Relações à margem: Residualidade e estigmatização urbana na Orla Conde, Rio de Janeiro


resumo resumo

Fernando Espósito Galarce
Julia Meira



Introdução

No imaginário de cada habitante existe uma associação de diversas sensações em relação ao espaço urbano. Algumas destas impressões estão relacionadas com lugares desconhecidos e que nunca visitamos, mas dos quais ouvimos histórias e relatos. Outras vezes correspondem a impressões de lugares conhecidos e que frequentamos diariamente. Cada habitante tem sua própria experiência urbana, a que está conformada pela escolha de trajetos, afinidades, preferências e por aqueles lugares que evitamos. Os lugares evitados também fazem parte da nossa vivência, pois definem nossa relação com a cidade. Este trabalho reflete sobre os lugares que são negligenciados que afetam o imaginário coletivo urbano.

São lugares que sofrem ou sofreram um processo de estigmatização territorial e recebem, cotidianamente, rótulos que os associam à marginalidade, perigo ou insalubridade. São esses trechos “aparentemente esquecidos, onde parece predominar a memória do passado sobre o presente.” (...)” (SOLÀ-MORALES, 2002, p. 127, tradução nossa). Entre os conceitos discutidos por esta pesquisa está o de estigma, abordado aqui principalmente pelos estudos desenvolvidos por Goffman.Para o autor o estigma é uma construção social a partir do encontro entre pessoas “normais e estranhas” (GOFFMAN, 1975) e "pela relação incongruente entre os atributos e os estereótipos.” (SIQUEIRA, CARDOSO, 2011, p. 94).

Tais atores estranhos trazidos por Goffman são aqueles que de alguma maneira desviam de uma conduta considerada certa ou, em palavras do autor, normal. A cidade também pode ser afetada por esses tipos de desvios ou estranhamentos. Por exemploquando percorremos a cidade e nos deparamos com áreas subutilizadas ou abandonadas que abrigam pessoas em situação de rua, condição frequente em lugares cobertos como é o caso dos baixios de viadutos e marquises, entre outros. Esses espaços não possuem essa condição de lugar estigmatizado pela presença destes habitantes da cidade, pelo contrário. Pelas caraterísticas residuais que possuem estes lugares, são ocupados dessa forma por serem espaços invisibilizados e despreciados. Outro caso são os lugares de “perdição urbana”, apontados por Wacquant (2006, p.27) como pontos da “fixação da marginalidade avançada”. No caso do Rio de Janeiro o rótulo da marginalidade é frequentemente associado aos pontos de tráfico de droga, na maioria das vezes nas favelas e periferias. São pontos que funcionam ilegalmente e desviam das normas da sociedade. Apesar de sabermos que o tráfico de drogas vai muito além de tais áreas da cidade, o status do “marginal" é normalmente atribuído somente para os que habitam esses territórios estigmatizados, fortalecendo a generalização e invisibilização de toda uma comunidade plural. Desta forma quando pensamos nos conceitos de residualidade e estigma aplicados sobre o território, podemos dizer que os resíduos e desvios urbanos estão diretamente relacionados com as diferentes camadas socio físicas da cidade e, consequentemente, com o jogo de poder que ocorre por trás da sua gestão. O estigma, portanto, mais do que uma condição, é um processo histórico sofrido por determinados recortes urbanos.

 

O estigma territorial transforma habitantes em criminosos ou em violadores da ordem urbanística, o "crime" em questão - como em infinitos outros casos - é não obedecer ao planejamento, o lócus onde se definem as formas permitidas - ou proibidas - de organizar o espaço. (ROLNIK, 2015, p.174).

 

Os personagens desviantesvioladores da ordem urbanística são aqueles que produzem uma imagem indesejada da cidade, normalmente por falta das condições necessárias para se “adequar às normas”. Podemos usar como exemplo a parcela da população que não consegue adentrar no mercado imobiliário "formal" e são obrigados a encontrarem formas alternativas de garantir suas moradias. Segundo Rolnik (2015, p.186), é a legislação urbana a que demarca a fronteira entre legal e ilegal, construindo barreiras invisíveis que que restringem o acesso das classes de menor renda às zonas nobres. As normas urbanísticas cumprem um papel fundamental na geração de espaços residuais. As sobras dos projetos, os cantos esquecidos, as brechas entre a cidade e seus projetos de infraestrutura, são algumas formas nas que se expressa essa residualidade socioespacial. Rolnik acrescenta que a determinação do que é tratado como legal e ilegal permeiam aspecto social, pois "trata-se também de uma poderosa maquinaria de discriminação étnico-cultural, que define como “proibidas" formas de morar inscritas em certas práticas socioculturais.” (ROLNIK, 2015, p.187).

Isto posto, é possível compreender a cidade como uma sobreposição de complexas camadas que resultaram em um território explicitamente segregado, composto por diversas ilhas. É o que Massey denomina "região com buracos" (MASSEY, 1994, Apud HAESBAERT, 2014, p.104), associando tais trechos residuais à ausência do poder do Estado e à precariedade ou inexistência de mapeamentos. Neste mesmo sentidoWacquant fala de "manchas", quando afirma que "uma mácula de lugar se superpõe, então, aos estigmas já operantes, tradicionalmente ligados à pobreza e à pertença étnica" (WACQUANT, 2006, p.28). Estas zonas da cidade podem ser definidas como regiões desconectadas, separadas por barreiras invisíveis na maioria dos casos, mas que também se manifestam fisicamente. No Rio de Janeiro é o caso dos painéis acústicos na Linha Amarela e Linha Vermelha, que “escondem” as favelas da Maré, Caju, e Cidade de Deus. Os painéis foram instalados em 2010 com a justificativa de proteger as comunidades do barulho dos automóveis. Contudo, é evidente que tal ação da prefeitura teve como propósito ocultar as favelas, principalmente porque estão situadas no caminho que conecta o Aeroporto Internacional Tom Jobim às áreas mais nobres da cidade, na Zona Sul e Barra da Tijuca. Esta ação foi executada poucos anos antes da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas Rio 2016, o que faz mais evidente o objetivo desta intervenção. (Fig. 1)

 

”É uma construção para tornar invisível uma parte da cidade que não é tão maravilhosa. O discurso é de que se trata de revestimento acústico, mas o fato é que o prefeito até agora não investiu nessas áreas. Espero que com a barreira venham os postos de saúde e creches” disse o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). (AGÊNCIA ESTADO, 2010)

 

Figura 1. Barreiras “Acústicas" Linha Vermelha e Amarela.

Fonte: https://midiainformal.wordpress.com/2016/07/22/esconderam-a-favela-com-adesivos-das-olimpiadas/

 

Por outro lado, esse processo de segregação socioespacial também deu origem a um outro tipo de ilha, os "enclaves fortificados" apresentado por Caldeira (1997) em seu texto sobre esse novo modelo de segregação espacial que começou a surgir no final do século XX. O termo faz referência às propriedades privadas que se isolam através de complexos sistemas de controle fomentados por uma cultura do medo do estranho.

 

"São propriedades privadas para uso coletivo; são fisicamente isolados, seja por muros, espaços vazios ou outros recursos arquitetônicos; estão voltados para dentro, e não para a rua; são controlados por guardas armados e sistemas de segurança privada que põem em prática regras de admissão e exclusão.

(CALDEIRA, 1997, p. 159)

Diversas áreas do Rio de Janeiro atual se encontram em meio dessa dicotomia do território .Por um lado estão as ilhas representadas por buracos ou máculas de lugares que remetem aos trechos invisibilizados da cidade. Poroutro, os enclaves fortificados que se utilizam do discurso da marginalidade e da insegurança para justificar o isolamento intencional. Apesar de marcarem duas realidades urbanas completamente distintas, a existência de uma está pautada na da outra. Ambas as fronteiras que delimitam essas zonas são justificadas pela diferença e pelo medo do estranho e do marginal. Todavia no âmbito das relações sociais, os “normais” dependem e se beneficiam de diversos serviços prestados por esses “anormais”, estranhos e estigmatizados. É uma relação histórica de tolerância chamada de "moral permissiva" por Freyre (2003, p.13) e que Agamben define como um "estado de exceção" (2004), que "ao instituir o excepcional como regra, se apresenta como “a forma legal daquilo que não pode ter forma legal” (AGAMBEN, 2004, p.12, Apud VAINER, 2010, p.7). Esta relação está justificada por um "estado de emergência permanente." (VAINER, 2010, p.7). O Rio de Janeiro, por se apropriar em múltiplas situações de tal lógica, instiga Vainer a explorar o conceito de "cidade da exceção" da capital fluminense, situação evidenciada durante a preparação para os megaeventos da Copa Mundial de 2014 e Olimpíadas de 2016. Segundo Vainer (2011, p.11), os megaeventos de porte global conseguem potencializar a cidade da exceção, visto que são capazes de utilizar o poder e as decisões políticas para garantir os interesses de uma parcela da população. “A cidade dos megaeventos é a cidade das decisões ad hoc, das isenções, das autorizações e autoridades especiais”. (VAINER, 2011, p.11).

 

Residualidades entre a Perimetral e a Orla Conde

A Zona Portuária do Rio de Janeiro, uma vez inserida no projeto Rio Cidade Olímpica, responsável por obras em vários pontos do município, sofreu claras alterações que caracterizam a cidade da exceção. Podemos citar a criação da Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio, que necessitou modificar o plano diretor da cidade através do Projeto de Lei Complementar (PLC) nº25/2009 para ser instituída. "O projeto ficou conhecido como a maior parceria público-privada do país” (COLCHETE FILHO; COSTA; DE JESUS, 2019, p.83) e contou com a nomeação de diversos agentes responsáveis pela gerência das transformações na área, como a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (Cdurp) e a Concessionária Porto Novo. Desse modo as decisões se distanciaram de um caráter público e da esfera do debate e as exceções passaram a ser recorrentes e realizadas na esfera legal, próximas ao interesse de seus membros e dos investidores. Desta forma, o plano para revitalização do porto do Rio, nomeado Porto Maravilha, representou uma parte importante das estratégias regulares da globalização neoliberal implantadas na cidade (MARICATO, 2014, p.18) (Fig. 2). A cidade, perante esse fenômeno global, se torna mercadoria e passa a competir mundialmente para receber investimentos parase tornar uma fonte de capital. Os megaeventos sediados na capital fluminense representaram a potencialização dessa dinâmica na qual a cidade atua é tratadacomo uma empresa. (ROLNIK, 2015, p.244).

 

Figura 2. Mapa da Zona Portuária do Rio de Janeiro, parte do projeto Porto Maravilha.

Fonte: Elaboração própria com base no aplicativo Google Maps.

 

Diante de tantas relações urbanas distorcidas e dos processos de transformação ocorridos recentemente na Zona Portuária do Rio de Janeiro,e considerando a degradação e subutilização que por anos caracterizou esta região, é importante acompanhar as alterações e desempenho das intervenções.de Alguns equipamentos tiveram suas funções restabelecidas através de uma importante revitalização, a que não só incluiu a área portuária, mas também uma parte importante da orla da cidade próxima ao centro. Contudo, existem alguns questionamentos à qualidade dos espaços que foram gerados por esses grandes investimentos. Qualidade que não necessariamente está determinada pelas características físicas das intervenções, mas pela forma em que a cidade reage a elas em função das preexistências e história urbana, usos e cultura local. A reportagem “Praça Mauá, a fênix carioca”(novembro de 2015), conta com vários relatos de moradores acerca da realidade que perdurou na região durante a época de degradação nas últimas décadas do século XX até as intervenções mais recentes. “A gente tinha até vergonha de dizer que morava aqui. Além da prostituição, era perigoso e cheio de morador de rua. Eu vinha escondida, minha mãe me proibia. Hoje, dá orgulho. Já passeei até de noite com meus cachorros, nem parece o lugar onde fui criada” conta uma das entrevistadas.

A pergunta que surge ao observar essa relação entre passado e presente da área portuária ea orla do Rio de Janeiro é se estes novos espaços têm conseguido diminuir o caráter marginal e residual que predominou ali por tanto tempo. Será que podemos perceber a presença de "atributos depreciativos" (GOFFMAN, 1975, p.13, Apud SIQUEIRA, CARDOSO, 2011, p.94) que remetem a esse passado?

Para compreender essas relações antes mencionadas no Rio de Janeiro será observado um recorte específico da cidade: A área do Viaduto Perimetral, hoje ausente, e a estigmatização que por anos sofreu esta região, principalmente no trecho da Orla Conde (Fig. 3). O objetivo é observar esse espaço habitado renovado pelas obras aqui enunciadas, porém, questionando se realmente essa marginalidade, estigmatização e residualidade socioespacial ainda continua presente ou tem se transformado junto com a dimensão física do lugar. Em outros termos, se essa presença de uma infraestrutura já ausente, como a Perimetral, de alguma forma determinou as condições atuais de uma nova infraestrutura urbana e as reformas desenvolvidas produto dos megaeventos.

 

Figura 3. Mapa do trecho implodido da Perimetral e da Orla Prefeito Luiz Paulo Conde.

Fonte: Elaboração própria com base no aplicativo Google Maps.

 

No artigo “Cartografias [des]veladas: Situações de residualidade urbana. O Caso do Morro do Castelo” (ESPÓSITO, LINARES, 2019) são discutidas seis dimensões da residualidade urbana. (1) Des-re-território, (2) Atributo depreciativo, (3) Estados de exceção, (4) Região com buracos, (5) (des)encontros e (6) fora interno. Através da utilização das quatro primeiras categorias citadas e com a introdução dos conceitos de Cidade da exceção e "urbanismo do espetáculo" (MARICATO, 2014, p. 17), foi analisada a Zona Portuária do Rio de Janeiro, com enfoque mais detalhado na Orla Prefeito Luiz Paulo Conde, uma das intervenções mais significativas na cidade durante o período que antecedeu os megaeventos. A intervenção também pretendeu criar ali uma nova centralidade afim de mudar a realidade vigente da região, a que por décadas foi estigmatizada e que desde o final do último século sofreu com o abandono do poder público. Por meio de visitas de campo acompanhadas de registros fotográficos e percursos de observação são abordadas as questões levantadas pela pesquisa. É possível perceber resquícios da histórica estigmatização do Porto? O aspecto residual trazido pelo Elevado Perimetral ainda se faz presente através de outros atributos físicos e espaciais? A reforma conseguiu garantir qualidade aos espaços de forma homogênea ou gerou novos resíduos e sobras?

 

A construção da imagem do Porto

A Zona Portuária do Rio, composta pelos bairros do Centro, Gamboa, Saúde e Santo Cristo, durante o período colonial já servia como área se serviços e operações do porto da cidade. O Largo São Francisco da Prainha e o Cais do Valongo eram de grande importância para a comercialização de escravos e mercadorias, o que indica que o estigma sempre esteve presente no cotidiano deste local. Segundo Da Costa (2015, p.22-24), a Região Portuária do Rio de Janeiro se desenvolveu sob um estigma atrelado às imagens do porto que remetiam a insalubridade, como a chegada de escravos, doenças, os depósitos de mercadoria e outras. A área sempre comportou usos periféricos, porém fundamentais para a cidade. Atualmente esta região é conhecida como Pequena África.

A partir de 1903 o Prefeito Pereira Passos iniciou uma série de transformações urbanas de grande escala que mudaram a dinâmica física, social e, principalmente, a imagem do centro da cidade. Foi inaugurado o novo porto do Rio sobre uma grande área de aterro. As propostas de Passos se justificavam através de um discurso imagético e sanitarista que tinha a intenção de criar uma nova imagem do centro do Rio que fosse mundialmente conhecida e associada às cidades europeias. Observa-se como esse padrão de intervenções urbanas que buscava um resultado majoritariamente estético e de reconhecimento mundial, se repete até hoje e é posto em prática novamente na mais recente versão do porto.

A partir de 1910 a região portuária abrigou galpões, armazéns, fábricas e oficinas e participou intensamente das dinâmicas de exportação da época. Em meados do século tal lógica começou a ser substituída pelo sistema de containers e muitas operações foram transferidas para a área do Caju. Desse momento em diante se iniciou um intenso processo de esvaziamento. Essa modernização afetou portos no mundo todo e colocou em pauta os espaços ociosos que antes eram destinados à estocagem. Ao mesmo tempo o Viaduto da Perimetral começou a ser erguido com a intenção de melhorar a circulação entre a Zona Sul e a Zona Norte da cidade do Rio e conectá-las com a Ponte Presidente Costa e Silva. A obra se iniciou em 1957 e só foi concluída em 1978. Esse elemento urbano, que surgiu como solução para problemas viários, é fortemente associado como um dos principais motivos da degradação da região.

Durante a década de oitenta a Zona Portuária do Rio de Janeiro sofreu um abandono devido à baixa atividade do Porto e a forte função de local de passagem. Tal conjuntura se estabeleceu diante da presença de infraestruturas ligadas a transportes, como o Elevado da Perimetral, terminais rodoviários e estacionamentos vinculados aos barracões das Escolas de Samba. (DA COSTA, 2015, p.29).

 

"Apesar de toda sua importância histórica e cultural, a Região Portuária do Rio de Janeiro tornou-se um local residual e a degradação urbana passou a ser a tônica desta área, agravada pelo bloqueio imposto pelo Elevado da Perimetral, que isolou definitivamente a região da orla da Baía, além de trazer poluição visual e sonora e atrair para o seu entorno usos indesejáveis e marginais, beneficiados pela escuridão proporcionada pela barreira viária que servia apenas aos veículos motorizados cujo destino não era a região portuária. "

(DA COSTA, 2015, p.29)

 

No final do Século XX já se levantavam propostas para a recuperação da região aos moldes mundiais de revitalizações de áreas portuárias, como estava acontecendo em Barcelona, Buenos Aires e outras metrópoles. A partir dessa retrospectiva histórica é possível notar que enquanto a preocupação era melhorar a imagem de algumas zonas da cidade do Rio, , uma imagem oposta estava sendo criada e perpetuada para outras, como é o caso da Zona Portuária. Apesar de ter exercido funções cruciais no desenvolvimento da cidade, a região sempre sofreu com sua estigmatização como espaço pobre, insalubre, “negro”, periférico, marginal e residual. Essa estigmatização repercutiu tanto para a população quanto para o poder público, executando intervenções viárias como a Perimetral, mas sem medir seus impactos.. Segundo Wacquant (2006, p.4) é possível observar os efeitos da estigmatização territorial nas próprias políticas públicas. Para o autor, as autoridades se beneficiam quando um local é publicamente associado à marginalidade e à falta de normas. Dessa forma a implementação de intervenções e medidas especiais se torna mais fácil e justificável. Para a implementação de um projeto de cidade com o porte do Porto Maravilha foi preciso colocar a região em um patamar de estigmatização e invisibilidade que necessitou de muitos anos para se construir. A própria linguagem também serve como cúmplice para estigmatizar quando percebemos a utilização de termos como "revitalização", pois se sustenta na ideia de que o local em questão não possuía vida antes da intervenção realizada. No entanto, a utilização dessa linguagem acaba "vulgarizando as populações pobres preexistentes e associando a “vivacidade” de uma localidade à existência de atividades econômicas de elevado status e presença de residências para as camadas populacionais mais abastadas", (NASCIMENTO, 2019).

Sobre a evolução urbana da região, vale destacar a presença de um período pouco relatado no qual é difícil saber de fato o que ocorria. Podemos denominar esse momento como um furo periódico, ideia similar à já apresentada de uma região com buracos ou de uma mácula de lugar. O desleixo e as falhas na sua história evidenciam o processo urbano de invisibilização que ocorreu no território, visto que as ações e os atores que atuavam na região também foram invisibilizados. O recorte temporal ao qual essa quebra se refere é justamente o momento em que começa o esvaziamento dos galpões e a perda das funções tradicionais do porto, principalmente no final do século XX.

 

Resgate da Orla

A Orla Prefeito Luiz Paulo Conde e o Boulevard Olímpico foram inaugurados em 2015 e representaram a retomada do acesso à margem da Baía de Guanabara, acesso tanto físico quanto visual, antes dificultado pelo Elevado da Perimetral (Fig. 4).

A operação de derrubada do Elevado foi determinante para o projeto do Porto. Contudo, há algumas controvérsias e indagações a respeito dela. A enorme infraestrutura foi substituída por um túnel subterrâneo com o objetivo de solucionar os problemas diários gerados pela implosão da Perimetral. Desse modo o automóvel continua como protagonista nas operações urbanas, sendo apenas deslocado e disfarçado e contribuindo mais uma vez na descaracterização de imagem da cidade. Os cidadãos, novamente, não tiveram voz em tais decisões marcantes

 

 

Figura 4. Vista para a Baía da Praça Marechal Âncora.

Fonte: Própria

 

Por outro lado, a tentativa de eliminar a residualidade através de uma intervenção de tanta relevância não garanteu seu sucesso. Podemos citar o exemplo do High Line Park em Nova Iorque, um parque linear público construído sobre uma linha férrea suspensa desativada, que por meio de um projeto coerente propôs a revitalização sem precisar recorrer a medidas mais severas de demolição. Outro exemplo são os Jardins Elevados de Sants, em Barcelona, também conhecida como a Rambla Aérea. Ao contrário do High Line Park, esta rambla elevada não foi criada a partir do reaproveitamento de uma infraestrutura viária abandonada e dos trilhos do trem. Neste caso a intenção foi escondê-los por meio de um parque linear construído numa cobertura elevada entre 4 a 12 metros em relação às ruas do entorno, transformando os jardins em mirantes para a cidade. No caso , da Orla Conde é possível perceber a permanência de resquícios dessa residualidade, porém, espacialmente reconfigurados aos novos ambientes. Durante as olimpíadas de 2016 a Orla foi inaugurada e atraiu bastante movimento. Contudo, tal movimentação e sensação de segurança já não é mais uma realidade da área. (SIMAS; TARCSAY; RODRIGUES, 2019, p. 11).

A fim de elaborar uma nova imagem da Zona Portuária do Rio e esquecer seu passado estigmatizado, foi preciso criar novos símbolos. "Esses símbolos, no caso da requalificação do porto, podem ser observados nos elementos de arte pública e mobiliário urbano inseridos.” (COLCHETE FILHO; COSTA; DE JESUS, 2019, p.84). Contraditoriamente, no caso do Boulevard Olímpico a arte foi basicamente representada pelos grafites, que muitas vezes são interpretados por alguns grupos como um elemento marginalizado e atrelado a estigmas urbanos e sociais. Este artifício foi de grande importância nesse cenário, uma vez que o trecho entre o Museu do Amanhã e o AquaRio é composto de um lado por armazéns revitalizados, porém, privados, e do outro, por grandes muros sem fachadas ativas, nos quais os grafites são usados como estratégia para “decoração” e ocultamento da real arquitetura por trás (Fig. 5).

 

Figura 5. Boulevard Olímpico. Autoria: MiranteFilmes.

Fonte: https://www.dronestagr.am/boulevard-olimpico-rio-de-janeiro-brazil/

 

Outra situação similar que delata a dicotomia da realidade da área no que diz respeito à tentativa de apagamento de certos agentes residuais , é a questão do comércio que, “auxilia o turismo, ajudando a manter a vitalidade do local mesmo fora do contexto dos jogos olímpicos e de outros megaeventos.” (COLCHETE FILHO; COSTA; DE JESUS, 2019, p. 87). A citação se refere tanto ao comércio formal quanto ao informal. Atualmente, ao longo de todo o trecho da orla, os vendedores ambulantes transitam em abundância e cobrem a falta de oferta de produtos como bebidas, alimentos, entre outros. Eles trabalham na informalidade, pois não possuem licença concedida pela prefeitura e representam uma situação de marginalidade e residualidade, mas, ao mesmo tempo, são personagens fundamentais para garantir a movimentação do local. É uma expressão do já mencionado estado de exceção de Agamben (2004), caracterizando as interações entre os "normais" e os “estranhos" (ambulantes, pessoas em situação de rua, e outros) como “(..) uma prática de tolerância e não de aceitação/inclusão do sujeito estigmatizado” (ESPÓSITO, LINARES, 2019, p.19) (Fig. 6 e 7).

 

 

Figura 6 e 7. Ambulantes na Praça Mauá e Praça Marechal Âncora, respectivamente.

Fonte: Própria                    

 

Até aqui observamos duas situações de residualidade socioespacial que são perceptíveis ao longo dos 3,5 km de extensão da nova Orla - grafites e ambulantes.

No que diz respeito à qualidade do projeto arquitetônico e urbano dos espaços reformados na Orla Conde é possível observar alguns efeitos naPraça Marechal Âncora, uma das extremidades do percurso, em destaque no mapa da figura 8.

Figura 8. Localização da Praça Mauá e da Praça Marechal Âncora, ao longo da Orla Prefeito Luiz Paulo Conde.

Fonte: Elaboração própria com base no aplicativo Google Maps.

 

Em contraste com a Praça XV, sua vizinha, a Praça Marechal Âncora é extremamente subutilizada. A praça abriga um clássico estereótipo do espaço residual - uma passagem subterrânea sob a Avenida Alfred Agache (Fig. 9). Um espaço recém transformado, porém, totalmente descuidado e servindo de abrigo para algumas pessoas em situação de rua. Afinal, para onde foram os personagens “estranhos” e invisibilizados que antes percorriam os baixios da Perimetral? Esses habitantes que já existiam antes, durante e após a existência da Perimetral se reconfiguraram, se adaptaram ao novo contexto urbano para outra área coberta, outro baixio, outro teto, um dos poucos agora disponíveis na área para abrigar seu habitar residual.

 

Figura 9. Passagem subterrânea da Praça Marechal Âncora, coberta por água e com algumas pessoas em situação de rua.

Fonte: Própria

 

Após este processo de observação da região portuária atual do Rio de Janeiro, é possível perceber que a área passou por intensas mudanças desde o início da formação da cidade. Recebeu cortes e aterros, permitiu o funcionamento do porto como entrada para milhares de escravos e repleto de armazéns de estocagem, testemunhou a implementação e demolição do Elevado Perimetral e, recentemente, recebeu o projeto do Porto Maravilha. Nesses diferentes marcos temporais também é possível observar a presença e o deslocamento das diversas dinâmicas residuais e das pessoas estigmatizadas que co-habitamnessa realidade de profundas mutações urbanas.

 

Considerações Finais

A partir da compreensão de que o estigma se dá pelo (des)encontro entre “estranhos e normais” e que a percepção da cidade é palco e resultado de múltiplas interações socioespaciais, este trabalho buscou identificar e visibilizar alguns fatores que contribuem para o estigma territorial e criam áreas residuais nas cidades. A questão permeia noções visuais, sociais, políticas e urbanísticas. Ao tratar do Rio de Janeiro, metrópole marcada pela segregação social e territorial, vemos que o planejamento e as reformas urbanas impostas muitas das vezes sustentaram a dicotomia espacial existente. Na última década continuamos a presenciar tais transformações urbanas, baseadas exclusivamente em uma lógica capitalista do urbanismo do espetáculo, no qual os megaeventos sediados no Rio, a Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016, trouxeram o auge do estado de exceção e possibilitaram diversas transformações na cidade. Consequentemente, testemunhamos mudanças que ignoram grande parte da população, principalmente os mais invisibilizados, e gerando áreas descaracterizadas e residuais.

Ao analisarmos o recorte da Orla Prefeito Luiz Paulo Conde, concluímos que ainda restam resquícios de uma residualidade que se procurou eliminar através da implosão da Perimetral e o projeto do Porto Maravilha. Esses resquícios resistem nas relações de exceção, como por exemplo entre um comerciante informal e um cidadão que visita excepcionalmente o circula cotidianamente pela região. O primeiro é tolerado porque oferece um serviço que área ainda não consegue oferecer, apesar da sua informalidade. O segundo é um símbolo da nova condição urbana da área reformada e que o poder público quer fortalecer. Outro exemplo são os aparentes os atributos depreciativos presentes na zona portuária, como é o caso dos grafites e pichações, que embora são expressões gráficas muito diferentes, fazem parte de uma expressão urbana que é interpretada de diferentes formas pelo cidadão comum. No caso das pessoas em situação de rua que circulam e utilizam alguns daqueles espaços como abrigo, estes não podem ser considerados como algo residual o depreciativo. Pelo contrário, elas são uma consequência, vítimas de uma desigualdade socioespacial que deflagra as dimensões que caracterizam a residualidade. Estes cidadãos, ao serem marginalizados e estigmatizados, são obrigados e ocupar aqueles espaços desvalorizados e invisibilizados. Tais traços de residualidade representam um des-re-território, uma vez que, na tentativa de eliminá-los, estes apenas acabam sendo reconfigurados, deslocados e continuam fazendo parte da orla carioca, como historicamente sempre aconteceu.

Referências

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Data de Recebimento: 13/08/2021
Data de Aprovação: 10/05/2022