdade(s) enquanto construção.

Cada acontecimento discursivo, para adquirir espessura material, coloca em circulação determinados enunciados (singularidade/repetição) que faz aparecer conteúdos concretos a respeito de um saber num tempo e num espaço determinados (FOUCAULT, 1987, p. 99). Como ele não é da ordem do acaso, para que adquira existência material o enunciado deve ser relacionado à sua função enunciativa, ou seja, ao seu exercício de acordo com as regras (históricas) que o controlam, pois elas “autorizam” a sua possibilidade de realização, a sua legibilidade, a sua “aparição”.5 Dessa feita, examinar o reagrupamento dos grupos de enunciados na obra escolhida, seus sistemas de dispersão, de regularidade, de conceitos, de escolhas temáticas, “[...] descrever o seu encadeamento e explicar as formas unitárias pelas quais eles se apresentam” (FOUCAULT, 1987, p. 40), é apontar as Formações Discursivas, o direcionamento do dito, a saber:

 

Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício de uma função enunciativa. (FOUCAULT, 1987, p. 136).

 

Com Michel Foucault passamos a considerar que os sistemas de pensamentos e a constituição dos saberes do e a partir do indígena, nas materialidades, não podem existir sem sistemas de controle. Por isso o discurso está ligado ao poder, uma vez que para a constituição e para manutenção de um saber existem regras de governança (FOUCAULT, 2012, p. 276). Essa “passagem” de uma reflexão sobre a constituição dos saberes às relações de poderes é o que caracterizaria a fase genealógica como um “suplemento” (DERRIDA, 2013, p. 382) de uma análise interpretativa. E essa “divisão” (in-fiel) dos momentos de Michel Foucault, faz parecer que o saber e o poder são diferentes. Ora, eles podem ser diferentes em seu caráter, mas para a análise das discursividades pressupõem uma reciprocidade.

Já com a “esgrima intelectual” de Foucault e sua relação com Derrida podemos examinar e questionar a problemática dos discursos no trajeto da história do pensamento ocidental, seja por meio da (des)construção das palavras, das verdades, da dissimulação da escrit(ur)a, seja por meio da de-sedimentação dos binarismos, do desmascaramento e o abandono da “racionalidade” em relação à significação do logos (DERRIDA, 2013, p. 13) que pode emergir no campo discursivo da obra “Pelas Mulheres Indígenas”(2015). Para Derrida (2013, p. 8-9), o conceito de escritura vai além de uma extensão da linguagem: a escritura compreende a própria linguagem.

De qualquer maneira, não é duvidoso que haja discursos no âmbito acadêmico que pensem o contrário ou até mesmo que achem absurdo trazer teóricos com olhares tão díspares; pelo fato de essa construção teórico-metodológica-analítica se esquivar dos discursos acadêmicos disciplinares procedidos dos grandes centros do Brasil e do exterior (NOLASCO, 2013, 2016). Pensando nisso, mantemos o cuidado em destacar que, embora Derrida pondere suas reflexões de um lugar e de uma forma diferente das de Foucault, da Análise do Discurso e de Nolasco, o franco-argelino faz referência aos mecanismos linguísticos. E esse ponto muito nos interessa, pois trabalhamos aqui com o campo da língua(gem) e consideramos a língua, os textos como uma espessura material relevante para se chegar ao discurso e à produção dos efeitos de sentidos.

 

3. A invisibilidade do sujeito fronteirizo: o viés analítico da pesquisa

Com a desconstrução derrideana (2013) há o rompimento do processo representacional do signo, já que não existe um dado fixo a ser atribuído ao significado. Os vocábulos não esgotam mais nas determinações, pois ele é portador de múltiplas dimensões. Não há totalidade de sentidos, muito menos esgotamento. Há uma construção estrutural na constituição das palavras, mas na própria estrutura “[...] não há apenas a forma, a relação e a configuração” (DERRIDA, 1995, p. 15). Há, para além da estrutura, uma ausência de tudo em que se (d)enuncia toda a presença. E ao cair por terra aquela crença metafísica (da presença) a respeito da evidência “tranquilizante” de um significado numa determinada palavra (DERRIDA, 2013, p. 13), os enunciados arrolados na obra “Pelas Mulheres Indígenas” (2015), bem como os seus significados, não são transparentes e muito menos devem ser tratados de maneira ipsis litteris, plenos. Deve-se acentuar também o seu lado ausente, o que está oculto, mas jamais eliminado, que acaba por sustentar o (efeito de) sentido numa determinada palavra num determinado enunciado.

Nesse sentido, se as palavras não podem ser consideradas em sua plenitude. Derrida (1991, p.33) vem demonstrar que uma letra pode fazer toda a diferença na direção do sentido de um dizer. Nisso ele denuncia no cenário filosófico da linguagem um neografismo denominado différance, conceito no qual o autor se abriga para relatar que as palavras estão eivadas de “adiamentos” de sentidos. O autor utiliza-se desse termo para nos apontar que as palavras são dotadas de múltiplos sentidos, mas que estes acabam sendo deixados de lado pela metáfora da literalidade que acompanha a sua própria estrutura. Isto é, como viemos de um percurso um tanto estruturalista a nossa visão se inclina para uma leitura um tanto “horizontal”, deixando as “verticalidades” de lado.

Para o processo analítico deste artigo, mobilizamos apenas dois recortes6, diante da extensão deste trabalho. Inicialmente, o recorte (R1) da obra em foco articula saberes que nos levam a efeitos de sentidos e problematizações, a saber:

 

PMI (R1) Vemos atualmente o governo querendo continuar a massacrar os indígenas. Parece que os homens ambiciosos por dinheiro quer fazer o fogo voltar contra nós.

[...]

A gente quer que o governo tenha compromisso, que entregue nosso território de volta. Só assim todos que vivemos na região teremos paz. (ONG THYDÊWÁ, 2014, p. 16)

 

Em R1, podemos observar o quanto a materialidade da escrita pode trazer a descrição de acontecimentos pretéritos que parecem emergir como uma possibilidade de resistência às mudanças globalizantes que têm ocorrido no hemisfério Sul. Como os gestos de interpretação da história indígena no Brasil foi/é (re)vivido e (re)construído por meio de diversas manifestações linguísticas, com a materialidade da obra analisada isso não seria diferente. Ela está umbilicalmente ligada aos atravessamentos discursivos e funciona como um instrumento de escrita capaz de trazer à tona formações discursivas e interdiscursos que sustentam o seu dizer e alimentam as representações que temos, por exemplo, de que as mulheres indígenas e o seu povo ainda são ignorados ou legitimados como minoria pelos movimentos governamentais.

E é nesse contexto que R1 traz para a cena da enunciação os desafios pelos quais os indígenas têm passado e a necessidade de resistir (FOUCAULT, 1988, p. 91) como forma de resposta à sua própria sobrevivência. Além disso, R1 discursiviza o quanto o gesto de governamentalidade – as instituições, os procedimentos, os gestos analíticos, táticos e reflexivos do governo (FOUCAULT, 2012, p. 296) – tem atuado em suas vidas.

Nessa escritura, quando um verbo como o “vemos” é utilizado no modo indicativo (certeza, convicção), o enunciador traz para a cena da enunciação uma ideia de que o sujeito não mobiliza o seu dizer apenas como um sujeito qualquer, pois o verbo identifica que ele fala a partir do interior de um grupo. O item lexical “vemos” (eu e os outros indígenas) faz entrever não só a possível instância espacial enunciativa dos acontecimentos (fora da zona urbana), como também identificar o processo temporal por meio do advérbio de tempo “atualmente”.

A materialidade discursiva dessa expressão “coletiva” torna-se absolutamente particular (PÊCHEUX, 2012, p. 21), pois ao enunciar “atualmente o governo querendo continuar”, R1 deixa resvalar efeitos de sentido de relações de poder entre os que dominam (centros hegemônicos) e os que são dominados (e “assistem” e escrevem a respeito da invasão do branco). Essa relação de dominação é reavivada pela memória discursiva colonial denunciado através do advérbio “atualmente” e dos operadores linguísticos “querendo” (gerúndio, continuidade) e “continuar” (forma nominal do verbo) que esses eventos permanecem ocorrendo nos dias atuais e que não foram superados, demarcando inclusive a próprio “sujeito paciente”: “os indígenas”.

R1 operacionaliza sentidos. Existem aí dois “antagonistas”: o governo e os “homens ambiciosos” (sinônimo para branco). De acordo com Potiguara (2004, p. 222), é fácil notar que as causas de muitos conflitos para com os indígenas vêm desde o processo de colonização. Violência, racismo e intolerância fazem morada nas aldeias nas indígenas quando se referem ao contato com o governo e com o branco. Para a autora indígena (2004, p. 222), esse “paternalismo oficial” advindo dos órgãos públicos sempre foi e ainda é uma forma de violência e de racismo institucional, nos quais as mulheres e as crianças passam a ser os mais alcançados.

Em relação aos “homens ambiciosos”, quando R1 enuncia esses termos para interpretar de forma eufemística os brancos gananciosos, a sociedade hegemônica capitalista, deixa resvalar efeitos de sentidos de que esses sujeitos estão dispostos a qualquer atitude para que possam alcançar o aspecto financeiro almejado. Ancorado numa formação discursiva financeira e econômica, o enunciador projeta que a ideia de invasão capitalista no território indígena tem sido grande e voraz em razão da questão financeira.

Trata-se de um argumento um tanto convincente (para não dizer uma desculpa esfarrapada) da cultura ocidental que serve como pretexto para o desrespeito da différance (1991, p. 47), para a continuidade da primazia hegemônica com base na discriminação e na manutenção de uma memória colonial arraigada de sucessivos (e massivos) artifícios de exclusão. De acordo com Guerra (2015, p. 98), as comunidades indígenas contemporâneas espelham um histórico de massacres e de exploração que perpassou seu contato com o colonizador, uma vez que as terras garantidas aos índios não são suficientes para a manutenção de sua cultura. A questão aqui não é só pensar na exclusão do indígena; é analisar que as próprias discursividades que estabelecem interlocuções com as relações de poder entre o governo e a população indígena é que têm consolidado esse gesto de exclusão (GUERRA, 2015, p. 99), já que toda produção tem que ter em mente o lucro diante do capitalismo.

Ao enunciar de forma declarada os algozes, interpretamos que o enunciador faz um gesto de “resistência às captações do poder” hegemônico (FOUCAULT, 1988, p. 147), atentando para a impossibilidade de continuar esse jogo que remete à da retórica colonial, na qual determinadas práticas bárbaras de colonização eram realizadas contra eles. E esse gesto de resistência é observado quando a invisibilidade desses processos de violência, de exclusão aliados à ganância da sociedade hegemônica pela tomada de terras e à vontade de extermínio de povos e culturas não se sustenta mais. Os indígenas resistem.

E esse gesto de indignação também pode ser analisado na rogativa “governo tenha compromisso” e “entregue nosso território de volta”. R1 busca reivindicar um direito que é próprio dos indígenas: a seu espaço, seu território, já que a terra é um bem ancestral para as etnias indígenas, sendo a sua principal bandeira a luta pelo território na busca pelo bem viver (GUERRA, 2010, p. 30-31). Ao problematizar os itens lexicais “governo tenha compromisso”, o enunciador utiliza um tom de denúncia a fim de que haja uma subversão em relação às atitudes governamentais para com os povos indígenas. Essa afirmação traz a declaração de que o governo não tem compromisso para com esses povos. Observamos a perversidade em se utilizar da degradação dos inúmeros costumes e culturas indígenas, provocada pela sociedade envolvente, o poder econômico, para negar aos povos indígenas a sua própria condição e os direitos que dela seriam decorrentes, a sua própria história.

Com Souza Santos (2014, p. 11) é possível dizer: “[...] a promessa de igualdade nunca passou de uma fantasia jurídica”, pois infelizmente, ainda, os povos que têm referências não ocidentais acabam sofrendo com o domínio hegemônico, pois pelo enunciado de R1 o próprio Estado parece se utilizar de artifícios vigorosos para demonstrar que ainda vigora um processo de controle “administrativo” baseado na presença de uma hierarquia que já não se manifesta pelo quadro das opressões declaradas, deixando claro: o deste lado da linha e o do outro lado da linha (indígena) (SOUZA SANTOS, 2007, p. 71) que desaparece perante a sua realidade de fronteiriça (ANZALDÚA, 2005, p. 704; NOLASCO, 2009, p. 44).

E esse gesto de controle não para por aí. Por mais que estejam em movimento na nossa sociedade discursos de inclusão como os das leis para com os sujeitos marginalizados, podemos ponderar que a discursividade de seus enunciados pode retratar inclusive outros deslizamentos de sentidos que remetem não só há retórica colonial, mas a continuidade de discursos patriarcalistas. Essa invisibilidade social também pode ser observada no recorte (R2), a seguir.

 

PMI (R2): O Fogo de 51

Foi uma coisa muito horrível para as mulheres indígenas... Houve muito estupro, até de índias grávidas e de mulheres em resguardo. Os policiais usaram elas. Judiaram delas. As nossas mulher foram muito humilhadas. Amarraram seus maridos perto delas enquanto eram usadas. Tem mulher que ainda hoje se sente envergonhada. Nós, mulheres, somos muito sofridas. Ainda hoje passa muito essa coisa de estupro. Foi lá que começou essa violência que ainda existe contra nós, mulher indígena. Quando a polícia chega nas nossas áreas é com muita agressão, agressão contra as mulheres e contra as crianças também. Agressão verbal e física. Na nossa comunidade, mulheres e crianças também lutam para defender nosso território. Nós, mulher, bota o maracá e a borduna na mão e enfrenta o que for. (ONG THYDÊWÁ, 2015, p. 13)

 

Pensando com Foucault em sua “Arqueologia do Saber” (2015), ao analisar as condições que possibilitam R2 enunciar o acontecimento “Fogo 51”, vemos que a sua inscrição deriva de um discurso que faz parte da história do Brasil e que, aqui, tem uma de suas versões apresentadas no recorte da obra em análise.

O Fogo 51 foi um massacre que ocorreu há mais de 50 anos numa aldeia em Barra Velha, Porto Seguro, estado da Bahia, sendo caracterizado por um conflito entre indígenas e homem branco na busca por direitos pela ocupação de terras. Os indígenas (Pataxó) que lá estavam tiveram todas as suas casas incendiadas, foram espancados, amarrados, rendidos, sofreram torturas e tiveram diversos dos seus mortos pelo policiamento local, deixando os que restavam sem aldeia e sofrendo pelo desamparo.

Justamente por remeter a um objeto de luta, em R2, na esteira da perspectiva gramatical de Neves (2000, p. 791), é possível analisar que o sujeito enuncia os verbos no pretérito perfeito – foi, houve, usaram, judiaram, foram, amarraram, eram – a fim de apontar para os eventos percebidos como pontuais e simultâneos. O uso desses verbos remete a fatos passados e favorece o nosso gesto de interpretação para compreender que há uma memória discursiva, cujo trabalho produz, como um domínio associado, a ligação da singularidade do acontecimento discursivo “Fogo de 51” com a atualidade. Isto é, do intradiscurso (enunciado) emergem efeitos de sentidos de sofrimento, de luta, de submissão, de dominação em decorrência da sua relação com o interdiscurso (pré-construído, já-lá) (PÊCHEUX, 1988), buscado nos resquícios da memória discursiva.

Ancorados em Anzaldúa (2005, p. 706) interpretamos a possibilidade de ressaltar dois aspectos: que essa narratividade funciona como uma prova à intolerância do ambíguo, do diferente vivenciado (e ainda vivido...) pelos sujeitos periféricos; mas, por outro lado, traz à tona cenas, via memória discursiva, de um momento histórico – “Fogo 51” – em que ainda não era desconstruída a dualidade sujeito-objeto, que matinha a mulher, o sujeito indígena, como uma vida matável. Portanto, os usos dos verbos no passado denunciam aspectos para além de um registro histórico ingênuo e simplista. Se a obra representa a realidade, a narratividade do passado, R2 aponta para a relação das forças sociais existentes entre o branco versus o indígena, o colonizador versus o colonizado, o forte versus o “fraco”.

Vale dizer que não é apenas essa imagem de rivalidade amigo-inimigo que é trazida e reforçada nesse excerto do discurso da obra; mas, também, a imagem de zóe-bíos, de vida nua-existência política, de exclusão-inclusão, articuladas por Agamben (2010, p. 16). Isto é, a vida da mulher indígena (vida humana) é incluída na ordem do discurso social unicamente sob forma de sua exclusão. Trazendo para a especificidade desse excerto e com um olhar transdisciplinar, compreendo essa vida matável com Agamben (2010), que traz o termo homo sacer, remetendo a um poder soberano jurídico que (trans)forma, pela ordem de sua força, um sujeito excluído da ordem discursiva social como um sujeito possível de ser aniquilado, indigna de ser vivida.

No enunciado, os efeitos de sentido de homo sacer contribuem para a produção de sentidos e nos faz denunciar que “[...] existem vidas humanas que perdem a tal ponto a qualidade de bem jurídico, que a sua continuidade, tanto para o portador da vida como para a sociedade, perdeu permanentemente todo o valor” (AGAMBEN, 2010, p. 133). E como os sujeitos são efeitos dos discursos que circulam na trama social, os próprios discursos é que elencam quem é (ou será) seu homo sacer, ou um grupo de sujeito, uma comunidade. E é por essa constante ameaça em relação a sua vida ser matável, o homo sacer, que, em R2, o enunciador necessita trazer essa relação do passado, tensionada pela memória discursiva, como uma introdução para falar de si.

Isso porque R2 enuncia, desde o início do excerto, por meio de termos que acarretam um caráter de afastamento do enunciador em relação ao fato enunciado. Apesar disso, há mudança em sua fala, uma aproximação de sua ipseidade (DERRIDA, 2003), no momento em que traz para o seu gesto de enunciação o pronome pessoal do caso reto, “nós”, primeira do plural - cuja função é a de substituir os nomes para assumir a posto de sujeito da ação – e o “ainda” – advérbio de tempo que traz a função juntiva (NEVES, 2000, p.273) como um artifício de que, ao falar do outro, também fala si; que ao fazer emergir o passado demonstra que esse fato ainda está recorrente em seu presente.

O acontecimento narrado possibilita um processo de identificação do enunciador pelo fato de também ser indígena ou, como diria Coracini (2010, p. 95), permite “pontos de identificação com o outro: traços no sujeito que se identificam com traços do/no outro”. Esse gesto também aponta para a ideia de pertencimento (CORACINI, 2007), não no ius sanguinis ou ius solis, mas ao identificar que, por meio do fato de enunciar o acontecimento relacionado ao outro, ela também fala de si, mesmo que imaginariamente, uma vez que o “Fogo de 51” traz de forma indelével uma marca na vida daqueles de etnia indígena que vivem na região bahiana.

Na esteira de Anzaldúa (2005, p. 707), pode-se dizer que R2 seria um apelo, uma maneira de denunciar a necessidade de mudança para essa realidade e de cicatrizar a divisão existente, esse mal-estar entre culturas que, embora saibamos que nunca vai desaparecer, em razão dos próprios fundamentos de nossas vidas, nossa cultura, nossas línguas, nossos pensamentos, pode gerar movimentos sociais. Esses movimentos, aos poucos, podem transformar essa forma massiva de pensamento dualista no sujeito e na consciência coletiva. Esse excerto representa o início de uma longa luta e ainda teima em prevalecer no nosso seio social, mas que poderá, com a melhor das esperanças, trazer o fim do estupro, da violência e da guerra.

Utilizando o mesmo recorte, afinal de contas, um mesmo recorte pode depreender diversos mecanismos discursivos, queremos salientar para a “evidência” que fornecem em relação aos erros ortográficos das enunciadoras. Esses erros, por sua vez, podem sinalizar gestos de subjetivação a respeito das identidades das mulheres indígenas. E pelo fato de ter sido escrito por um sujeito-enunciador que ocupa o lugar dos oprimidos, é impossível não verificarmos o tom de crítica negativa adotada em relação às atitudes de dominação e de exploração em relação aos povos indígenas, demonstrando dois pontos analíticos: as suas lutas não podem ser vistas de maneira separada das lutas sócio-políticas articuladas pelas ocorrências sociais do branco – embora já tivessem sido tendenciosamente caladas; as mulheres indígenas são produtoras de um saber e, portanto, a sua função enunciativa realça não só a força e a presença dos oprimidos em nossa sociedade como também dá ênfase a uma nova orientação epistemológica de manifestação consistente: uma crítica fronteriza (NOLASCO, 2009, 2013), pois se esquiva de ser um produto imperial-hegemônico.

Souza Santos (2019, p. 17) contribui para pensarmos sobre esse gesto de trazer o conhecimento de “determinadas verdades” à tona. Com o autor, vemos que essa estratégia de considerar a voz dos sujeitos já oprimidos durante muitos anos, permitindo que eles falem de si, da representação do seu próprio mundo utilizando dos seus próprios termos, subjaz às mudanças que a nossa sociedade tem presenciado: de que as mulheres, sobretudo as indígenas, não são pobres de experiências (ANZALDÚA, 2005, p. 235), tendo o poder de falar e o respeito de serem ouvidas; e que, por isso, elas produzem conhecimentos, epistemologias outrora renegadas pela ignorância hegemônica e colonialista assentada pela modernidade ocidental.

Portanto, esse conhecimento além de irromper com uma memória discursiva de subordinação, acaba por desfamiliarizar aquele lugar de exclusão ocupado pelo indígena, como uma marca já bem registrada pelas artimanhas da modernidade. Parece-me que esse deslocamento abre uma pequena fenda epistemológica pela qual a mulher indígena entre e a faz ocupar uma função enunciativa outrora assumida somente pelo branco nortecêntrico: a de criar conhecimentos. Da sua fala são apreendidos mecanismos discursivos que, ao serem enunciados, acabam funcionando como estratégias para a constituição de sua própria subjetividade, apoiando, em nosso imaginário, sobre qual o lugar que as indígenas ainda ocupam em nosso espaço discursivo e social: o periférico, o marginalizado, o excluído.

Com Souza (2018, p. 260) podemos pensar que essa discriminação vem há muito tempo sendo mantida pela desigualdade, mas, sobretudo, pela exclusão social. Para sociólogo a desigualdade social está ligada ao fator de integração social, dinamizando a ideia de que quem está “abaixo” no sistema hierárquico de uma sociedade ainda está dentro desse próprio sistema, pois a sua presença é indispensável para uma integração subordinada.

 

As representações que emergem pelo discurso fronteiriço

Levando em consideração a hipótese do nosso trabalho bem como os objetivos, ante as mobilizações teóricas, conseguimos verificar que a determinação dos sentidos nas materialidades da obra “Pela Mulheres Indígenas” (2014), com foco nas representações das mulheres indígenas, esta submersa pelas relações interdiscursivas.

Diante disso, os postulados teóricos conseguiram nos auxiliar no exercício analítico das materialidades dos dois recortes, apontando que o gesto transdisciplinar torna-se uma estratégia teórico-metodológica que pode contribuir para as a apreensão dos enunciados na produção social de sentidos.

Além disso, pelo viés analítico, conseguimos observar que as palavras jamais serão detentoras das verdades e que muito menos tem a pretensão de carregar os sentidos ipisis literis. Muito pelo contrário, a linguagem dos enunciados da obra em foco aponta para a heterogeneidade, para o polissêmico.

No tocante às perguntas de pesquisa e hipótese, o processo analítico apontou:

Há marcas linguísticas que, interdiscursivamente, remetem as mulheres indígenas aos trajetos de inclusão e de exclusão social;

Há marcas linguísticas que fazem referência e sustentam as dicotomias, as diferenças fronteiriças, os aspectos (pós-)coloniais;

Foram detectados nos dois recortes possíveis efeitos de sentidos de marginalização e de estereotipação que emergem em relação à mulher indígena;

E a mulher indígena é representada discursivamente nas materialidades como uma subjetividade fronteriza que está fora das engrenagens da inclusão social.

As dificuldades de aceitação em relação ao gesto transdisciplinar só nos demonstram o quanto essa visão “diferenciada” pode trazer possibilidades de diálogos profícuos a respeito das discursividades em relação às representações identitárias a respeito das mulheres indígenas.

Em razão de conceber as discursividades como um meio pelo qual os sujeitos constituem a sua subjetividade, levamos em consideração que, para compreendermos esses mecanismos discursivos, tivemos que partir da materialidade linguística para apreender o mecanismo discursivo e detectar a representação das mulheres indígenas na esfera da materialidade.

Por fim, desse processo analítico, podemos considerar que, discursivamente, as emergências dos efeitos de sentido denunciam que o corpus selecionado para a análise pode funcionar como um agenciamento de discursividades e consequentemente, de subjetividades no bojo da nossa sociedade, identificando pontos de segregação social que denunciam marcas de gestos de discriminação e de exclusão.

 

 

 

Referências

 

ORLANDI, E. Discurso e leitura. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.

ORLANDI, E. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 3. ed. Campinas: Pontes, 2008.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. 6.ed. Campinas: Pontes, 2012.

POSSENTI, S. Observações sobre interdiscurso. Revista Letras, Curitiba: Editora UFPR, n. 61, especial, p. 253-269, 1988.

POTIGUARA, E. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004.

ROUDINESCO, E. Filósofos na tormenta. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

SOUSA-SANTOS, B. de. Os direitos humanos na zona de contato entre globalizações rivais, Cronos, v. 8, n.1, p. 23-40, 2007.

SOUSA-SANTOS, B. de. Direitos humanos: o desafio da interculturalidade. Revista Direitos Humanos, v.2, p. 10-18, 2008.

SOUSA-SANTOS, B. de. Para além do pensamento abissal. Das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SOUSA-SANTOS, B. de; MENEZES, M, P. (Orgs.). Epistemologias do sul. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2010. p. 23-72.

SOUSA-SANTOS, B. de. O direito dos oprimidos: sociologia crítica do direito, parte 1. São Paulo: Cortez, 2014.

SOUSA-SANTOS, B. de. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

SOUZA, J. Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro : LeYa, 2018.

 

Data de Recebimento: 18/08/2021
Data de Aprovação: 07/03/2022


1  Ver www.mulheres indígenas.org.

2  Em 2017, “Pelas Mulheres Indígenas” integra um projeto que, como um dos resultados, deu origem ao livro elaborado por 16 mulheres indígenas, lideranças de 8 etnias do Nordeste, cf. www.thydewa.org/thydewa.

3  No ano de 2001, como resposta aos problemas sociais, indígenas de várias nações aliaram-se a outros sujeitos de diversas etnias do nordeste brasileiro para que pudessem realizar a construção de uma ONG denominada Thydêwá (esperança da terra), que pudesse dar amparo e proporcionar o desenvolvimento étnico dos indígenas. De acordo com divulgação realizada pela própria organização, foi no ano de 2002, amparados pela Lei Nº 9.790, de 23 de março de 1999, que a ONG Thydêwá pode ser registrada como pessoa jurídica de direito privado, buscando ter sócios efetivos que fossem ao encontro de seus respectivos objetivos: acreditar em um mundo mais justo. Somente em 2014 foi elaborada a obra “Pelas Mulheres Indígenas”, fruto desse projeto social nordestino, especialmente de Alagoas, Bahia e Pernambuco.

4  Esclarecemos que esse exemplo metafórico do mosaico vem para exemplificar uma análise pode se valer de diversos materiais teóricos. Numa comparação com o processo transdisciplinar, a metáfora do mosaico é a que mais se aproxima da visada desconstrutiva.

5  E essas regras dividem-se em quatro direções: formações dos objetos, das posições subjetivas, dos conceitos e das escolhas estratégicas. (Cf. FOUCAULT, 1987, p. 134).

6  Esses dados integram uma pesquisa maior intitulada “Mulher indígena e Lei Maria da Penha: uma análise discursiva transdisciplinar para apreender a constituição da subjetividade fronteiriza” (ALMEIDA, 2020).