Introdução
Este texto é, antes de tudo, um gesto de desejo. Desejo de compreender, de me compreender, de inscrever na escrita o movimento de uma inquietação: o espaço como discurso. Essa tentativa nasce de uma necessidade micro histórica de problematizar a noção de espacialidade que se impõe em meu horizonte de inscrição: o científico. Digo necessidade e não mero interesse, pois é no encontro entre o corpo, o tempo e a língua que este trabalho se torna possível.
O espaço, frequentemente tomado como reflexo de uma natureza primeira, como expressividade física de uma realidade dada, encerra uma positividade que o silencia. Tal naturalização o esvazia de sua dimensão linguística: o espaço como enunciação, o espaço como texto, o espaço como desejo. Espaço e/é discurso; eis a fantasia espaço-temporal que orienta esta escrita.
Pensar o espaço discursivamente é pensar sua inscrição no e pelo tempo, é reconhecê-lo como transcurso do discurso (dis-currere). Movimento que corre fora, que produz curso, caminho, rota; movimento que estabelece margens e limites, e que, sob o modo de produção capitalista, determina o próprio fluxo do rio. Espacialidade e temporalidade são, assim, as gramáticas do Capital, coordenadas que produzem a fixação dos lados, interditando a imaginação de uma terceira margem.
Essa reflexão não parte de uma abstração, mas de uma inscrição: minha própria posição de enunciação. A positividade das práticas científicas me assombra e me convoca à coerência do “eu” que escreve. No entanto, esse “eu” é efeito, não origem. Ele emerge do processo discursivo que fabrica o sujeito como unidade imaginária, pessoal, temporal e espacialmente localizada. A pessoalidade é um efeito de linguagem; o sujeito, um ponto de passagem entre o simbólico e o ideológico.
O espaço nos é vital porque o “homem encontra-se na língua” (Benveniste, 1995). Esse “encontrar-se” é também uma forma de estar: o homem está espacializado na linguagem. Tornar-se sujeito é tornar-se localizável – como pessoa (eu/tu), em um tempo (agora) e em um espaço (aqui) – pela negação de um não-espaço, de um não-tempo, de uma não-pessoa. Essa operação é histórica e ideológica. É o próprio funcionamento do Capital.
Por isso, pessoalidade, temporalidade e espacialidade se entrelaçam como o nó que sustenta a constituição do sujeito. Esse nó, inscrito na materialidade da língua, é também o nó do desejo. Desejo que se projeta no tempo, se inscreve no espaço e se realiza na unidade ilusória do indivíduo.
O movimentar dos sentidos e dos sujeitos no urbano faz ver a disputa entre diferentes determinações espaciais que atravessam o corpo da cidade, produzindo esses mesmos sujeitos (Orlandi, 2004). Nessa disputa, de espaços e tempos, emergem sentidos de cidade. A cidade irrompe e convoca seus sujeitos. O espaço como um construto do direcionamento das coordenadas ideológicas. O funcionamento ideológico do tempo e do espaço assedia-nos, pois as formações ideológicas configuram o nó pessoalidade-temporalidade-espacialidade, produzindo a ilusória realidade empírica do sujeito. A distância entre o sujeito e o objeto desejado é uma distância espaço-temporal, que torna possível o desejar contínuo nos entremeios da máquina do Capital e em seu favor.
O trabalho analítico é sempre uma tensão regida pelo desejo, atravessado pelo tempo, situado no espaço desde o confronto do simbólico com o político como condição da interpretação, da leitura – desde os instanciamentos do ideológico. É sobre o compasso da escritura-desejo que vejo o trabalho teórico-analítico nas Ciências. Isso porque penso que o desejo, em nossa formação social capitalista, costura o sujeito (aqui tomado como construto do nó pessoalidade-temporalidade-espacialidade, isto é, como realidade enunciativo-discursiva) à sua ilusória unidade, à sua pretensa consciência. Retalho que é fabricado na entranha da máquina mercantil. Desejo, logo existo. E assim, o desejo é posto como liame da subjetividade capitalista. O sujeito de direito é antes um sujeito que deseja, um sujeito de desejo. E um sujeito que expressaria na língua esse desejo, essa projeção do querer no tempo e no espaço.
Quando, em verdade, é a língua inscrita na história que deseja e assim nos produz. Logo, sujeito ao desejo. Desejo e ideologia. Formações ideológicas e formações desejantes. Esse é, talvez, o desdobramento social do imaginário no simbólico, na linguagem. O confronto do imaginário e do simbólico é atravessado pela relação opaca entre desejo e ideologia, sendo que o desejo é, ele em si, um construto do embate das formações ideológicas. O desejo movimenta para que o imaginário continue durando na língua.
Talvez fosse preciso tomar o nosso trabalho como objeto discursivo. Isso significa tomar as análises como arquivo, montar um arquivo das análises, desfazendo, quem sabe, a suposição de que o dispositivo teórico é por si só uma garantia de desnudamento dos jogos ideológicos. O que, talvez, mostre-nos que estamos todos a puxar o próprio cabelo como uma realização do desejo contínuo, enquanto apontamos o outro como Barão de Münchausen e esquecemos de olhar para o dedo que aponta. A alegoria desgastou-se…
Penso que a prática analista não deveria deixar de enquadrar o desejo como formulação, em sua relação com a língua, com a história, com a ideologia e com o social. Para que essa suposição cristalizada seja problematizada e questionada, creio que poderíamos afirmar que toda investigação em Ciências Humanas, visto que o desejo pode ser tomado como a trama traçada na produção do sujeito, é uma investigação atravessada pelo desejo e sobre o desejo, de modo a considerar que “[...] el lugar que nos permite investigar el deseo, colectiva y subjetivamente, es nuestro propio deseo [...] aún más, si pretendo investigar el deseo, es imposible que lo haga sin mi propia subjetividad y deseo [...] hablo del deseo del [analista]” (Parrini, 2018, p. 24-5). Por isso, compreendo a Análise Materialista de Discurso como uma forma de etnografia do desejo. E se aqui estamos contra-identificados ao sistema mercantil, produzindo ciência proletária, desejando contra seu desejo, devemos supor que a falha, o equívoco da interpelação ideológica, produz configurações outras de desejo.
Desejo do analista que em nada postula uma intencionalidade ou consciência, mas sim que põe em jogo o desejo que é produzido no indivíduo, que o fabrica como uma posição do dizer (sujeito de desejo = corpo falante); desejo que interpela o sujeito em posições de agenciamentos, fabricando o elo com a unidade perdida, com a consciência ausente. É nesse sentido que considero o trabalho analítico como (uma) escritura do desejo. Observar não a escrita do sujeito, mas a escritura do desejo significa compreender a autoria como função do sujeito e como gesto do desejo, autoria como desejo de desejo que atravessa o sujeito de/o desejo. Pois, se toda relação social é uma relação discursiva, isto é, de significância, e toda relação social é uma relação desejante, toda relação de desejo é também uma relação de significância. E devemos considerar que o “homem” só existe na língua como sujeito de/o desejo. Não há sujeito que não seja constituído por relações de desejo, que não seja chamado a ocupar posições de/o desejo.
Problematizar o desejo não é reconhecer uma autonomia absoluta, mas questionar as particularidades da relação de desejo tomada como uma inscrição da língua no social. Não limitando-nos a perceber o desejo em termos de uma política, mas sim em sua tensão com o simbólico. Dessa forma, considero que o desejo é tanto um efeito do simbólico, como um dínamo de instanciamento de discursividades, já que o desejo não é anterior ao discurso, e sim encontra-se articulado à sua constituição, formulação e circulação. O discurso instancia e rege o desejo que instancia e rege a proliferação discursiva num processo discursivo-desejante: “El deseo es una fuerza creadora y serán los dispositivos de deseo [...] los que distribuirán las formaciones de poder. De este modo, […] el poder constituye una afección del deseo […]” (Parrini, 2018, p. 36)3.
Desejo, portanto, não como princípio de intencionalidade, mas como força de inscrição, aquilo que nos move a dizer, a escrever, a olhar. E foi justamente esse movimento de desejo que me levou às vallas. O desejo que me atravessa como analista é o mesmo que me faz deter o olhar sobre o ferro frio das barricadas, sobre a cidade murada, sobre o corpo tensionado entre o Estado e o feminino.
Esse desejo de compreender como o urbano se escreve e se fecha, como o medo e a proteção se confundem na materialidade do espaço, fez-me voltar o olhar às valas, barricadas metálicas instaladas pelo Estado e por instituições privadas antes das manifestações feministas na Ciudad de México. Interessa-me compreender como essas materialidades discursivas (cercas, inscrições, pichações, enunciados) significam o corpo do Estado, o corpo das mulheres e o corpo da cidade, produzindo uma partilha do sensível urbano.
O desenho teórico ancora-se na Análise Materialista do Discurso (Pêcheux; Orlandi), articulada a leituras sobre espaço, desejo e ideologia. Considera-se que os sentidos se produzem no entrecruzamento das formações ideológicas, das condições de produção e da historicidade da língua, o que permite compreender o espaço como forma de discursividade e o discurso como forma de espacialização ideológica.
Metodologicamente, proponho uma análise discursivo-desejante, tomando como corpus fragmentos verbais e imagéticos sobre as vallas. O gesto analítico busca compreender o modo como essas práticas instauram e sustentam sentidos de cidade, cidadania e feminismo, a partir da materialidade histórica e simbólica que organiza a relação entre linguagem, desejo e poder na formação social mexicana.
É, portanto, na tensão entre o simbólico e o político, ou, talvez, entre o desejo e a ideologia, que se estrutura o caminho deste trabalho. O fio que o costura é o mesmo que move a análise. A escrita como efeito e inscrição do desejo.
2. O processo discursivo-desejante
Se, até aqui, procurei situar o movimento teórico e afetivo que sustenta a análise, passo agora à materialidade discursiva que o torna possível. O processo discursivo-desejante a que me refiro não é uma categoria abstrata, mas um modo de funcionamento do discurso que se mostra nos gestos, nas palavras, nas imagens e nas práticas cotidianas de inscrição do poder. É nesse plano que observo as valas, seus enunciados, suas superfícies e seus ecos, como parte de uma política de afetação do espaço e do corpo urbano.
Podemos tomar, como ponto de partida para explicitar esse processo, a seguinte sequência discursiva:
APOYO qué actuen los POLICÍAS están en todo su derecho de ejercer lo necesario para que no sigan violentando.
O enunciado foi extraído de uma publicação no Facebook a propósito do debate público sobre as marchas feministas em comemoração (memorar com) ao Dia Internacional das Mulheres no México, mais especificamente no Centro da CDMX, em 2023. O discurso midiático pautou o referido debate na suposta e naturalizada ilegitimidade das ações feministas ditas radicais, qualificando-as de “atos de vandalismo”, “violência”, “destruição”, “caos”. Ilegitimidade que se constrói nas e pelas práticas discursivas banhadas na imagem de civilização e não apenas nas e pelas práticas discursivas socialmente lidas como extremistas de direita, tal qual somos levados a supor em razão da antecipação de sentidos e da cristalização da significância que o regime discursivo-enunciativo democrático burguês põe em funcionamento.
Na sequência discursiva em questão, é possível afirmar que há a produção de um efeito de solidariedade do locutor com a ação repressiva dos policiais, que é qualificada como exercício necessário de direito. Chama atenção a transferência de poder-dever (exercício do poder da polícia como manifestação do poder-dever do Estado, isto é, Poder de polícia – na acepção consagrada na e pela ideologia republicana) para exercício de direito. Movimentação metafórica que mostra, ou talvez apenas indicie, uma contradição do modo de produção capitalista. Isto porque, enquanto lido como dever, o monopólio do exercício da violência pelo Estado retira sua fundamentação onto-teleológica do sentido moderno burguês de cidadania. Seria em nome da promoção da igualdade, da efetivação da cidadania e da maximização do bem-comum que a violência deve ser exercida pelo Leviatã. Um dever-obrigação, um encargo assumido pelo ente estatal em favor da continuidade do social. Por isso, o poder de polícia – conceito-mestre do direito administrativo que se afiança na noção fantasiosa (Warat, 1992) de supremacia do interesse público4 – fundamenta o exercício do poder da polícia (Binenbojm, 2016), isto é, fundamenta o monopólio “legítimo” da força, da violência. Tendo, como efeito, a naturalização da exploração burguesa, uma vez que o Estado, essa forma-política vinculada à forma-mercadoria e necessária à reprodução da subjetividade do capitalismo, é produzido como o terceiro imparcial harmonizador das relações sociais e garantidor das condições de igualdade na troca mercantil:
Se o aparato estatal – valendo-se do monopólio da violência legítima, da força militar que lhe é efetiva e mesmo da sua eventual força econômica – apresenta-se socialmente como um poder maior que aquele dos indivíduos e classes, independente deles, a forma política do capitalismo se destaca como autônoma em relação aos próprios indivíduos, grupos e classes e seus interesses porque a única possibilidade para a reprodução capitalista das relações sociais destes é afastando-se de seu controle imediato o poder político. (Mascaro, 2015, p. 124).
Ou seja, o monopólio da violência que é lido como “[...] a condição de uma conquista civilizatória, não representa nada mais que uma forma histórica específica de relações sociais de exploração e de opressão.” (Hirsch, 2010, p. 29). O enunciado em questão provoca um movimento que retira, aparentemente, o fundamento onto-teleológico do monopólio da violência da esfera explícita da obrigação em favor da cidadania. Do dever supostamente em favor do bem coletivo, em favor do cidadão, ao direito em favor do corpo estatal, corpo que se transfigura, por força da história e da ideologia, em corpo a serviço da burguesia. Esse movimento possui dois efeitos. Primeiro, pode, por força da contradição que não pode ser totalmente amputada e controlada, lançar centelhas na produção capitalista da igualdade jurídica, fazendo ver que a igualdade não é um atributo natural protegido pelo Estado burguês, mas sim um poderoso artifício que operacionaliza a circulação de mercadorias. Ou seja, o monopólio da violência não é um dever em favor da cidadania, mas realmente um direito, e como tal exercido contra a classe proletária, pois estruturado na forma-sujeito moderna (Pachukanis, 1977) intrinsicamente atrelada à manutenção do modo de produção capitalista. A historicidade do direito é a forma-jurídica vinculada a uma formação social historicamente determinada: formação social capitalista (Pachukanis, 1977). Forma-jurídica que se vincula geneticamente à forma-mercadoria:
[...] na sociedade capitalista, o poder político não aparece imediatamente identificado com uma classe, mas como um poder despersonalizado, como um poder público, porque ‘ao seu lado e independentemente dele’ surge a esfera da circulação de mercadorias. A relação de troca de mercadorias, afinal, não admite em seu bojo qualquer violência direta – a realização do valor consubstanciado em cada mercadoria depende da relação de equivalência entre os portadores de mercadorias, portanto depende da manutenção da forma jurídica desta relação. Na medida em que a circulação de mercadorias se amplia, ou seja, na medida em que as relações jurídicas se ampliam, a dominação direta perde terreno. [...] O Estado, portanto, pode pôr o ordenamento jurídico apenas quando a forma jurídica mesma já está plenamente desenvolvida na sociedade civil. (Kashiura Júnior; Naves, 2011, p.11).
Segundo esse efeito metafórico (dever > direito), transferência de sentidos, inscreve, no social, a legitimidade da repressão estatal que sequer consegue ser lida como repressão. O signo “direito” reveste a “repressão” no manto não apenas da legitimidade, mas também da necessidade. Ou seja, é um direito do corpo estatal reprimir* (signo silenciado) a todo custo, qualquer “distúrbio” à ordem social estabelecida, garantindo, assim, a urbanidade e a cidadania; efeitos de sentidos produzidos de modo a manter e cristalizar a ideologia dominante.
Na sequência, o significante “apoyo”, mais do que índice do referido efeito de solidariedade, funciona a produzir o sentido de autorização (legitimidade/necessidade): “eu, cidadão, legítimo detentor do poder, autorizo o uso da violência pelo Estado”. Ato de fala que funciona, por sua encenação e performatividade, como atualização de uma norma contratual hipotética e dedutiva (corpo presente em sua ausência). É o fundamento místico da autoridade, em sua necessária repetição eterna. Dizer que coloca em cena o corpo ausente do hipotético e imaginário contrato primeiro, personificando-o e tornando-o presença. A cidadania é, então, encenada no e pelo discurso do Urbano. A cidade, tomada como espaço simbólico significante do Capital, convola-se em palco no qual o discurso da cidadania e o discurso republicano fazem encenações, isto é, “Se a cidade significa, se um conjunto de escanções do espaço urbano é interpretado como sendo ‘a cidade’ ou ‘o lugar (de) X na cidade’, é porque as representações desses espaços fazem sentido para o sujeito, elas ressoam em um concerto de significações e significantes presentes como memória discursiva.” (Zoppi-Fontana, 2003, p. 246).
Destaco, na referida sequência discursiva, a elipse do pronome pessoal yo. O termo pronominal elipsado parece funcionar como efeito de coletivização. A ausência do índice explícito de personalidade (pronome pessoal eu) poria em jogo uma impessoalidade débil que reforçaria, como efeito de sentido, a implicitação de uma fala coletiva. Uma ausência marcada que põe em funcionamento uma presença não dita, um “yo” que ao não se marcar, ou melhor, que ao se marcar apenas pela forma verbal, pluraliza-se, funcionando como “nosotros”. Nosotros apoyamos… ou seja, ao apagar a marca pronominal explícita de sua inequívoca enunciação, o locutor joga com a baixa densidade da desinência verbal para dar conta da pessoalização do dito, o que acaba por possibilitar a pluralização do dizer. O “eu” não dito, apenas marcado pela forma morfossintática do verbo, produz um vazio enunciativo que, embora marcado na singularidade, performa uma pluralidade em potencial.
A enunciação explícita da forma pronominal, caso tivesse sido concretizada, talvez dificultasse o esvaziamento dessa posição enunciativa, já que o “eu” carrega uma força sonora de determinação empírica. O “eu”, quando explícito formalmente, quando pronunciado, atrela a enunciação à realidade empírica, a um sujeito empiricamente determinado. Sua memória acústica obriga a empirização do enunciado. Quando ocultado, o que temos é a fabricação de um vazio de subjetividade, orientado a produzir identificações, convocando seus enunciadores. Então, como efeito dessa elipse, há a produção de uma sutil ambiguidade que faz o “eu” ocultado funcionar como um “nós”, uma representação de uma pluralidade de “eus” que se colocariam na possibilidade da responsabilização e da reivindicação enunciativa.
É no espaço urbano que acontece a manifestação feminista. Essas formulações integram o discurso urbano, especificamente, os dizeres urbanísticos, significando os sentidos de cidade e seus sujeitos. Essa enunciação é, portanto, instanciada e convocada desde as malhas da cidade (discurso), de uma dimensão espacial regida pela complexidade da totalidade social, isto é, uma dimensão material orientada pelas coordenadas ideológicas, uma realidade espacial que é política e econômica.
Essa sequência discursiva liga-se a outra, por força do interdiscurso, que foi exaustivamente reproduzida nos meios de comunicação, nas redes sociais e nas ruas da CDMX entre os dias que antecederam e que sucederam a marcha do dia 8 de março de 2022. Durante aquela semana, estive nas ruas buscando ouvir os discursos sobre a marcha, como também estive atento ao funcionamento das redes sociais (circulação de hashtag e publicações sobre o movimento do dia 8). Uma formulação específica chamou muito minha atenção, uma vez que sua circulação estava inscrita na repetição.
Sempre que se pautava a repressão policial ou o grande número de elementos policiais atuando durante a marcha, a formulação “es por la ciudadanía…” comparecia nos dizeres de repórteres, nos comentários em Facebook ou no Twitter, ou ainda por meio de interlocutores com os quais dialoguei durante aqueles dias. Pergunto-me: que sentido de cidadania se inscreve nessa formulação? De qual formação discursiva essa formulação retira sua significância? Qual formação ideológica direciona e governa esse dizer? Como a história produz essa relação entre cidadania e violência? Que posição enunciativa é convocada como superfície de inscrição dessa materialidade sonora? Qual sentido de cidade é aí posto em jogo e como esse sentido silencia e governa sentidos outros?
Para que essa formulação fosse inscrita no regime de legibilidade e de inteligibilidade social, o aparato repressivo do Estado produziu, ou melhor, impôs, ao longo da história republicana ocidental, a legitimidade e a necessidade social da violência, como resposta a um suposto clamor da sociedade. Isso porque a violência não poderia ser vista como um privilégio da classe dirigente, mas como uma obrigação penosa em favor da manutenção da ordem, contra o caos. Ou seja, um dever, uma obrigação.
A construção da legitimidade e da necessidade do monopólio da violência do Estado afeta de forma constitutiva os processos de produção da subjetividade, sustentados pelos procedimentos ideológicos de fabricação de uma identidade aliançada no construto nação. Essa identidade nacional sustenta-se na homogeneização abstrata dos sujeitos em torno do apagamento da luta de classe e a neutralização e harmonização das relações produtivas. Para que isso seja possível, o Estado é fabricado como conteúdo suprasocietal, isto é, como terceiro desinteressado, por meio da construção de sua imparcialidade, ocultando seu funcionamento classista, ocultando que a violência estatal está a serviço da manutenção não apenas da classe burguesa dirigente, mas sim da estrutura capitalista que foraclui o antagonismo real e cria as condições para a reprodução da sociabilidade do capitalismo. Isso leva-nos a compreender que
Não há cidadania em abstrato, sobretudo se pensarmos as atuais formas de relação do Estado (ou a sua falta de relação) com os sujeitos históricos-sociais. O que há são sítios, lugares de definição, com sua materialidade, em que se configuram processos de manifestação concreta de sentidos de cidadania que não podem ser pensados fora das condições materiais de existência desses indivíduos (sujeitos individuados) nas suas relações com a sociedade. (Orlandi, 2010, p. 14).
O uso da violência responderia, assim, a um hipotético pedido de socorro do cidadão que teria no outro seu eterno lobo e nunca seu semelhante. Historicamente, embora o uso da violência estatal seja justificado em nome da proteção do indivíduo, a prática da violência acontece em proteção da propriedade. E aí temos uma derivação interessante: a cidadania desvincula-se do indivíduo e vincula-se ao corpo arquitetônico, monumental, ao patrimônio. Dessa forma, em nome da cidadania, contraditoriamente, justifica-se a violação do cidadão que é levado a defender sua própria dominação. Defesa que se pauta na produção do desejo de segurança, de proteção.
Produção discursiva que direciona, instancia e ao mesmo tempo responde ao processo de produção do desejo. Esse discurso rege e instancia o desejo de cidadania. Isto é, desejar não se sentir ameaçado, desejar sentir-se protegido. Desejo que passa pela preservação e conservação de edifícios e monumentos: a cidadania como expressão, não da condição de cidadão – nascer na República, mas como expressão da defesa da propriedade. O desejo de cidadania, então, rege e instancia a proliferação discursiva sobre a cidade, sobre a segurança, sobre a violência, sobre o vandalismo. Proliferação discursiva que é atravessada pelo discurso da modernidade, pelo desejo da urbanização, pelo discurso da civilidade, pelo desejo da civilização etc.
É pela narrativa de um sonho (uma das formas de enunciação do desejo) que recordo uma conversa que tive com um amigo assim que cheguei à CDMX. No sonho, eu estava na estação de metrô Cuatro Caminos, da linha azul. Apressado, eu tentava chegar à zona na qual ficam estacionados os camiones que percorrem diversas cidades e pueblos do Estado do México, levando milhares de trabalhadores e trabalhadoras exaustos para descansarem por um curto período antes da jornada de trabalho recomeçar, nessa eterna rotina que significa o social e domina o sentido de vida. Quando aí eu chegava, encontrava meu amigo Saulo. O transporte estava muito cheio e isso incomodava Saulo. Ele aparentava muito cansaço. Logo começamos a conversar, algo que, quando despertei, já não podia recordar, apenas lembro que eu o acusava, no sonho, de ser um conservador.
Ao despertar, lembrei que assim que cheguei na CDMX, Saulo me questionou sobre minha pesquisa. Com muita dificuldade em explicá-la em espanhol, eu tentava dizer a ele que minha investigação se configurava como uma produção de um arquivo sobre a circulação do que, então, eu chamava de formulações bolsonaristas na CDMX. Tentava contextualizar que amplamente trabalhava com a “ideologia de gênero”. Saulo, licenciado em ciências da computação, me perguntava de forma enfática onde estavam minhas hipóteses, minha metodologia, meu delineamento cronológico, espacial... Não aceitava a possibilidade de uma pesquisa que não afirmasse, com muita precisão e objetividade, tais elementos. No fim, Saulo apenas compreendia que eu faria uma espécie de estudo comparativo entre Brasil e México sobre os discursos neoconservadores sobre sexualidade e gênero; o que para ele era impensável sem um trabalho de entrevistas. Embora eu buscasse desfazer esse efeito, acredito que por muito tempo eu também caía nessa armadilha.
Nessa tentativa de explicar o meu objeto de análise, acabamos conversando sobre o feminismo no México. Ao perguntá-lo sobre a opinião pública em relação às feministas, fui surpreendido por uma identificação, assim eu lia, do meu amigo com o que eu mais rechaço: o discurso conservador. Saulo me alertava que no México as mulheres queriam em demasia, como exemplo criticava o vagão exclusivo destinado às mulheres no metrô e em algumas modalidades de transporte urbano na megametrópole mexicana. Também criticava a ocupação de cargos importantes por mulheres que, segundo ele, só estavam ali pelo “simples fato de serem mulheres”. E me alertava sobre a violência das manifestações das mulheres, em especial das marchas do 8 de março, nas quais supostamente vandalizavam toda a cidade, agredindo qualquer homem que meramente estivesse nas ruas. Aquela conversa me deixou com nojo, raiva e muito incomodado. Como resultado imediato, apenas colei o significante conservador ao seu nome próprio.
A conversa com Saulo sobre a ação das mulheres nos protestos, acima contextualizada, me fez recordar outra de minhas vivências na megametrópole mexicana que considero orientadora do desejo que condicionou a escritura deste trabalho. Talvez este evento que narrarei tenha sido o mais importante para a construção do desejo que possibilitou a realização desta escrita. Certo dia, conheci uma mulher trans no aplicativo Grindr que me convidou para fazer um passeio pela Avenida Reforma, considerado o coração empresarial da CDMX.
Enquanto me dirigia ao ponto de encontro, ela me enviou uma mensagem que antecipava a tensão e a vigilância presentes no espaço urbano. Algo como: “Cuidado, hay una marcha de femilocas cerca de Revolución, ya voy llegando, si pasa algo corre”. Mais do que um aviso de prudência, o enunciado já materializava a significação das feministas como ameaçadoras, revelando o desejo de proteção e de segurança que atravessa a circulação urbana, um desejo inscrito nas práticas discursivas do Estado, da pátria e da ordem patriarcal, e encarnado no corpo de quem alerta. Um desejo de segurança que atravessa a circulação urbana e que se encontra entrelaçado às lógicas do capital, que organiza a partilha do urbano e regula a experiência sensível da cidade.
Quando ela chegou, reforçou que precisávamos nos retirar daquela zona, pois não era seguro. Minha insistência em permanecer e observar a manifestação evidenciava outro registro do desejo. O desejo de compreensão do fenômeno urbano. Ao qual se contrapunha o desejo de segurança do outro, moldado pelas normas sociais, pelo medo historicamente construído e pelos regimes discursivos que naturalizam certas hierarquias de perigo na cidade.
O lexema “femiloca”, com que ela designou as manifestantes, funciona como uma operação de significação carregada ideologicamente. Condensa medo, censura e desqualificação moral em um rótulo, transformando o coletivo feminista em um agente de ameaça. Ao mesmo tempo, o sintagma aponta para o efeito de afecção do discurso sobre o desejo (feministas = fêmeas loucas). Produz sentimentos de insegurança, vigilância e recuo, vinculando o corpo do observador à necessidade de proteção. Assim, o alerta, o rótulo e a retirada simultaneamente materializam e significam a tensão entre desejo de cidade, desejo de cidadania e desejo de segurança, mostrando como a marcha feminista se inscreve no espaço como um catalisador de sentidos conflitantes e como a experiência urbana é atravessada pela produção capitalista da proteção, da ameaça e da percepção de risco.
Foi então que, caminhando um pouco na direção da zona onde está localizada a bolsa de valores mexicana, deparo-me com prédios murados com enormes placas metálicas, em sua maioria na cor azul. Essa rua tem muitos estabelecimentos comerciais e financeiros, muitos bancos. Quase todos estavam cercados por essas placas. Por mais que essa estrutura tenha despertado minha atenção, fui tomado pelo medo e logo me convenci de que eu estava realmente sendo insensato, que o melhor era sair daquela zona, inclusive considerando minha situação de estrangeiro sudamericano e considerando a política migratória do Estado mexicano. Pensei: se há essa “estrutura de proteção”, é porque as coisas devem ficar intensas, melhor me afastar para evitar problemas com a polícia. Fomos caminhando na direção contrária da manifestação, ou assim pensávamos. Não demorou muito e fomos então surpreendidos pela manifestação. Não era um protesto feminista. As colunas eram de organizações anarquistas. Presenciamos algumas pixações, algumas vidraças sendo rompidas e logo a manifestação foi desfeita pela atuação da polícia. Fiquei com aquelas estruturas metálicas enormes em minha cabeça. Fiz algumas perguntas para minha acompanhante, ela, sem muita disposição na conversa, apenas mudou de assunto. Cheguei em casa e já não me recordava daquelas placas.
Pouco tempo depois, em uma ligação com uma amiga brasileira, sem esperar, comecei a falar sobre essas estruturas e como aquilo tinha chamado minha atenção, me espantado, talvez. Minha amiga não entendeu muito bem o porquê eu insistia em falar sobre placas de metais com quase três metros de altura, na cor azul, que rodeavam monumentos e bancos na CDMX. O estranhamento de minha amiga me fez refletir sobre meu estranhamento. Lembrei de um texto que havia lido muito antes de chegar ao México. Era um artigo do meu coorientador, Parrini (2021), que analisava a escrita de mulheres sobre essas placas: a escrita sobre o corpo do Estado, em sua formulação poético-teórica. Reli o texto. Descobri que as placas são chamadas de vallas. De início, não era a escrita sobre as vallas que me parecia interessante, mas a colocação dessas placas.
Assim, fui tomado pelo desejo de saber tudo sobre as vallas. Queria saber quando colocaram as primeiras, queria saber quem detinha o poder de ilhar a cidade, de colocar aquelas placas, queria saber como os movimentos sociais problematizavam isso, se havia um debate público sobre as vallas, se os meios de comunicação pautavam essa ação de murar a cidade. Por semanas, minhas conversas cotidianas eram quase que exclusivamente sobre as vallas. Ao realizar buscas na ferramenta Notícias do Google com os descritores “vallas”, “gobierno”, “protección” e “monumentos”, encontrei algumas notícias que me levaram ao perfil da Glorieta de las mujeres no Instagram “Antimonumenta_VivasNosQueremos”. Para meu deleite, havia um destaque de stories chamado Vallas2021. Assim cheguei à querela sobre a toma da Glorieta de Colón por grupos feministas que a renomearam como Glorieta de las mujeres que luchan.
Num instante, percebi que essas vallas não eram apenas barreiras físicas, mas objetos carregados de desejo e significação, inscritos na malha do urbano e na produção de sentido: produzindo sujeitos, regulando a circulação e materializando a tensão entre proteção e ameaça. Elas constituíam-se, assim, como um dos objetos centrais de minha investigação, um objeto que fabricava o sujeito da sua própria análise e da escrita que sobre ele se realizaria.
A partir desse reconhecimento, passo à construção das séries e à descrição das regras de funcionamento deste arquivo, iniciando pela problematização de como as vallas, pensadas como textos, produzem sentidos, sujeitos, desejos e participam da “partilha” do sensível da cidade.
3. Gestos de desejos
As vallas, estruturas metálicas de aproximadamente quatro metros de altura e cerca de cinco centímetros de espessura, constituem-se como objetos carregados de desejo e significação. Sua instalação antecede manifestações e protestos, especialmente feministas, mas também de colunas anarquistas e marxistas não reformistas, e envolve tanto o Poder Público (normalmente a mando da Jefa de Gobierno da CDMX ou do presidente mexicano) quanto grandes empresas privadas, sob a justificativa de proteção de edifícios, monumentos, instituições governamentais e estabelecimentos comerciais. Estabelecimentos menores utilizam barreiras mais simples, geralmente folhas de madeira, direcionadas sobretudo à proteção de vidraçarias. O gesto de erguer essas vallas demanda logística, transporte e mão de obra, indicando um investimento financeiro considerável.
Ao reconhecê-las como objetos carregados de desejo e significado, tornam-se também o núcleo de minha investigação. Elas fabricam o sujeito da análise, orientam a escritura e articulam as tensões entre proteção, ameaça e visibilidade urbana. É a partir dessa perspectiva que passarei à construção das séries e à descrição das regras de funcionamento deste arquivo, problematizando como essas barreiras, lidas como textos, produzem sentidos, sujeitos, desejos e participam da configuração da “partilha” do sensível na cidade.
Interessante que a instalação dessas placas metálicas tem um funcionamento polivalente. Além do seu funcionamento de alerta sobre um eventual perigo, também funciona como divulgação de que haverá um protesto nas próximas horas ou no próximo dia. Algumas vezes foi somente assim que tomei conhecimento de que existia uma manifestação convocada para acontecer na CDMX. Mas não qualquer manifestação, como já mencionei, a vallas configuram-se como um índice de periculosidade, na leitura do discurso estatal, quase sempre associado aos movimentos feministas, visto que elas são mais utilizadas quando da manifestação de mulheres. Ou seja, a presença das vallas produz sentido de alerta e de advertência, mas também de publicização daqueles atos de protesto sobre os quais buscam nos alertar.
Embora as vallas não sejam um discurso exclusivo da CDMX, visto que há registro da sua colocação em outras cidades mexicanas, elas são mais características da capital. E, pelo que parece, ali surgiram. Não encontrei no discurso da urbanização mexicana informações sobre quando foram colocadas as primeiras vallas sob o discurso da “proteção da cidadania”. Realizei algumas entrevistas informais com sujeitos acadêmicos das áreas de urbanismo, arquitetura e geografia urbana e com sujeitos do meu cotidiano, nas quais perguntei-lhes quando as vallas surgiram, visto que me chamou atenção que havia certa naturalização daquelas estruturas, que “desarmonizam” a estética turística de CDMX. Essa naturalização me levou a supor que aquelas enormes placas de metal gozavam de algum tipo de tradição ou cotidianidade, já que, supostamente, estariam incorporadas ao campo de visualidade urbano, integrando a paisagem capitalina.
Hegemonicamente, recebi como resposta que aquelas placas foram instaladas após a marcha feminista de 2020, quando um grupo de mulheres teria lançado um coquetel molotov no Palácio Nacional, provocando um incêndio em uma de suas portas. Ou seja, embora naturalizadas, as vallas constituiriam um discurso recente. Esse evento teria motivado a decisão do presidente de centro-esquerda Andrés Manuel López Obrador (AMLO) de instalar as barreiras nas imediações do Palácio Nacional, sede do Executivo mexicano e, segundo Parrini (2021), personificação simbólica do corpo do Estado. Nas marchas de 2021, 2022 e 2023, as vallas já decoravam o Palácio Nacional.
Todavia, o uso das vallas não se inicia com esse acontecimento. Antes de 2020, muitos edifícios e monumentos já recebiam tais estruturas durante manifestações de grupos considerados mais radicais. O Palácio Nacional, porém, era ilhado por vallas humanas: um contingente policial formava barreiras para impedir que manifestantes se aproximassem da edificação.
As feministas podiam ser significadas como ameaça ao patrimônio arquitetônico e cultural, aos espaços monumentais que estruturam sentidos de cidadania e consolidam a identidade nacional, como o Palácio de Bellas Artes. Essa ameaça, no entanto, deveria se dobrar diante da grandiosidade do corpo do Estado, demonstrando que não havia força capaz de subjugar a nação mexicana. Diante do Palácio Nacional, do índice materializado do corpo estatal, as manifestantes eram subjugadas. Aos pés do corpo do Estado encena-se a luta, uma guerra simbólica: o inimigo que ameaça a nação é derrotado. A vida social continua. A sociedade encontra seu guardião. A ameaça está, por ora, contida.
Contudo, a fraqueza do Estado também se torna elemento explorado discursivamente. Em 2020, quando as feministas incendiaram partes do Palácio de Governo, a vulnerabilidade imaginária do corpo estatal foi produzida como instrumento de reforço e perpetuação da autoridade estatal. Essa exposição gera, como efeito discursivo, a convocação dos sujeitos à defesa ativa da sociedade e do Estado, seduzindo-os a se posicionarem numa guerra imaginária que escamoteia a superexploração capitalista. Até aquele momento, a ausência de vallas metálicas ao redor do Palácio produzia um efeito de fortaleza performática: a corporeidade do Estado se apresentava inabalável. A instalação posterior das barreiras não é apenas um gesto físico de segurança; simboliza o reconhecimento de uma vulnerabilidade imaginária e a necessidade de protegê-la, fazendo da corporeidade estatal, agora ameaçada, um elemento central na dramatização da defesa e da autoridade institucional.
As vallas são, também, máquinas de visualidade que interferem no discurso da publicidade turística. Elas fabricam outras paisagens, impedindo a visualização dos monumentos e dos espaços histórico-turísticos, o que causa descontentamento nos visitantes estrangeiros. Em meu trabalho de observação-escuta do discurso sobre as vallas, pude perceber que sua presença imponente no Centro histórico não causa, em regra, estranhamento aos cidadãos capitalinos – as vallas integram a paisagem urbana; em contrapartida, elas são vistas com espanto e descontentamento por milhares de estrangeiros que visitam diariamente a cidade. As vallas frustram o turismo instagramado – elas produzem fotografias que não cabem na circulação do belo, na exposição da felicidade das redes. Presenciei diversas ocasiões nas quais os turistas perguntavam aos seus guias ou a algum transeunte o que eram aquelas placas e porque estavam ali. Respostas que quase sempre eram construídas pela justificação das vallas: “son para nuestra protección”, “pues las mujeres si ponen loquitas y queman todo”, “por las femilocas”. Também presenciei alguns momentos nos quais os guias turísticos já se adiantavam (projeção da imagem que o turista faz da cidade) e integravam ao seu discurso a explicação do porquê havia aquelas placas enormes dificultando a visualização dos monumentos.
Foi no discurso midiático que identifiquei a circulação de informações sobre as vallas e o muralhamento da CDMX. Realizei buscas na ferramenta Notícias do Google utilizando a combinação de descritores: “Ciudad de México/CDMX”, “Vallas” e “Monumentos”. Inicialmente, selecionei o recorte temporal de 2000 a 2023, obtendo aproximadamente 270 notícias distribuídas em 23 páginas de resultados. Buscas em períodos anteriores não retornaram nenhum resultado.
Para investigar a proliferação discursiva ao longo do tempo, dividi as buscas em quatro intervalos: 1999-2005; 2006-2012; 2013-2015; 2016-2023. Nos dois primeiros intervalos, encontrei apenas seis resultados, nenhum dos quais relacionado à instalação de vallas em função de manifestações; tratavam de notícias genéricas. No terceiro intervalo, identifiquei um resultado que abordava diretamente a colocação de vallas metálicas com a justificativa de proteger monumentos da CDMX diante da iminência de manifestações. Assim, segundo o arquivo constituído pelo algoritmo do Google, o primeiro registro sobre o uso de vallas metálicas para “proteção” de monumentos e edifícios data de outubro de 2015, sem relação com marchas feministas.
Dessa notícia, extraí a sequência discursiva que serve como referência para esta seção do trabalho. As vallas foram “inicialmente” instaladas em resposta a uma manifestação em memória da Marcha do Silêncio de 1968, indicando que sua função protetiva já possuía historicidade simbólica antes das manifestações feministas recentes.

Na sequência discursiva analisada, o enunciado verbal afirma: “diversos monumentos históricos [...] fueron protegidos con vallas, con el fin de evitar que fueran atacados por vándalos.” O enunciado imagético evidencia as vallas metálicas rodeando o Palácio de Bellas Artes, um dos símbolos mais importantes do patrimônio arquitetônico, cultural e histórico da CDMX, associado à mexicanidade e à relação social monumento-pátria.
Trata-se de um monumento que encarna a materialização simbólica da identidade nacional. Sua construção, durante o regime de Porfirio Díaz (1884-1911), celebrou o centenário da Independência, orientando-se para o uso de materiais genuinamente mexicanos e para a promoção de uma arte nacional (Mendoza López, 1985). Ao cercar o Palácio com vallas, a ação não protege apenas a edificação física, mas também joga com os sentidos de pátria, história e cidadania que ela carrega. As barreiras metálicas funcionam como extensão do próprio corpo do Estado e da narrativa nacional que ele encarna.
A força da pátria se expressa na capacidade de costurar identidade nacional para além das antigas figuras monárquicas: “Los atributos que dan la posibilidad de existencia a la nación son: el territorio, el sentido de pertenencia, una épica heroica que exalta al pasado y la enseñanza de la historia como la constructora del ‘alma cívica de la nación’ y como el paradigma edificante que sirve de modelo al ciudadano elector” (Moya Gutiérrez, 2007, p. 160). Bellas Artes surge, assim, como arquitetura emblemática e monumental, capaz de esquematizar a história nacional, simbolizando grandeza, progresso e modernidade. É “un Gran Centro de reunión digno de su cultura y del Progreso de la Nación” (Romero Vázquez; Betancourt Mendieta, 2020, p. 281) e, como destaca Ulloa del Río (2007), personifica a regeneração social e a modernidade, sendo lido socialmente como a materialização do sonho mexicano de nação moderna.
O discurso de Bellas Artes é o discurso da nação, da pátria, da independência, da construção da comunidade imaginada mexicana. Também é o discurso que personifica a cristalização de uma época enunciativa, a época do progresso em “Latinoamérica”. Bellas Artes expressa a etapa do progresso material mexicano, pois sintetiza uma série de transformações urbanas realizadas no centro da Ciudad de México durante o regime de Porfírio Díaz.5 É claro que o discurso do progresso se materializa na arquitetura, logo a imagem do Palácio de Bellas Artes, trazida no recorte acima, não pode ser desconsiderada ou colocada como mero plano de fundo, ela é significativa, pois faz parte do processo discursivo-ideológico. Sobre isso, portanto, devemos ter em questão que
Los edificios públicos debían materializar y representar simbólicamente el Estado nacional, pero también los rasgos de los grupos de poder que promovieron su construcción; por lo tanto, no fue casualidad que se eligiera el palacio como el modelo arquitectónico que mejor expresaba sus ideales. Los ‘palacios sin reyes’: el Palacio de Aguas Corrientes, el Palacio de Justicia y el Teatro Colón, en Buenos Aires, así como el Palacio de Comunicaciones, el Palacio de Minería y el Palacio de Bellas Artes, en México, eran muestras de lo que podía alcanzar el Estado nacional, porque estos edificios materializaban el orden, la armonía, la belleza y la opulencia. En tanto que ‘todo poder se rodea de representaciones, símbolos que lo legitiman, lo engrandecen’, lo anterior resultaba un asunto primordial. (Romero Vázquez; Betancourt Mendieta, 2020, p. 265).
Portanto, esse é o enquadramento produzido por esse recorte. Temos aí um dos símbolos mais emblemáticos da ideia de nação mexicana. Os ditos vândalos são, assim, colocados em confronto com a pátria. Não é uma mera ação de destruição, é a destruição de Bellas Artes, é sua proteção, é a destruição da identidade mexicana, é sua preservação. Esse é o discurso materializado pelas/nas vallas. As vallas se interpõem entre a pátria e a barbárie, entre o progresso e o retrocesso, entre a cultura e a violência, entre o ser e o desaparecer... Afinal, a partir dessa ideologia republicana, o que seria um povo sem identidade nacional?
Nesse sentido, é possível relacionar as vallas a um “museu de imagens”, um dispositivo de memória que, tal como os muros romanos que separavam a civilização da barbárie ou os muros que cercavam os feudos medievais, materializa a tensão entre aquilo que é considerado civilizado e aquilo que é designado como ameaça. A interposição das vallas opera discursivamente nesse horizonte de retrospectiva; elas colocam em cena não apenas a proteção física do monumento, mas a salvaguarda de valores, sentidos e símbolos inscritos no edifício, evocando um passado de autoridade, ordem e progresso, projetado para legitimar a nação.
Ao circundar Bellas Artes, elas ativam um interdiscurso que dialoga com a memória coletiva e com o imaginário do Estado. Recordam que a civilização precisa ser defendida, que o espaço urbano e os monumentos não são neutros, mas carregam significados que estruturam o desejo e a experiência da cidade. São, portanto, um dispositivo de “museu de imagens” em tempo real, que projeta sentidos sobre o que deve ser preservado, molda os desejos de proteção e segurança, e estabelece um contraste entre a ordem legitimada pelo Estado e a ameaça que, no imaginário enunciativo, a desordem feminina representaria.
Ainda, naquela cena enunciativa, enquadra-se um grupo de pessoas que não faz parte da manifestação, são transeuntes que estão simplesmente cuidando dos seus labores diários. O enunciado imagético faz ver o incômodo causado pela manifestação, qualificada de violenta (“há vândalos nesse ato”): os transeuntes são retratados espremidos entre as vallas e a estrutura que demarca o limite da calçada. Há um efeito de responsabilização dos manifestantes que pode ser reescrito na paráfrase a seguir: desculpem o transtorno, estamos protegendo o patrimônio histórico que nos tornam mexicanos. O transtorno causado ao cidadão é, assim, de responsabilidade dos manifestantes, qualificados, por esse discurso, como vândalos (aqueles que atacarão os monumentos e edifícios estatais e dos quais é preciso defender-se).
Silencia-se manifestantes e significa-os por vandalismo que se inscreve, por força do social, no campo semântico da violência (manifestantes vândalos). Como efeito no social, deslegitima-se a própria marcha que tem seu sentido atrelado a “ataque”, “vandalismo” e “violência”. Reforçando o grau da ameaça pela visualidade do Palácio da nação, da independência. “Vandalizar” Bellas Artes é vandalizar o México, é vandalizar cada um dos milhares de mexicanos cuja identidade é fabricada na relação de pátria. Esses dizeres extraem seus sentidos na formação discursiva republicana (cidadão-pátria).
Na época dessa manifestação, o governo presidencial estava a cargo de Enrique Peña Nieto, do Partido Revolucionario Institucional (PRI), ideologicamente identificado como centro-direita. Já o governo capitalino era ocupado por Miguel Ángel Mancera, do Partido de la Revolución Democrática (PRD), cuja identificação ideológica era de centro-esquerda. Não sabemos de quem foi a ordem de ilhar a CDMX sob a justificativa de proteção, se tal discurso foi formulado desde uma posição de sujeito autoidentificado com a direita ou com a esquerda. Não importa esses locutores empíricos (autoidentificação de centro-esquerda, de centro-direita), mas como esse enunciado mobiliza um dizer que remete e convoca sentidos cuja memória os filia a discursos oriundos de uma dada formação ideológica: que significa manifestações sociais como vandalismo, que significa a cidadania pela obediência – a formação ideológica liberal, burguesa. É dessa formação ideológica que esse enunciado retira sentidos e se faz presença. Isso indicia a direção político-ideológica dessa enunciação, ainda que tenha sua formulação propiciada por sujeitos autoidentificados como de esquerda. A institucionalização da esquerda se dá, e a história tem provado isso, com a necessária assunção dos discursos da direita, ainda que cinicamente a esquerda reformista negue tal conformação em contraste com a prática político-ideológica que efetiva e põe em jogo.
A partir do último intervalo, 2016-2023, observa-se que entre os anos de 2016 e 2018 não há a veiculação de nenhuma notícia que mencione as vallas na CDMX. Contudo, temos uma proliferação considerável de notícias entre 2019 e 2020, o que coincide com o início do governo presidencial AMLO, do Movimiento Regeneración Nacional (Morena), de orientação de esquerda. Encontrei, nesse intervalo, aproximadamente cento e noventa notícias que mencionavam a instalação de vallas na CDMX, atrelando-a à suposta proteção do patrimônio arquitetônico. E já aí temos a relação entre a colocação de vallas para “resguardarem” monumentos e prédios durante a mobilização de ações feministas, como veremos na sequência discursiva abaixo.
Antes de apresentarmos a sequência discursiva, é importante destacar que, em muitas das minhas conversas cotidianas sobre as vallas, foi-me relatado que sua instalação ocorreu durante o governo de AMLO. Ou seja, existe um efeito de evidência que vincula a colocação das barreiras ao governo de esquerda de AMLO. Essa associação se justifica pelo uso mais sistemático das vallas tanto em nível federal, sob a presidência de AMLO, quanto em nível local, na CDMX, sob a Jefa de Gobierno morenista Claudia Sheinbaum. Acresce ainda o contexto das constantes críticas de AMLO ao movimento feminista mexicano, como exemplifica sua declaração em 8 de março de 2022, ao ser questionado sobre a decisão inédita de, em março de 2021, cercar completamente o Palácio presidencial com valas:
Por lo mismo, porque hay mucha infiltración del conservadurismo de derecha. Lo que quisiera. Es que se dé un espectáculo de violencia, que se las puertas de Palacio, meterse en Palacio en la Catedral, para que sea noticia mundial, porque a ellos no les interesa lo que pueda pasar al país. Es la lucha, no por el gobierno, es por la nación, es la lucha por el poder. (Garduño; Jiménez, 2022, online)
O enunciado joga com a significação do movimento feminista como agente de ameaça e perigo para a nação, reforçando a narrativa da violência e da necessidade de contenção do espaço urbano. Ao mencionar a possibilidade de “meterse en Palacio en la Catedral, para que sea noticia mundial”, o locutor constrói um quadro em que a ação das feministas é percebida como espetacular, disruptiva e transgressora, mobilizando o imaginário de desordem e risco. Esse efeito discursivo dialoga diretamente com a lógica das valas. Ao circunscrever fisicamente os monumentos, edifícios governamentais e espaços simbólicos, as barreiras materializam a tensão entre proteção e ameaça, entre desejo de segurança e visibilidade de um conflito social. A referência à “lucha por la nación” transforma o espaço urbano em palco de uma guerra simbólica, na qual o corpo do Estado se apresenta como vulnerável, porém central para a manutenção da ordem, e as vallas funcionam como extensão material desse enunciado, separando a civilização da “barbárie” e estruturando o horizonte de percepção do espectador sobre quem deve ser protegido e quem é percebido como ameaça. Nesse sentido, o discurso não apenas qualifica as feministas como inimigas, mas produz um efeito de afecção sobre os sujeitos, alinhando desejo de segurança, medo e a legitimação do aparato estatal, cristalizando a função simbólica das vallas na paisagem urbana.
O discurso de López Obrador sobre as feministas e o movimento de mulheres no México é complexo e tem sido alvo de críticas por parte de diversas ativistas. Um exemplo emblemático ocorreu em agosto de 2019, quando ativistas ocuparam La Glorieta de las Mujeres que Luchan. Na ocasião, López Obrador pediu a retirada das manifestantes, argumentando que o governo não poderia tolerar o bloqueio de ruas e avenidas. Essa postura gerou críticas de feministas e defensoras dos direitos das mulheres, que apontaram que a resposta do presidente minimizou as demandas e reivindicações do movimento, tratando-as como perturbação da ordem pública em vez de reconhecer sua legitimidade política e social.
O movimento feminista no México também tem se posicionado de forma crítica em relação às políticas do governo de López Obrador sobre os direitos das mulheres. Em 8 de março de 2020, a marcha do Dia Internacional da Mulher foi marcada por confrontos entre manifestantes e a polícia, com denúncias de violência policial contra as participantes. Inicialmente, López Obrador minimizou os protestos, alegando que a marcha havia sido organizada por “conservadores e neoliberais” que buscavam desestabilizar o governo. Nesse contexto, seu discurso dialoga com a retórica da ultradireita, reforçando processos enunciativos que constroem o movimento feminista como uma ameaça à ordem social. Cláudia Sheinbaum, por sua vez, criticou a ação das manifestantes, afirmando que “não foi pacífica” e que “não pode haver impunidade para quem viola a lei”. Trata-se de uma posição imaginária de esquerda marcada por um gesto cínico. Embora a plataforma enunciativa de Sheinbaum se construa a partir da valorização do lugar de fala da mulher mexicana, ela mobiliza o aparato estatal para circunscrever e controlar a ação das feministas, reforçando a tensão entre desejo de segurança, autoridade estatal e visibilidade política do movimento.
Passemos a sequência discursiva:
Figura 2 – Resultado da busca no Google Notícias com os descritores “Vallas” e “Ciudadde México

Nesse recorte, o funcionamento da língua revela uma polarização discursiva radical entre Estado e feministas, produzida não apenas pelo léxico, mas pelas operações sintáticas e semânticas que organizam os sujeitos, verbos e objetos. Os verbos “resguardar”, “blindar”, “proteger”, “colocar” e “instalar” configuram o Estado como agente ativo, diligente e protetor, um sujeito que age com autoridade e racionalidade para preservar a ordem. Já os verbos “romper”, “tirar”, “vandalizar” e “destroçar” posicionam as manifestantes como agentes disruptivos, cuja ação é percebida como violência, desordem e ameaça. Cria-se uma hierarquia enunciativa em que o Estado é legítimo e defensivo, enquanto as feministas são ilegítimas e agressoras.
Os mesmos substantivos e qualificativos (“monumentos”, “edifícios”, “negócios”) se repetem em diferentes jornais, compondo um padrão de imagens lexicais que reforça a materialidade simbólica da cidade como patrimônio da ordem social. Cada notícia funciona como um fragmento do arquivo discursivo que naturaliza a separação civilização/barbárie. As vallas materializam fisicamente essa distinção, mas a língua já a construiu, codificando um horizonte de expectativa e medo. Nesse sentido, a instalação das vallas constitui um efeito da significação discursiva que opera sobre os corpos e desejos dos sujeitos. Elas são a encarnação material de um regime enunciativo que articula segurança, autoridade e vigilância, enquanto as feministas encarnam o risco, a desordem e a ameaça.
Vejamos a sequência discursiva a seguir, extraída de uma conversa por WhatsApp que realizei com um dos meus interlocutores.
Ah si las vallas se pusieron a causa de que vimos los destrosos que hacían. La primer marcha feminista no habia ese tipo de vallas e hicieron un desastre y muchas tiendas y monumentos fueron dañados. Pero en el siguiente año ya se colocaron las vallas solo en los monumentos principales. Pues fue un acto que el gorbierno opto ante el caos que se originó ante la primer marcha ya que si bien los monumentos fueron dañados, esto se podria solucionar limpiando y reconstruyendo; sin embargo, el precio de limpieza y recontruccion de lo dañado es significativo y ante tal suceso el gobierno opto por poner las vallas para evitar que se dañen el patrimonio de todos los mexicanos.
Na sequência analisada, o enunciado é produzido por um sujeito ao ser questionado sobre as estruturas metálicas instaladas ao redor de muitos edifícios e monumentos da CDMX. Linguisticamente, opera-se um não-dito, uma falta que remete a um pressuposto que o enunciador antecipa que seu interlocutor preencherá naturalmente – a única partícula possível: las vallas se pusieron a causa de que vimos los destrozos que hacían. Há um ocultamento do sujeito da ação de destroçar: quem fazia os destroços? Quem destroçava? O que era destroçado? Os destroços, agora, com a instalação das vallas, já não ocorrem (pretérito: hacían).
A memória social, quando situada na malha sócio-histórica da CDMX, remete às ações feministas. Esse preenchimento naturalizado aparece na segunda parte do enunciado: “La primer marcha feminista no había ese tipo de vallas e hicieron un desastre y muchas tiendas y monumentos fueron dañados.” A referência à primeira marcha feminista reforça o termo elipsado. Ao ser questionado sobre as vallas, o sujeito não define, mas justifica sua instalação. O movimento da definição para a justificativa decorre de uma antecipação. Apesar de naturalizadas na CDMX, as vallas causam estranhamento a quem não convive com elas, levando o enunciador a supor que a pergunta real é sobre o motivo de sua presença. Esse mesmo efeito é explorado por guias turísticos, que explicam a função das placas metálicas em pontos turísticos emblemáticos, mesmo sem serem provocados.
Há também um subentendido na formulação. A marcha feminista seria a causa não das vallas em si, mas do incômodo que produzem. Isso sugere, no imaginário do sujeito, que são as mulheres responsáveis por limitar a visualidade do patrimônio cultural, artístico e histórico da capital, provocando insatisfação nos visitantes e imagens negativas de sua experiência, conforme os ditames de um imaginário cidadão-republicano.
Dessa forma, o discurso cristaliza o sentido de “mulheres” como não pertencente à instância pessoal de enunciação. Elas aparecem como “ela/elas”, actantes do enunciado e não da enunciação, ou seja, como objeto de fala e não como sujeitos que falam. Como observa Benveniste (1995), a enunciação é a instância de constituição do sujeito. É na linguagem que o indivíduo se torna sujeito, ocupando as posições de eu e tu, que são intercambiáveis. A subjetividade surge justamente nessas posições de enunciação (eu/tu). Por isso, aquele ou aquilo que ocupa o “ele/ela” não se constitui como sujeito nessa relação enunciativo-discursiva: “[...] uma vez que ela não implica nenhuma pessoa, pode representar qualquer sujeito ou nenhum e esse sujeito, expresso ou não, não é jamais instaurado como actante da enunciação.” (Fiorin, 2016, p. 52). Em outras palavras, essas mulheres não se constituem como sujeitos, sendo-lhes negada a subjetividade, isto é, a possibilidade de “pôr-se como sujeito” (Benveniste, 1995).
Nessa formulação, os sujeitos referidos pelo signo mulheres (pressuposto não-dito na expressão “marcha feminista”) não têm estatuto linguístico de pessoa e, portanto, são impedidos de exercer a língua como sujeitos. A discursivização é representada por um “eu” implícito, que se distancia do sentido de mulher e de feminista, e que instaura enuncivamente essa não-pessoa (ele/ela). Assim, o termo implícito mulheres funciona como actante do enunciado (ele/aquilo = não eu + não tu). No discurso das vallas, o sentido de mulheres é governado pelo terceiro excluído, produzido como exterioridade, como o outro do discurso.
No enunciado analisado, todos os verbos foram conjugados de forma impessoal, exceto vimos. Trata-se de um discurso sem marcas enunciativas (eu/tu), produzindo o efeito de objetividade: “a eliminação das marcas de enunciação do texto, ou seja, da enunciação enunciada, fazendo que o discurso se construa apenas com enunciado enunciado, produz efeitos de sentido de objetividade [...]” (Fiorin, 2016, p. 39). Isso aproxima o enunciado de uma imagem cristalizada do discurso científico.
Esse efeito gera um afastamento imaginário da doxa, da mera opinião. O discurso científico, como marca de sua pretensa universalidade, apaga prenomes denotativos de gênero, como ocorre no sistema de citação e referenciação. Historicamente, o sobrenome funciona como patronímico, relativo ao nome do pai. A mulher só é enunciada se regida pelo patronímico, ou seja, de forma impessoal, sem a instalação do eu/tu. No entanto, mesmo essa impessoalidade aparente traz o nome do pai, mostrando a representação actante como herdeira do primeiro pai, do Pai da horda.
Alguns verbos apresentam elipse de sujeito, como pusieron e colocaron. Quem instalou as vallas? O governo? Os cidadãos da CDMX? Quem tem o poder de decidir pela “partilha” do espaço social por ato administrativo? Quem enuncia “que se coloquem las vallas”, tensionando sentidos e sujeitos e produzindo a corporalidade do urbano? Essa elipse sugere uma sinonímia entre governo e população (significada por todos os mexicanos), fazendo implícito que a decisão de instalar as vallas seria do povo mexicano – remetendo ao efeito metafórico cidadão-República.
Embora os verbos estejam na terceira pessoa do plural, há um nós implícito. Ao apagar as marcas actantes da enunciação para conferir objetividade ao discurso, o locutor se identifica com a defesa das vallas, assumindo uma posição socialmente hegemônica (vimos los destrozos que hacían). Esse sujeito se tensiona entre passividade (observar os destroços causados por elas – mulheres) e atividade (colocar/instalar as vallas – identificação com o governo/nós).
Teríamos aqui uma pessoa subvertida, uma embreagem actancial que neutraliza a oposição dentro da categoria de pessoa. A terceira pessoa do plural funciona, portanto, como primeira pessoa do plural, que, em um segundo nível de embreagem actancial, remete à primeira pessoa do singular. Assim, teríamos: “eles (governo) colocaram as vallas por causa dos danos que elas (mulheres) causavam; nós (mexicanos) somos testemunhas do caos provocado por elas (mulheres)”. A ameaça se eterniza e se atualiza pelo regime de gênero.
A objetividade que afasta o enunciador se dobra em um “nós” subvertido, indicando a identificação do locutor com o discurso das vallas. O “eles”, nessa formulação, é um “nós” que permanece à distância, impedindo que o interlocutor assuma o estatuto de tu e excluindo-o da reciprocidade linguística (Fiorin, 2016). A neutralização do “nós” sugere que a instalação das vallas é um ato legítimo. Não apenas uma ação do governo (eles), mas uma demanda do povo mexicano, produzindo uma sinonímia entre nós (elipsado), governo e todos os mexicanos (explicitado). Dessa forma, o enunciado cria um vazio de subjetividade à procura de um enunciador, revestido da qualidade do “qualquer um”. É uma fala individual coletivamente compartilhada: a fala individual de cada cidadão.
A forma discursiva de nós é composta por eu mais não-eu, podendo ser: eu+tu (nós inclusivo), eu+ele (nós exclusivo) ou eu+tu+ele (nós misto, formado por eu mais não eu mais não pessoa) (Benveniste, 1995). O nós não é mera pluralização de objetos idênticos, como o eles, tanto que todas as línguas modernas possuem uma forma distinta para a primeira pessoa do plural. Ou seja, nós é uma pessoa amplificada (Fiorin, 2016).
Diante disso, questiona-se: o que nós fala na formulação analisada? Vimos os destroços – quem viu? O sujeito que enuncia, o governo que decide colocar as vallas, ou os mexicanos testemunhando a destruição de seu patrimônio? Há um acúmulo de posições enunciativas ao qual o sujeito “eu” se agrega para se constituir como nós (eu-eles-nós).
O efeito de sentido é coletivizar a responsabilidade sobre a produção do objeto simbólico (instalação das vallas), permitindo falar objetivamente (apagando a pessoalidade) e falar de forma global, em nome de uma pluralidade imaginária. Trata-se de um nós misto formado por eu (enunciador) + tu (governo) + ele (todos os mexicanos/sociedade). Há uma imbricação entre essas categorias: o enunciador (eu) representa-se como um nós (vimos), identifica-se com um tu (governo) e fala em nome de um ele (todos os mexicanos/sociedade): “Há pontos de contato entre esses ‘não eus’ que constituem o ‘nós’ e por isso se mesclam e se confundem, causando efeitos de uma coletividade [...]” (Marega, 2008, p. 163).
É preciso considerar a embreagem de segundo nível: a alternância do eu pelo nós já embreado no eles. Nessa formulação, é o Estado que fala – o discurso estatal imbrica eu-tu-ele (nós misto) para justificar a necessidade das vallas. O sujeito só pode falar assim porque esquece que não é a origem do dizer; isso permite dar voz e corpo ao discurso do Estado, estruturado pela ideologia burguesa.
O sujeito não fala em nome próprio, mas funciona como suporte de enunciação do Estado, que se manifesta em nome da administração, da burocracia e da burguesia. Assim, o enunciador aparece como delegado implícito da discursividade estatal. A terceira pessoa é empregada com valor de primeira, diluindo o eu na impessoalidade do ele e no anonimato do nós.
Por fim, neste recorte, destaca-se o estranhamento causado pelo uso do numeral primer antes de um substantivo feminino: “La primer marcha feminista”. Em espanhol, substantivos femininos exigem que numerais e adjetivos concordem em gênero e número. Esperava-se, portanto, la primera marcha feminista. Segundo a Real Academia Española, o uso de primer nesse contexto configura um arcaísmo a ser evitado.
O estranhamento surge porque esse uso não é comum e não constitui um “erro” típico de falantes nativos. Isso leva a questionar os implicativos desse uso masculino: por que marcha foi qualificada pelo sintagma primer e não por primera? Em português, não há contração da forma primeiro ou terceiro quando precedendo um substantivo masculino; uma tradução que preservasse o estranhamento poderia ser: “a primeiro marcha feminista”. Contudo, em português, esse uso seria classificado como erro gramatical, e não como arcaísmo a ser evitado, como ocorre no espanhol.
Se o masculino representa a posição de ter o falo e o feminino a de ser o falo, em Lacan (2012) compreende-se a forclusão do feminino na ordem fálica. No enunciado, o equívoco (primer, numeral masculino, qualificando marcha, substantivo feminino) se ancora no efeito mais profundo dessa forclusão: o travestimento do masculino como universal neutro fundador.
A promoção do falo à instância neutra fundadora pode ser considerada justamente como o próprio atestado da superioridade do masculino, o qual não pode ser reduzido a um órgão sexual, o pênis, como no caso da mulher, que se define, antes de tudo por seu sexo, sob pena de caricaturar a própria universalidade fálica. (Neri, 2004, p. 156).
Nessa ordem fálica, ao feminino – ser o falo – cabe a instância formal de imaginação, uma postura passiva diante do mundo. O feminino é significado em relação ao masculino e pelo masculino, produzindo a equivalência feminino-privado x masculino-público. O espaço do feminino não é o público: não é a cidade, a rua ou a política. O equívoco na enunciação também nega ao feminino a instância material de imaginação, ou seja, a ação sobre o mundo. O estranhamento reafirma o espaço público como domínio do masculino, daqueles que detêm o falo.
Metáfora (transferência de sentidos): do feminino esperado como norma gramatical ao masculino imposto como lei do desejo (primera-primer). O numeral masculino indica que a marcha, a política feminista, a apropriação do espaço público por mulheres são impossíveis em termos linguístico-históricos – a eterna encenação de Antígona diante do Estado, da Lei, do Pai, cuja inscrição no simbólico se daria apenas pela produção de uma efígie do falo. 6 Designar a marcha de mulheres pelo masculino funciona como índice da negação de sua capacidade de mover-se de violentada para violenta.
Na ordem fálica, o lugar do feminino é atravessado pela violência, mas de modo que ocupem a posição de objeto (ser violentada) e não de sujeito (violentar). O equívoco designatório evidencia essa inapropriação. A política feminista e a ocupação do espaço urbano e público por mulheres são negadas, pois “[...] el cadáver no está fuera y el soberano dentro. El cadáver es el límite […] el cuerpo está al centro de la tragedia: ‘no hay reconciliación entre el cuerpo [femenino] y la ciudad [ley del Padre]’.” (Parrini, 2021, p. 11).
Considerações finais
Diante disso, compreende-se que as vallas não são meros elementos físicos ou arquitetônicos, mas dispositivos simbólicos que articulam espaço, poder e gênero na cidade. Elas materializam conflitos históricos e sociais, encenam a hegemonia do masculino e evidenciam a luta do feminino por visibilidade e participação pública. Ao mesmo tempo, enunciam a complexa relação entre discurso, corpo e cidade, mostrando como a subjetividade política se constrói e se delimita no urbano.
As vallas materializam o desejo de segurança, proteção e controle do urbano, estruturando uma partilha do espaço e dos sentidos da cidade. Funcionam como textos urbanos que inscrevem o corpo da cidade, o corpo das pessoas e o corpo do Estado, regulando circulação, delimitando fronteiras e produzindo sentidos sobre o que é legítimo, ameaçador ou protegível. Elas podem ser compreendidas, cf. Parrini (2021), como manifestações de um excesso de masculinidade, um excesso que reivindica orgulho e autoridade, e que, simbolicamente, coloca a posição feminina na função do falo a ser possuído. Esse excesso funciona como uma tentativa de restaurar o feminino que ousou exceder sua significação histórica: a ousadia da mulher que sai do lugar do falo passivo para o território do falo ativo.
As vallas produzem, assim, uma distribuição de lugares no espaço urbano. Delimitam onde as mulheres podem ou não agir, falar, resistir pelo ruído e pelo alarido. Elas tornam visível o que é irrepresentável na polis. Cercam, separam, cerceiam e dividem, materializando o regime estético do urbano, a performance democrática que “[...] cria uma cidade na qual a separação vem para o primeiro plano e a qualidade do espaço público e dos encontros sociais que são nele possíveis já mudou consideravelmente.” (Caldeira, 2000, p. 297). As vallas constituem uma criação artística do soberano. Repartir o comum é ato, performance, intervenção estética.
Essa intervenção só é possível porque a cidade de muros torna o sensível estranho a si mesmo, familiarizando o que deveria ser visível e tornando invisível o que deveria ser parte da experiência urbana. Ela enquadra palavra, imagem e corpos, configurando sujeitos e modos de subjetividade. Mas a partilha do sensível “é sempre uma distribuição polêmica das maneiras de ser e das ocupações num espaço de possíveis” (Rancière, 2005, p. 63).
É exatamente nesse ponto que as vallas revelam sua tensão. As mulheres, as feministas, perturbam o regime estético da democracia burguesa, trazendo o privado ao público, deslocando o feminino do espaço doméstico para a cena pública. Esta re-partilha do sensível se produz como contradição: sua visibilidade deslocada e fraturada, seu ruído, evidenciam uma dissonância, dando ao feminino “[...] o tempo de estar no espaço das discussões públicas e na identidade do cidadão deliberante.” (Rancière, 2005, p. 65).
As vallas funcionam, portanto, como texto, objeto simbólico e produtor de sentidos – em especial da “partilha” do sensível urbano. Ao colocarem em disputa os sentidos da cidade, elas induzem formas específicas de subjetividade política. “Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividades [...]” (Rancière, 2005, p. 15). A partilha do comum e sua re-partilha constituem efeitos da produção da subjetividade mercantil, regulando quem pode participar, quem tem voz e corpo na cidade.
Assim, precisamos questionar não apenas os sentidos que as vallas produzem, mas como elas moldam a percepção e a experiência urbana; como partilham o comum, organizam os dizeres sobre a cidade, definem quem pode ocupar o espaço público e em que tempos, recortam o visível e o invisível, o legível e o silencioso, o ruído e a palavra. Elas tornam material a disputa por quem pode ser sujeito na cidade, revelando a tensão entre a ordem simbólica do masculino e a insurgência do feminino no espaço urbano.
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Data de Recebimento: 12/05/2025
Data de Aprovação: 31/10/2025
1 Enunciado em circulação em diferentes grupos e redes sociais feministas, funcionando como reação crítica à instalação das placas metálicas pelo governo.
2 Desejo e afeto são categorias distintas, ainda que profundamente entrelaçadas. Com Parrini (2018), compreendo o afeto como o modo de enunciação do desejo. Enquanto o desejo se inscreve na relação ideológico-discursiva, ou seja, na ordem da produção de sentido e da constituição do sujeito, o afeto se manifesta no plano político-enunciativo, como efeito e como força de direcionamento. É nessa perspectiva que leio a proposição de Biondi e Beck (2022) do discurso como um modo de afetar. O afeto entendido como efeito do discurso (afecções), como a orientação das coordenadas ideológicas que produzem paixões, medos, esperanças, afetos, enfim, despotencializantes ou mobilizadores. Já o desejo participa da constituição da superfície de subjetivação moderna. Ele é o modo pelo qual o sujeito (de direito) se materializa, enquanto o afeto, suas afecções ou, em termos de Lordon (2018), seu regime afetivo, constitui a expressão enunciativa desse processo. Assim, o sujeito de e do desejo se reconhece nas próprias afecções, marcado pela crença na liberdade, na consciência e na unidade.
3 Conceito que nasce da universalização da forma-sujeito de direito cujo funcionamento é o de garantir a circulação de mercadorias e a exploração capitalista pela naturalização e aceitação da imaginária igualdade jurídica (Kashiura Júnior, 2008).
4 Sobre a relação entre arquitetura e poder na sociedade mexicana durante a época porfirista, consultar: Moya Gutiérrez, Arnaldo. Historia, arquitectura y nación bajo el régimen de Porfirio Díaz. Ciudad de México 1876-1910. Revista de Ciencias Sociales, v. 3, n. 117, p. 159-182, 2007.
5 “[...] ‘Quando se vai ver os príncipes mortos, exibidos em seus leitos de morte, só se vê a representação, a efígie’ ou, mais geralmente e outrora, o leito fúnebre vazio e recoberto por um lençol mortuário que ‘representa’ o defunto.” (Chartier, 1991, p. 184).
6 Professor da rede estadual de Pernambuco. Doutor em Letras: Linguagens e Representações pela Universidade Estadual de Santa Cruz (PPGL/UESC). E-mail: rarocha@correo.xoc.uam.mx