“Deus, pátria, família”: os sentidos do fascismo brasileiro


resumo resumo

João Paulo Martins de Almeida



A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo. [...] a crítica da religião é o germe da crítica do vale de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade. Karl Marx

 

Introdução

Neste trabalho, a partir do aparato teórico e metodológico da Análise do Discurso pêcheutiana, far-se-á uma análise da conjuntura brasileira hodierna em que, como se sustentará ao longo da exposição, observa-se o germe fascista manifestando-se na cena política nacional. Para sustentar nossa tese, será feito um gesto analítico a partir de uma sequência discursiva tomada como referência, a saber, o lema do movimento fascista brasileiro comandado por Plínio Salgado1: a Ação Integralista Brasileira e seu slogan “Deus, pátria, família”.

Nos anos de 1930, quando do nazifascismo europeu em plena ascensão, o integralismo, inspirado no fascio2 de Benito Mussolini e de Adolf Hitler (PEREIRA, NETO, 2020), mobilizava sentidos muito particulares de “Deus”, de “pátria” e de “família”. Decorridos quase um século, quando das eleições de 2018, observam-se paráfrases desse lema na fala e nos slogans de campanha do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, que passa a não só retomar o lema integralista em paráfrases, como também a adotá-lo em sua integralidade nas lives que promove nas redes sociais.

No encontro do passado e do presente, a memória é, assim, acionada e atualizada. O interdiscurso – aqui representado pelo já-dito dos camisas-verdes (como eram chamados os membros da AIB) – incide, atravessa e constitui o próprio dizer dos camisas verde-amarelas (como podemos chamar os apoiadores do presidente Bolsonaro). O enunciado interdiscursivo penetra, destarte, pela memória do dizer, no intradiscurso, naquilo que se diz atual e linearmente. E é na observação deste dizer atualizado que, com o aparato provido pela Análise do Discurso, observa-se em quais condições tal enunciado se produz, o que dele resta de similar e o que difere no intervalo de quase um século de história.

Por fim, indaga-se: o intento da AIB, de institucionalizar um Estado fascista brasileiro, é finalmente alcançado com o presidente atual? Qual o papel da religião nesse movimento? Tais questões passam a ser, assim, objeto de reflexão e análise nas linhas que seguem.

 

1. “Deus, pátria, família”: os sentidos do discurso fascista brasileiro e sua relação com a manutenção do capitalismo no país

 

Deus dirige os destinos dos povos. [...] O homem vale pelo trabalho, pelo sacrifício em favor da Família, da Pátria e da Sociedade. [...]toda superioridade provém de uma só superioridade que existe acima dos homens: a sua comum e sobrenatural finalidade. Esse é um pensamento profundamente brasileiro, que vem das raízes cristãs da nossa História e está no íntimo de todos os corações. Manifesto de 7 de outubro de 1932, Ação Integralista Brasileira

 

Em sete de outubro de 1932, a Ação Integralista Brasileira (AIB) lançava um manifesto em que pregava o caráter cristão da sociedade brasileira como o norte de orientação política da nação. O manifesto se inicia com o que se grifou acima: “Deus dirige os destinos dos povos”. Ao longo do texto, a força sobrenatural cristã será enaltecida repetidas vezes como o dogma a ser seguido para se alcançar um modelo ideal de família, de sociedade, de uma pretensa indivisibilidade de classes e, logo, do próprio funcionamento econômico social. Como colocado pela AIB, este “pensamento profundamente brasileiro” é advindo “das raízes cristãs da nossa História”: eis o sentido do programa integralista para um modelo unívoco de pátria, que passou a ser sintetizado no slogan3 “Deus, pátria e família”, o qual se tomou como a sequência discursiva de referência (SDr) neste gesto de análise. Ao analisar este dizer, relacionamo-lo às condições de produção da década de 1930 para, assim, perceber como esta SDr se comunica com as condições postas pela contemporaneidade, quando tal lema é reapropriado pela extrema direita brasileira que ora detém o poder político da nação, como explicitado nas figuras abaixo.

 

FIGURA 1Slogan integralista. Integralismo.org.br, 2022.

 

FIGURA 2 – Presidente da República em live, com o lema integralista adesivado em seu computador portátil. Folha de S. Paulo, 2022.

 

De início, é preciso dizer que esta materialidade discursiva, “Deus, pátria, família”, está no nível da formulação, ou seja, da enunciação ou do intradiscurso: cabe à/ao analista escolher uma “sequência discursiva – enquanto manifestação da realização de um intradiscurso – como ponto de referência a partir da qual o conjunto de elementos do corpus receberá sua organização” (COURTINE, 2016, p. 25). Este ponto de referência, isto é, esta sequência discursiva de referência, passa a relacionar demais sequências que a ela se ligam. Ademais, a SDr precisa ser correlacionada a um sujeito da enunciação/formulação e a uma situação determinada. Isto ocorre para que seja possível à/ao analista tentar demonstrar como o sujeito da enunciação e as circunstâncias enunciativas são referenciáveis dentro dos aparelhos ideológicos numa dada conjuntura histórica. Assim, neste primeiro procedimento já se analisa, pelo intradiscurso, o sujeito enunciador, a circunstância de enunciação e as referências imediatas que relacionam tal sujeito à posição ideológica que ele ocupa no estado de luta de classes.

Na SDr tomada para análise, percebe-se um sujeito enunciador determinado – a Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento fascista inspirado no nazifascismo europeu –, que se opunha à ordem política vigente e às “ameaças comunistas”4 – ou melhor, aos diversos partidos políticos que se organizavam contra a dominância burguesa do início do século XX, a partir dos estudos de Marx. A circunstância de enunciação se refere à década de 1930, mais precisamente no ano de 1932, quando a AIB lança seu manifesto como movimento político com intenções eleitorais (GONÇALVES; NETO, 2020).

Neste documento, conhecido como o Manifesto de 7 de outubro de 1932, o integralismo defende a liberdade de empreender, a valorização do modelo mononuclear de família e o catolicismo cristão como bases da sociedade brasileira. Excluem-se, logo, a possibilidade de uma economia não baseada no poder destrutivo do capital, da formação de diferentes arranjos familiares, do pluralismo religioso. Tudo que foge ao estritamente estipulado pela AIB em seu manifesto é visto como inimigo a ser combatido – a ser eliminado. Este discurso autoritário, cujo mote é a eliminação do outro, portanto, inscreve-se em uma formação discursiva fascista, cujo sentido engendrado é o de que prevê sua supremacia perante outrem. Como dito por Orlandi (1984, p. 20), o discurso autoritário “procura absolutizar um sentido só de tal maneira que aquele não se torne o dominante, mas o único. Portanto, no discurso autoritário a polissemia é contida [...]”, o que significa dizer que o discurso fascista brasileiro não admite a produção de sentidos outros – outros sentidos de Deus, de pátria e de família, distintos dos do manifesto integralista.

Um dos elementos do discurso fascista apresentado pelo integralismo, portanto, é marcado pelo autoritarismo, já que o Manifesto de 7 de outubro de 1932 e o slogan “Deus, pátria, família” desaprovam a liberdade semântica, intentando controlar o sentido desses dizeres discursivos pela lente do cristianismo mais ortodoxo. É neste ponto nodal que o autoritarismo comunga da dogmática religiosa para engendrar sentidos e controlar seus efeitos de sentido, apontando uma única interpretação possível. Ou melhor: as aspirações autoritárias da Ação Integralista Brasileira, abertamente motivada pelas movimentações fascistas de Mussolini e Hitler na Europa5, valem-se da religião para produzir sentidos, tentando-se ordenar a sociedade politicamente por uma interpretação muito restrita (e, por isso, autoritária) da religiosidade.

Uma vez classificado o discurso autoritário, que essencialmente marca a AIB e seu lema, passa-se, então, à análise do discurso religioso. Segundo Orlandi (1996a), a principal característica deste discurso é a de que ele faz ouvir a voz de Deus ou de seus enviados: o pai de santo, o profeta, o pastor, o padre. A autora elenca algumas características gerais que definem o discurso religioso (doravante DR), afirmando que este discurso é “aquele em que há uma relação espontânea com o sagrado”, o que lhe confere um status de maior informalidade (logo, naturalidade) se contraposto ao discurso teológico, “em que a mediação entre a alma religiosa e o sagrado se faz por uma sistematização dogmática das verdades religiosas, e onde o teólogo [...] aparece como aquele que faz a relação entre os dois mundos: o mundo hebraico e o mundo cristão”, sendo, por este motivo, o discurso teológico considerado “mais formal” que o religioso (ORLANDI, 1996a, pp. 246-247).

Ainda seguindo o entendimento da autora, observa-se que o discurso religioso opera por meio de um desnivelamento, de uma assimetria na relação entre o locutor e o ouvinte: o locutor está no plano espiritual (Deus), e o ouvinte está no plano temporal (os adoradores). As duas ordens de mundo são totalmente diferentes para os sujeitos, e essa ordem é afetada por um valor hierárquico, por uma desigualdade – um desnivelamento. Deus, o locutor, é imortal, eterno, onipotente, onipresente, onisciente; em resumo, o todo-poderoso. Os seres humanos, os ouvintes, são mortais, efêmeros e finitos. O ideal do DR é que o “representante”, o que “se apropria do discurso de Deus”, não o modifique. Ele deve seguir regras restritas reguladas pelo texto sagrado, pela Igreja, pelas liturgias. Deve manter distância entre “o dito de Deus” e “o dizer do homem”.

É esperado, logo, que a interpretação da palavra de Deus seja regulada por quem a detém, por quem se apresenta como representante de Sua palavra. E, em possuindo a representatividade da palavra Dele, não questiona sua legitimidade, tampouco os sentidos que o discurso religioso, proferido por um padre, um pastor, um rabino etc., engendra. Assim, percebe-se que há uma confluência entre o discurso autoritário e o discurso religioso, já que “os sentidos não podem ser quaisquer sentidos: o discurso religioso tende fortemente para a monossemia” (ORLANDI, 1996a, p. 246), tal qual a verticalidade imposta pelo discurso autoritário. Nestes termos, em que a polissemia é contida e um sentido único é intentado ser dominante em dada formação discursiva, é que se percebe que o discurso religioso cristão no Brasil apresenta forte tendência discursiva autoritária, não aberta a outras interpretações que englobem as contradições e a própria pluralidade de uma país de dimensões continentais e de história e cultura multiétnicas.

É por tal motivo que entendemos que, numa nação como a nossa, os sentidos para “Deus”, para “pátria” e para “família” são muitos distintos do estritamente religioso cristão, sentido herdado e imposto pelos valores europeus dos colonizadores originais desta terra. E, por haver o entendimento de que o que se impõe de maneira autoritária necessariamente desautoriza outros dizeres, conclui-se que o discurso religioso cristão no Brasil, em sua monossemia, renega a própria matriz de formação dessa sociedade tão diversa, no intento de uniformizar o que não é de essência uniforme, calar o que se rebela, chegando a marginalizar e criminalizar aquilo com que não se compactua.

Por este motivo, é um perigo sempre premente para a democracia moderna6 o fato de normalizar movimentos políticos obviamente autoritários somente porque eles representam parcelas majoritárias do credo religioso compartilhado socialmente. Assim, pode-se dizer que tais políticos e movimentos se apropriam da religião, sustentando-se nela como se fossem seus representantes. Por se entenderem maioria, tais políticos e/ou religiosos intentam homogeneizar discursos, o que significa dizer que, em suas práticas, são capazes de promover um ciclo de marginalização daqueles que não são seguidores de uma determinada doutrina. Isso pode se manifestar como crimes de ódio, como nos diversos casos de perseguição às religiões de matriz africana no Brasil, atitudes que são potencialmente puníveis pelo Estado. Reitera-se, entretanto, que o perigo é mais latente quando tais representações religiosas assumem, elas mesmas, o poder do Estado, promovendo, pelo próprio aparelho estatal, o ódio, o preconceito e a morte, justificando-os pela leitura conservadora da religião.

Confundida com a própria representação política, a representação religiosa passa a deter, deste modo, um poder de fato e de direito: o poder de interpelação ideológica dos indivíduos em sujeitos, de quem se espera acreditar fiel e cegamente na fé da Igreja, do partido, do representante político etc.; e o poder jurídico de julgar, de encarcerar e até mesmo o de matar. Um Estado assim, que se expressa pela necropolítica (MBEMBE, 2018) e pelo autoritarismo, ainda que fenomênica e sintomaticamente religioso na superfície, decerto não carrega as marcas do Cristo fraterno, solidário e crucificado7, antes, tem em si marcado o estigma do ódio e da agitação fascista de outrora, obscurecido pela sombra de uma outra cruz: a suástica. Em outros termos, tal Estado é claramente um de raízes fascistas.

Na esfera política, uma leitura conservadora da religião, autoritária dos dizeres e dos sentidos por eles engendrados, ganham representação em discursos igualmente autoritários e/ou fascistas. É preciso considerar, ademais, que autoritarismos geralmente são expressões do próprio sistema econômico que nos organiza socialmente – o autoritarismo é a maneira pela qual se expressam vontades, desejos e ambições no sentido de se obter mais poder, e este poder não se dá senão na materialidade de base econômica, que comporta a superestrutura marxiana do poder jurídico que se lhe acopla e a retroalimenta. Não à toa que, nos estágios de desenvolvimento do capitalismo que aqui se observam (1932 e 2018), os sentidos de “Deus” são mobilizados em defesa do próprio sistema econômico, tendo seu rival, “o diabo”, representado pelo “comunismo” e pela própria democracia.

É por esse motivo que afirmamos que o discurso religioso é assim apropriado pelo discurso autoritário para a defesa do capitalismo, interpelando os indivíduos em sujeitos que, desamparados no mundo burguês, procuram atribuir-lhe um sentido para nele navegar, buscam uma ética de comportamento e de sobrevivência neste mundo hostil. Esses sujeitos irão encontrar uma pretensa segurança no simulacro de amparo promovido pelo discurso religioso, interpretando o mundo sob a ótica do discurso dominante, que coloca o capitalismo como seu “Deus” e as formas de combate a esse sistema como o próprio “diabo” – como o mal a ser evitado.

Mobilizado pelo discurso religioso, o sujeito é “interpelado pela ideologia que predomina nesse projeto civilizatório de sociedade, a formação ideológica do capital” (AMARAL, 2021, p. 2), uma vez que esta formação ideológica impregna, também, o discurso religioso, mormente com o advento da “teologia da prosperidade”. Crendo-se beneficiado pelo projeto capitalista em sua ascensão profissional e acesso a bens materiais, o sujeito na sociedade capitalista “também se desola quando se vê abandonado pelo mesmo projeto ao qual foi submetido, imposto por interesses que lhes são alheios” (idem). Há um batimento, destarte, entre esperança e desesperança, amparo e desamparo. Desamparados, pois, os sujeitos precisam de novo ânimo para não se sentirem à deriva no mundo. É neste intervalo que o discurso religioso surge como anteparo para a alma, para a subjetividade – e, consequentemente, para a manutenção do modo de produção capitalista tal qual o conhecemos.

 

2. Ética protestante e o espírito do capitalismo no Brasil

Como esta exposição se debruça sobre a religião e seu entrelaçamento com o capitalismo e, deste, com o fascismo, é condição sine qua non trazer as reflexões de Max Weber sobre as origens do sistema capitalista. Para Weber (2013), foi a chamada “ética protestante” que impôs uma nova maneira de se relacionar com o trabalho e a acumulação de riquezas. O lucro, desde que para glorificar Deus, era não só permitido, como estimulado. Isso só é possível com o advento da Reforma Protestante de 1517, época em que as bases do capitalismo mercantil são colocadas. Neste período, muito do que era considerado como pecado pela doutrina católica perde seu sentido: a poupança, por exemplo, não mais era vista como algo negativo, mas um objetivo a ser perseguido pelo ascético; um sinal de disciplina. Há, portanto, a partir do protestantismo histórico, uma ruptura com a ética católica de então, que acreditava que boas ações deveriam ser promovidas apenas de maneira dispersa e presumia que os indivíduos deveriam se afastar dos bens materiais, ideias amplamente promovidas ao longo da Idade Média.

Por considerar estas transformações, Weber (2013) dirá que o “espírito do capitalismo” advém, assim, do protestantismo, especialmente porque, na ruptura com a ordem social vigente de então, o trabalho e o lucro passam a ser observados não de um ponto de vista disperso do cristianismo católico, mas sob a ótica da racionalidade e da organização sistemática. Estas são características absolutamente imprescindíveis para o desenvolvimento do capitalismo e que, como já apontava o autor no início do século XX, foram mantidas no processo econômico – ainda que destituídas do seu caráter estritamente religioso. A tese weberiana é a de que os protestantes históricos, mormente os calvinistas, com sua disciplina para o trabalho, sua perseguição ao lucro, sua objetividade e racionalidade na produção, assentaram as bases do capitalismo contemporâneo, conforme se observa na passagem a seguir:

 

Uma ética econômica especificamente burguesa se havia edificado. Com a consciência de permanecer na plenitude da graça de Deus e sendo visivelmente abençoado por Ele, o homem de negócios burguês [...] poderia seguir seus interesses de lucro, conforme sentisse estar cumprindo um dever ao fazê-lo. O poder do ascetismo religioso o provia, adicionalmente, com trabalhadores sóbrios, conscientes e industriosos de forma incomum, que se agarram ao seu trabalho enquanto um propósito de vida desejado por Deus. (WEBER, 2013, p. 255).

 

Esses caracteres, ainda que orientados por uma ética religiosa, ultrapassaram as fronteiras da religião e se fixaram na organização econômica. “Deus” e a disciplina que Ele espera, assim, transfiguram-se no “deus mercado” e à racionalidade requerida por esta nova entidade para a produção de bens e para a própria organização dos trabalhadores.

Destarte, pode-se dizer que a religião cumpre um papel dentro do capitalismo: o que antes era o meio de se chegar a Deus (a disciplina, a racionalização e a objetividade, uma vida regrada e entregue ao trabalho, a persecução do lucro), torna-se seu próprio fim. A esse respeito, diz-nos Weber (2013, pp. 72-73) que “o sistema capitalista precisa dessa devoção à vocação para fazer dinheiro [...]. De fato, [essa visão de mundo] não precisa mais do apoio de nenhuma força religiosa [...]”.

A palavras de Weber, escritas há mais de um século em seu ensaio sobre as raízes do capitalismo, atualizam-se com assombrosa precisão no Brasil hodierno, cuja massa de trabalhadores empobrecidos ainda é uma nefasta realidade – contingente que, quanto mais pobre, mais é adepto do protestantismo moderno, ou neopentecostalismo8. É nas periferias das cidades brasileiras que essa população habita. Fruto dos conflitos de classe da sociedade burguesa, são nelas onde mais frequentemente se revelam as contradições do capitalismo; e é ali que se espraiam, ocupando a ausência do Estado, as igrejas neopentecostais, como centros de acolhimento de sujeitos objetificados e expropriados de seus direitos pelo capital (AMARAL, 2021), que orienta a própria ação estatal no neoliberalismo vigente.

É neste sentido que Spyer (2020, p. 37) observa que “a igreja evangélica leva para os moradores das periferias aquilo que não chega pelos serviços do Estado”, o que explicaria “em grande parte o motivo do crescimento acelerado das organizações evangélicas” que, por meio de suas igrejas, promovem redes de ajuda mútua e convívio entre sujeitos. Afetados pelo movimento destrutivo do capital que (des)organiza a vida na urbe, tais sujeitos, em seu desamparo e desalento, são eficazmente interpelados pelo discurso do capital, involucrado, contudo, no discurso religioso.

Por isso, pergunta-se: por que o discurso religioso, refletindo o discurso deletério do capital, refrata-se e chega de forma oblíqua, mas eficaz, aos sujeitos? Uma resposta possível é a de que a sua própria pretensão de transparência da linguagem não revele sua verdadeira natureza aos sujeitos, que, impedidos de percebê-la, aceitam-na. No entanto, aventamos a possibilidade de que há este discurso é opaco e que os sujeitos, imersos nas regras impostas pelo capitalismo, veem no próprio discurso religioso a possibilidade de obter amparo emocional e espiritual para se tornarem bem-sucedidos numa sociedade que continuamente os explora.

Como atesta Spyer (2020), tal interpelação-sujeição se deve à promessa de inclusão promovida pela teologia da prosperidade, produzindo efeitos de pertencimento e de ascensão social via educação e consumo, o que cria um simulacro de liberdade e “salvação” para os sujeitos desamparados. Ora, dirá o autor, é inconteste que entrar para a igreja evangélica, no contexto da periferia urbana, melhora as condições de vida dos brasileiros pobres:

 

As causas materiais que transformam a vida dos fiéis são simples. Elas incluem, entre outras: fim do alcoolismo e consequentemente da violência doméstica, fortalecimento da autoestima, da disciplina para o trabalho e aumento do investimento familiar em educação e nos cuidados com a saúde. Esse conjunto de mudanças geralmente conduz à ascensão socioeconômica. Esse fenômeno é importante, considerando o problema representado pela desigualdade no Brasil [...]. (SPYER, 2020, p. 23). Grifos nossos.

               

O neopentecostalismo que aqui se analisa aparece, inicialmente, nos Estados Unidos, em meados do século XX, chegando ao Brasil pouco depois (SPYER, 2020). Tendo se desenvolvido a partir dos caminhos abertos pela referência moral e pelas práticas do pentecostalismo (ou da “ética protestante” da qual falava Weber), esse movimento funde a ideia do culto exuberante, emocional, dinâmico e interativo com uma lógica meritocrática explícita e de busca do sucesso material. Professam, assim, a chamada “teologia da prosperidade”. Diferente da ética clássica protestante, na qual o fiel melhora de vida, do ponto de vista econômico, por uma conduta metódica no trabalho, para o neopentecostal a própria conversão e a adoção da prática religiosa já são motivos para que a/o fiel seja recompensada/o por Deus pela via da ascensão financeira.

As/os fiéis são, assim, estimuladas/os a atuar de maneira empreendedora para enfrentar as adversidades, a serem “patrões”. Nessa lógica, o discurso religioso cristão tende a ver as dificuldades como ocasionadas não pela estrutura que organiza coletivamente a sociedade, mas como advindas da falta de esforço individual. Tal visão empreendedora aparece no discurso que promete a melhora de vida das/os convertidas/os, assim como na prática de gerir a igreja como uma empresa. O discurso da positividade, motivacional, serve tanto às/aos fiéis quanto àquelas/àqueles que trabalham na igreja-empresa. Serve de motivação necessária a sujeitos que estão desamparados em suas condições concretas de existência.

A práxis capitalista deste discurso continua não apenas na (auto)gestão de si mesma/o ou da igreja. Funcionando segundo a ótica da acumulação de riqueza, estando, assim, circunscrita à formação ideológica do capital (AMARAL, 2007), o discurso religioso, sobretudo o neopentecostal, concebe que a acumulação de bens materiais é uma bênção, é o desejo de Deus; a fé, aguçada pelo discurso da positividade religiosa, estimula as doações dos sujeitos para os ministérios cristãos, crédulos de também serem beneficiados, ainda que posteriormente, com o aumento da riqueza material da própria igreja.

A teologia da prosperidade é compreendida, assim, como um sustentáculo ideológico poderoso na interpelação de sujeitos tornados fiéis. As massas de trabalhadoras/es empobrecidas/os são despossuídas e muito numerosas, o que é, do ponto de vista eleitoral, muito interessante para a conquista do poder estatal. Abandonadas pelo Estado neoliberal, tais massas, porque são fomentadas a serem fervorosamente crédulas, tendencialmente hão de seguir quem lhes confere algum sentido de conforto material. Não é à toa que a eleição geral de 2018, no Brasil, deu-se em bases muito fortemente assentadas por valores neopentecostais, catapultando ao poder um candidato que se utilizava de discursos religiosos assentado no viés autoritário-fascista que viemos analisando até então.

 

3. O discurso religioso neopentecostal e sua apropriação pelo discurso fascista

Neste momento da análise, em que se discorrerá sobre como o discurso religioso de cunho neopentecostal constitui a base do discurso fascista brasileiro, faz-se mister que voltemos aos elementos linguísticos da sequência discursiva de referência adotada neste trabalho: “Deus”, “pátria” e “família”. Outros dizeres associados são de relevo para a análise aqui empreendida, tal é o caso de “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, slogan presidencial da campanha de 2018, que será uma sequência discursiva a ser apreciada, classificada como SD 2.

Para fins de análise, dividamo-la como duas sequências discursivas distintas que não só orbitam a SDr, mas que se mostram derivadas de uma sequência retirada do Manifesto de 7 outubro de 1932, como apresentada na abertura da seção 2 deste artigo, e que, aqui, será tomada como a SD 1.

 

SDr – Deus, pátria, família

SD 1 – Uma só superioridade que existe acima dos homens

SD 2 – Brasil acima de tudo, Deus acima de todos

SD 2.1 – Brasil acima de tudo

              SD 2.2 – Deus acima de todos

 

Do ponto de vista estrutural, o advérbio “acima” é utilizado em ambas as sequências discursivas; “uma só superioridade” é perífrase para o elemento “Deus” da SD 2.2, assim como “todos” sintetiza a locução prepositiva “dos homens” da primeira sequência discursiva. De resto, o advérbio “só” ainda cria um nexo entre o Deus cristão que tanto o discurso integralista e o presidente de extrema direita compartilham como único, excluindo, assim, as/os demais deusas e deuses de religiões não cristãs.

  O paralelismo linguístico é praticamente mantido em ambos os enunciados, com pequenas alterações sintáticas que não mudam substancialmente a semântica: há a presença de sujeito (“uma só superioridade”/“Deus”); de oração subordinada adjetiva9 (“que existe acima dos homens”, no caso da SD 1), indicando a ideia de uma só superioridade existente; e de verbo elíptico (“Deus” está, ou, alternativamente, existe), no caso da SD 2.2 – recuperando, por seu turno, a própria ideia de existência. Por fim, tem-se a paráfrase dos adjuntos adverbiais de lugar “acima dos homens” (SD 1)/“acima de todos” (SD 2.2).

Não é apenas a similaridade estrutural que nos interessa na análise das sequências parafraseadas. Também, e primordialmente, os sentidos engendrados e seus efeitos são de maior interesse. Analise-se, por exemplo, a SD 2.2, “Deus acima de todos”: esta sequência produz um sentido muito próximo daquele engendrado pela SD 1, a saber, a da existência de uma entidade sobrenatural e superpoderosa que, exatamente por ser super, está localizada numa posição superior a nós, mortais. O advérbio de lugar “acima” é a garantia linguística do engendramento discursivo deste sentido. Há, portanto, uma relação vertical de A para B10, o que revela a existência de uma prática antidialógica na relação entre ambos, em que A manda e B acata e obedece ao que se lhe impõe: “uma só superioridade” ou “Deus” estaria em posição de A nesta aludida relação, enquanto os homens/todos ocupam a posição mais abaixo desta verticalidade, qual seja, a que aqui se representa como B.

Conforme o raciocínio de Orlandi (2006), analise-se, ademais, um dos elementos discursivos oriundos da SDr: “família”. Quando se enuncia tal palavra, ela significa “também pela memória de que ela está impregnada que, muitas vezes, desconhecemos”. Destarte, “família” integralista, a de sentido mononuclear, comunica-se de alguma forma com a família que agora se retoma como modelo no governo hodierno. O apego a este sentido de “família” também se funde ao neopentecostalismo crescente no Brasil, que geralmente exclui possibilidades familiares diversas. Assim, vemos que “família” se parafraseia significando o mesmo, já-carregada de sentidos que atravessaram as décadas.

No entanto, há a possibilidade de ruptura deste discurso dominante: os sentidos e seus efeitos são negociados, partilhados, e se atrelam, também, às condições de produção do discurso. É por este motivo que sustentamos que, no discurso fascista brasileiro atual, há pontos de resistência à memória integralista trazida interdiscursivamente e intentada ser imposta como se nos anos 1930 estivéssemos. Exemplo desta resistência é a própria configuração da família brasileira hodierna, multifacetada e compreendida, inclusive juridicamente, como assentada no afeto, e não meramente definida pela biologia ou pelo casamento heterossexual. Assim, o Direito, como instituição que é, sedimenta e institucionaliza certos sentidos de “família” (ORLANDI, 2006) que, hoje, abarcam mais do que o conceito monossêmico da religião cristã mais ortodoxa. Disputar, pois, um determinado sentido de “família”, que por sua vez está circunscrito a um sentido muito restritivo de “Deus”, é tarefa discursiva que se dá com percalços e conflitos.

A análise até aqui empreendida se voltou aos sentidos de “Deus” e “família” construídos pela extrema direita brasileira, circulantes tanto à época do integralismo quanto na contemporaneidade. E é nela que se percebe que a dominância destes sentidos é devida, principalmente, à expansão do neopentecostalismo no Brasil, que, por sua vez, acompanha a consolidação e a amplificação do discurso dominante do mercado. É interessante observar que o segmento social evangélico passa a ser mais bem representado a partir do aprofundamento dos discursos da racionalidade mercadológica que se expandiu no contexto brasileiro, especialmente a partir do golpe de 201611.

Um dos que apoiaram com veemência o golpe foi o então deputado federal Jair Bolsonaro, cuja “plataforma eleitoral” de exposição polêmica e permanente na mídia se tornou um projeto político em contínua construção, o que culminaria em sua vitória no pleito para presidente. Como aponta Piovezani (2020), “a polêmica, a agressividade e a grosseria tornaram-se cálculo eleitoral e marketing político”. Bons frutos dessa estratégia adviriam do discurso religioso, atravessado por preconceitos e notícias mentirosas, como a de que haveria, por parte de grupos políticos de esquerda, a distribuição de supostos “kit gays” que “ensinariam crianças a serem homossexuais”. Utilizar-se do discurso religioso para validar preconceitos e, ao mesmo tempo, afastar-se dos reais problemas da sociedade: eis um estratagema perverso, mas muito eficaz, para chancelar a culpa das dificuldades dos homens na moralidade de cunho religioso, nunca no capitalismo que produz tais adversidades.

O autoritarismo e a monossemia, compartilhados pelos que confessam um credo cristão, pode se refletir no e como um discurso político. A política institucional e o Estado, que supostamente deveriam dar guarida a todas e a todos sem preconceito de credo, raça, sexo etc., como preconiza o famoso artigo 5º da Constituição Federal12, são capturados pelos que transitam no poder porque temporariamente detêm o poderio da comunicação com o povo. Isto significa dizer que, no caso de nossa contemporaneidade, chegou-se ao povo13 justamente porque, como são porta-vozes do discurso hegemônico do capital, e que foram por ele chancelados, os grupos de extrema direita se fazem passar como porta-voz não do mercado, mas do povo mesmo, espoliados em sua mais-valia. Para isso, valem-se de um linguageiro dito popular, que aproxima o líder carismático da população, por ser autêntico, por “falar errado”, por ser truculento, mas falar por “Deus”, pela “pátria” e pela “família”. Um discurso pouco democrático, de veia autoritária e fascista, emergido do “baixo clero”14 político nacional e elevado à esfera de poder do Estado. Um discurso fascista de traços religiosos que assim aparece numa tentativa de homogeneizar sentidos e sujeitos (ORLANDI, 1996), e, uma vez capturado pelo discurso político de fato, entra em conflito com a própria noção de democracia e seu pluralismo de vozes e sentidos.

Sustentou-se, ao longo deste artigo, que o discurso religioso serve de base e/ou é capturado pelo discurso fascista. Mas por que o categorizamos assim? Há um conjunto de elementos que classificam tal discurso como produtor de sentidos fascistas, que procuram homogeneizar a sociedade, como se viu com os sentidos de “Deus” e “família”, ou que pretendem eliminar os adversários, criminalizar a própria política, marginalizar o diferente – produzir sentidos únicos, em suma. Há uma contradição inerente deste discurso com o preconizado, novamente, pelo artigo 5º da CF, principalmente no que se lê nos seguintes incisos:

 

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

[...]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

[...]

XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas [...]. Grifos nossos.

 

Ora, todas essas prerrogativas parecem estar sendo sistematicamente desrespeitadas em nosso tempo histórico. Com um presidente e seu séquito que se dizem armamentistas para “garantir a liberdade do Brasil”, pois “só um povo armado é um povo livre”15; que preconizam e normalizam “fuzilar” o adversário político16; que atacam as instituições estabelecidas em nome de um vago patriotismo, um sentido de “pátria” que só funciona para os seguidores do presidente17; dos preconceitos impetrados contra minorias, como já se analisou anteriormente; são todos, em suma, motivos suficientes para classificarmos o conjunto desses enunciados como sendo partes constituintes de um mesmo discurso autoritário e, mais ainda, fascista, pois que funciona à lógica da “linguagem fascista” analisada por Piovezani (2020).

Qual é esta lógica? O autor dirá que é a de reduzir tudo que chega aos ouvintes de forma simplista, não permitindo a formulação de qualquer pensamento crítico. A lógica desta linguagem é a de promover usos linguísticos que operem com expressões de escárnio e desprezo, mas também de horror e medo angustiado ante a diferença, que precisa ser repudiada com repulsa e chacota, com ódio, violência e extermínio. É destituir o poder da linguagem de comunicar para redirecioná-la no sentido de despertar um sentimento instintivo de antagonismo permanente e de animosidade tribal. E é dizer todo esse conteúdo como forma de enaltecer, portanto, sua tribo, sua “pátria”; é reafirmar um nacionalismo exacerbado, monolítico e nostálgico, logo ilusório, porque pátria é construção realizada a diário e coletivamente.

Reforçando esta linguagem, os fascistas de hoje espelham-se nos de outrora. Piovezani e Gentile (2020) analisam que Hitler, em seus discursos às massas alemãs, estabelecia e reforçava o que seria sua estreita relação com Deus, como num pronunciamento feito em junho de 1937, no qual afirmou: “A Providência nos conduz, agimos conforme a vontade do Onipotente. Ninguém pode fazer a história dos povos do mundo se não contar com a benção da Providência Divina” (PIOVEZANI, GENTILE, 2020, p. 17). Como se vê, o que para Hitler era a “Providência Divina” abençoando e conduzindo a Alemanha nazista na “história dos povos do mundo”, para os integralistas brasileiros “Deus dirigia o destino dos povos”, o que logo retornaria, para a atualidade em que estamos, como o mote “Deus acima de tudo”. A produção de um efeito de sentido religioso é, pois, muito caro ao discurso fascista.

O mesmo pode ser dito na análise de Mussolini. Klemperer (2009) faz um relato de quando acompanhou a promoção de um filme pelo Partido Fascista italiano em que se mostrava o pronunciamento do Duce italiano, com quem Plínio Salgado se encontrara, no aniversário de dez anos do partido no comando da Itália. As impressões do desempenho do orador e da oratória empregada para se endereçar às massas, entende Klemperer (2009), aproximam-no da ritualística religiosa católica, especialmente na forma, ou espetáculo, com a tradição simbólico e imagética do Vaticano em que o Papa, em sua varanda acima da Praça de São Pedro, fala às/aos fiéis. Assim é descrita essa cena fílmica cujas estrelas são o povo e o líder do fascismo italiano:

 

Mussolini discursa do alto do balcão do palácio de Nápoles para a multidão espalhada no chão; imagens do povo e grandes imagens do orador se alternam, apresentando as palavras de Mussolini e a aclamação da multidão à qual se dirige. [...] A exaltação do pregador aparece no tom de voz ritual eclesiástico, lançando frases curtas, como fragmentos litúrgicos, diante das quais obtém reações emocionadas de todos, sem qualquer esforço mental, mesmo que não captem o sentido das palavras, ou justamente por não terem capacidade para captá-lo. (KLEMPERER, 2009, pp. 384-385). Grifo nosso.

 

Nota-se, assim, que o fascismo se aproxima em conteúdo, mas, principalmente, em forma, da mimesis da religião. Captura-a em seus rituais e reproduz palavras eivadas de sentido para arregimentar multidões. Interpela indivíduos e torna-os sujeitos, dando-lhes sentidos de pertencimento, alimentando-os constantemente na voracidade dos afetos animosos – mas, incapacitado de devolver algo de valor real aos homens, porque destroem até mesmo as bases do capitalismo (as instituições jurídicas, bancárias, industriais etc.) que permitiram seu surgimento, é preciso alimentá-los com e somente de ilusões – de mitos18.

Um deles, que une tanto à necessidade de pertença dos homens como à utilidade de massas manipuladas por um regime desta natureza, é o mito da nação. O da Alemanha como grande nação que fundava o Terceiro Reich; o da Itália como herdeira da glória da Roma Antiga; o do “pátria”, ou o do “Brasil acima de tudo”, como representado pela SD 2.1. Uma vez mais recorrendo a Piovezani (2020, p. 144), percebe-se que esta formulação “constrói o efeito de um grito patriótico que arremata todo o nacionalismo” em um discurso, uma “declaração de amor e o grito de guerra [que dispensam] de concluir seu texto com um argumento. Em seu lugar, vêm vagueza semântica, emoções e frases lapidares, que substituem a elaboração de raciocínios”. Um “grito patriótico”, enfim, que encarna um ato prototípico da linguagem fascista, construindo uma identidade imaginária junto aos sujeitos interpelados, identidade tão fanática quanto autoritária e antidialógica e, por isso, fechada à pluralidade democrática.

À guisa de conclusão, é de destaque a reflexão feita por Indursky (2019) no que concerne ao discurso fascista do presidente Bolsonaro. É possível observar nele um processo de identificação com uma posição-sujeito fascista, o qual se torna mais evidente, para além dos impropérios anteriormente levantados, na explícita homenagem à ditadura militar e ao torturador Ustra no voto que deu a favor do golpe em Dilma Rousseff:

 

SD 3 – Pela família, pela inocência das crianças na sala de aula, que o PT nunca teve [sic], contra o comunismo, pela nossa liberdade, pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, eu voto sim!

 

Perceba-se, assim, que a memória, acionada e enunciada no voto acima, resgata o lema integralista, ademais de exaltar o exército e sua ditadura, em seu simulacro de “marcha pela liberdade com Deus pela família”19, culminando, por fim, no totalitarismo da SD 2: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Um mito divino, um mito patriótico, mitos proferidos pela boca do próprio “mito”20, como os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro o chamam. Mitos que, Freda Indursky (2019) nos relembra, estão na memória discursiva: de forma consciente ou não, o slogan representado pela SD 2 resgata, pelo interdiscurso, a divisa da Alemanha nazista Deuchtsland uber alles, que se traduz como “Alemanha acima de tudo”.

A filiação ao fascismo se verifica, portanto, pela investigação histórica, pela análise discursiva, pela observância dos efeitos de sentidos que são construídos a partir da posição de quem enuncia e das circunstâncias da sua enunciação. É fruto, assim, da análise dos sentidos do discurso religioso que engendra sentidos de amparo, mas também de desamparo; que operam pela fraternidade, mas que, no Brasil de hoje, promovem a ideia de um Deus punitivista e desagregador, que orienta como único amparo possível o fortalecimento do sujeito pela via do capital, e não do social. Sentidos que se disputam, que se consolidam como hegemônicos, e que são combatidos por quem deles discordam – por quem trata de fazer da paráfrase dominante exercício polissêmico, que neste caso significa mesmo dizer exercício de resistência.

 

Considerações finais

Ao longo deste trabalho, ao tecermos observações sobre os sentidos que o discurso religioso vai adquirindo uma vez apropriado por grupos autoritários, parece-nos razoável apontar que a fé é usada para silenciar o contraditório – e, especialmente, para justificar a exploração interna do capital numa nação.

É possível perceber que alguns elementos do discurso religioso são apropriados pelo discurso de um fascismo incipiente, atualizado no século XXI: por exemplo, o mito de Deus passa, frequentemente, ao mito da nação gloriosa, mitificada (como nos indicam os clamores “USA, USA, USA”, por parte dos apoiadores de Donald Trump, nos EUA, e no slogan “Brasil acima de tudo”, de sua contraparte brasileira). Este mito e essa glória funcionam tal qual o sentido de um Deus que, onisciente, onipotente e onipresente, não pode ser questionado, o que justifica, para parte de seus apoiadores, o efeito de sentido que arquiteta a lógica de que “Bolsonaro é ungido por Deus”, que por si só é representante da nação mítica cristã que está por trás de seu slogan de campanha – e merece, portanto, a alcunha de “mito”.

Esse “valor supremo”, seja Deus ou a pátria mitificada, ignora as contradições materiais de ordem econômica, escondendo-as, e faz com que a fé seja apenas o veículo eleitoral do representante religioso no político, num espectro mais amplo, ou apenas o veículo de sucesso individual do sujeito, no espectro mais singular. A fé é, destarte, obstada de ser compreendida em um sentido coletivo, humanitário, direcionado para trabalhos sociais, de caridade e de solidariedade, práticas engendradas pelo discurso religioso cristão pregresso. No entanto, observa-se que este discurso vem se transmutando, longa e gradativamente, desde o protestantismo histórico à organização racional do mundo capitalista, chegando às formas da teologia da prosperidade atual. O discurso fraterno e solidário dá lugar ao discurso motivacional, empreendedor e meritocrático. E a exposição da forma em lugar do conteúdo, da imagem debordiana para simular valores religiosos, é um ponto central na maneira como esse discurso circula e vem interpelando, crescente e vertiginosamente, grande número de sujeitos na sociedade capitalista hodierna, especialmente no Brasil. Em vista disso, a fé se traduz como espetáculo, sobretudo nos cultos evangélicos: o espetáculo de bençãos, cantorias, exorcismos, coaching etc., que lidam com o efêmero e com a satisfação hedonista em vez do fatigante e árduo trabalho que levaria às transformações reais nas condições materiais dos sujeitos.

Ao mesmo tempo, é importante salientar que tal fé ardorosa surge como consequência natural do capitalismo em sua fase mais recente. As periferias, sem Estado e sem políticas públicas, foram tomadas por igrejas que dão senso de pertencimento às pessoas e, de alguma forma, ajudam-nas a manter a vida em ordem, seja contra o alcoolismo, contra as drogas, ou ainda contra a violência doméstica, orientando-as para uma melhor vida material e para a retidão moral. Isso já é demonstrativo do quanto as igrejas neopentecostais contribuem para que os sujeitos se percebam como pertencentes a algo, já que o Estado neoliberal as abandonou.

O Brasil vem passando por transformações significativas neste início de século. Uma delas é a tendência de que a sociedade brasileira será composta por maioria evangélica já a partir da próxima década21. Esse contingente populacional precisa ser compreendido para que seja bem representado politicamente, sem que a laicidade do Estado seja ferida e sem que a perseguição a grupos minoritários22, uma característica do fascismo de todos os tempos, seja promovida.

Se o discurso religioso tem bastante recepção social e se seus representantes atuais se inscrevem numa formação discursiva fascista, talvez seja um decurso lógico o apoio a eles. No entanto, é nosso dever cidadão o de apontar os crimes e os perigos de uma conjuntura autoritária. Como afirma Pêcheux (2014), é necessário “ousar se revoltar” contra o obscurantismo iminente que nos ronda numa sociedade dita democrática.

Como tentamos deixar explícito ao longo deste artigo, a problemática não é a existência das igrejas em si, ou mesmo seus credos e dogmas, mas a maneira pela qual o discurso religioso é apropriado, em sua forma, pelos fascistas contemporâneos no próprio seio do Estado. Fascistas que pretendem erodir o Estado e promover agitação, como os fascistas de outrora; fascistas do século XXI que, deparados com as garantias do Estado Democrático de Direito, tentam rasgar o tecido social com o fito de atacar o próprio Estado. Aos poucos, dele se apropriam; com resistência, o pouco do que temos de democracia sobrevive.

Fascistas rompem com quaisquer democracias, com a diversidade, inclusive a de credo, com a própria existência e a dignidade humanas. Há pessoas que, em seus discursos (o que significa dizer em sua práxis), pregam pela tortura e pelo autoritarismo, utilizando-se como justificava para estes crimes a crença em um Deus de sentido monossêmico – o mesmo Deus dos integralistas. O Deus punitivista. O Deus totalitário.

Nosso dever cívico, mais do que clamar uma nação mitificada e um Deus onipontente, é o de dizer: o discurso religioso não é isso. Ele se manifesta de diversas formas porque diversas são as interpretações de Deus, de pátria, de família. O Brasil é plural e não comporta fascismos de quaisquer espécies, seja em sua forma clássica, como no integralismo, seja na tentativa de sua atualização, como se observa no período hodierno. Na tarefa de analisar a emergência de um fascismo intentado, e justamente pela sua necessária e urgente supressão, venceremos.

 

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Data de Recebimento: 03/07/2022
Data de Aprovação: 22/08/2022


1  Jornalista e escritor, filho de um coronel e farmacêutico com uma professora primária, foi o principal expoente do maior movimento de extrema direita do Brasil, o Integralismo, conforme apontam Gonçalves e Neto (2020).

2  A palavra italiana “fascio” se refere a um feixe e seria usada por Benito Mussolini, líder dos fascistas italianas, para representar a união do povo italiano em torno do partido fascista do qual era líder. Este sentido metafórico empregado por Mussolini, bastante aceito na Itália das décadas de 1920-1930, conduzi-lo-ia ao totalitarismo que marcou seu governo. De modo correlato, é possível sustentar que certos segmentos religiosos, que pregam uma famigerada união em torno um único Deus e contra um mal genérico ou inimigo a ser combatido, também demonstram sua natureza totalitária, ao não aceitar outros credos ou práticas fora de sua estrita dogmática religiosa.

3  Em suas obras, Paulo Freire traz reflexões sobre o slogan como uma máxima que cria símbolos simplistas de uma realidade complexa e que, exatamente por isso, possuem grande poder persuasivo e de engajamento das massas. Não à toa, os fascistas aqui analisados valem-se de slogans para interpelar os indivíduos.

4  “[...] o comunismo trama contra todos. [Ele] destrói a família para melhor escravizar o operário ao Estado; destrói a personalidade humana para melhor escravizar o homem à coletividade; destrói a religião para melhor escravizar o ser humano aos instintos; destrói a iniciativa de cada um, mata o estímulo, sacrifica uma humanidade inteira, por um sonho, falsamente científico, que promete realizar o mais breve possível, isto é, daqui a 200 anos, no mínimo”. Manifesto de 7 de outubro de 1932 da AIB. Disponível em: https://integralismo.org.br/manifesto-de-7-de-outubro-de-1932/.

5  Na obra “O Fascismo em camisas verdes”, os historiadores Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto tecem observações sobre a aproximação ideológica do líder dos fascistas brasileiros, Plínio Salgado, com Mussolini, e relatam, inclusive, o encontro ocorrido entre ambos: “1930. Palácio Venezia, Roma. Numa tarde de verão, às 18h do dia 14 de junho, após passar o dia conhecendo a capital italiana, Plínio Salgado, futuro líder do camisas-verdes, se viu diante de Benito Mussolini, o grande chefe dos fascistas italianos. Com muita empolgação, dizia estar frente a frente com o gênio criador da política do futuro, o profeta do mundo contemporâneo. [...] Durante os 15 minutos de euforia da comitiva formada por outros intelectuais brasileiros, [...] Plínio Salgado consolidou sua idealização para a formação do integralismo, o maior movimento de extrema direita da história do Brasil” (2020, p. 9).

6  É mister lembrar de que estamos tratando de uma democracia moderna em seu caráter burguês. O perigo de que tratamos não o é para uma democracia numa sociedade socialista ou comunista; porque destrutivo, o fascismo é um perigo até mesmo para o que lhe origina, o capitalismo, sistema que sustenta o que se entende por democracia em suas bases modernas.

7  Percebe-se, aqui, o próprio funcionamento do discurso religioso, que constrói essa imagem de Cristo como “fraterno”, “solidário” e “mártir”. O funcionamento do DR aponta, assim, para efeitos de sentido que promovem a piedade, a compaixão e a comunhão entre as pessoas, na vertente oposta aos efeitos engendrados que focalizam a prática dogmática autoritária. Como preconizado por Orlandi (1996b, p. 260), alguns dos traços marcantes do DR é a utilização de determinadas formas simbólicas, como metáforas, aqui empregada na reconstituição da figura do Cristo crucificado, redimindo a humanidade de seus erros.

8  Dados cruzados, oriundos do último censo do IBGE, realizado em 2010, e da pesquisa Datafolha sobre a religiosidade dos brasileiros, de 2020, revelam o seguinte panorama: de acordo com o IBGE, dentre os grupos que professavam um credo, o que mais concentrava pessoas com faixa de renda de até dois salários mínimos era o dos evangélicos (69,18%); já segundo o Datafolha, o cenário se mostrava mais equilibrado entre evangélicos e católicos, apresentando pouca diferença na faixa de até dois salários. Ainda assim, o segmento evangélico representava 48% da população nessa faixa, enquanto os católicos, 46%. Os dados estão disponíveis no site “Religião e Poder”, plataforma que oferece uma interface da religião no Brasil com as políticas institucionais.

9  Interessante observar que há, além de uma relação de subordinação na estrutura sintática analisada, uma de natureza semântica do sentido produzido: a do homem subordinado a Deus.

10  Conforme Freire (2020a), uma relação vertical de A sobre B, em que A não comunica, mas, sim, faz comunicados a B, representa o antidiálogo. Difere, assim, do diálogo, em que uma relação entre A e B se dá de forma horizontal, permitindo que uma comunicação amorosa e crítica, como entendida pelo patrono da educação brasileira, de fato aconteça.

11  Löwy (2016, p. 64) assim entende o golpe (e não impeachment) na presidenta Dilma: “O que aconteceu com o Brasil, com a destituição da presidente eleita Dilma Rousseff, foi um golpe de Estado. Golpe de Estado pseudolegal, ‘constitucional’, ‘institucional’, parlamentar ou o que se preferir, mas golpe de Estado”.

12  “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

13  “Massas conquistadas, massas espectadoras, passivas, gregarizadas. Por tudo isto, massas alienadas. É preciso chegar até elas para, pela conquista, mantê-las alienadas. Este chegar até elas [...] não pode transformar-se num ficar com elas. Esta ‘aproximação’ se faz [...] pelos ‘comunicados’, pelos ‘depósitos’ dos mitos indispensáveis à manutenção do status quo” (FREIRE, 2020b, p. 187).

14  Jair Bolsonaro sempre pertenceu ao que se chamava, ironicamente, de “baixo clero” do Congresso Nacional, formado por políticos sem expressão, projetos ou ideias e que atuavam tal qual os religiosos sem notoriedade durante a Idade Média e parte da Era Moderna, vivendo às margens de Roma e deu seus altos cargos. É curioso observar que até esta denominação, muito circulante na mídia política nas eras dos governos democráticos pós-ditadura, revela-se de uma influência eminentemente religiosa.

15  Na infame reunião ministerial de abril de 2020, o presidente fez a seguinte afirmação: “Olha como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Por isso eu quero que o povo se arme, a garantia de que não vai aparecer um filho da [palavrão de baixo calão] e impor uma ditadura aqui”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/22/em-trecho-de-video-de-reuniao-bolsonaro-diz-que-quer-que-o-povo-se-arme.htm?cmpid=copiaecola.

16 Vamos fuzilar a petralhada”, diz Bolsonaro em campanha no Acre. Disponível em: https://exame.com/brasil/vamos-fuzilar-a-petralhada-diz-bolsonaro-em-campanha-no-acre/.

17  Desde que assumiu a presidência, Jair trava uma guerra explícita com instituições diversas, mas principalmente contra o STF. Nos atos golpistas de 7 de setembro de 2021, eram comuns ver cartazes padronizados em que se liam: “FORA STF COM BOLSONARO NO PODER”, um claro apelo autoritário. Para ver mais a respeito, sugere-se a leitura da reportagem da Folha de São Paulo sobre as consequências do golpismo bolsonarista pós-7 de setembro: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/09/o-que-foi-o-7-de-setembro-bolsonarista-cientistas-politicos-apontam-intencoes-do-ato-e-suas-consequencias.shtml.

18  “Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando, cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões. [...] Excluído da órbita das decisões, [...] é comandado pelos meios de publicidade, a tal ponto que em nada confia ou acredita se não ouviu no rádio, na televisão, ou se não leu nos jornais. Daí sua identificação com formas míticas de explicação do mundo. [...] o que se sente, dia a dia, é o homem simples esmagado, convertido em espectador, dirigido pelo poder dos mitos que forças sociais poderosas criam para ele. Mitos que, voltando-se contra ele, o destroem e o aniquilam.” (FREIRE, 2020a, pp. 60-62).

 

19  Pouco antes do Golpe Militar que destituiria o governo de João Goulart, as forças conservadoras nacionais, mais uma vez recorrendo aos sentidos de “Deus” e de “família”, atrelados ao sentido de “liberdade” (para se verem livres de um governo dito “comunista”), promoveram a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que representou o ato final do governo Jango. Em seu voto, o então deputado Bolsonaro aciona a memória deste dizer para engendrar sentidos contrários a um governo como o de Dilma Rousseff.

20  Ainda sobre a questão do “mito”, não poderíamos nos furtar de, mais uma vez, recorrer a Paulo Freire (2020b, p. 189), cuja reflexão a este respeito, feita em 1968, denota impressionante atualidade: “Todos estes mitos e mais outros que o leitor poderá acrescentar, cuja introjeção pelas massas populares oprimidas é básica para sua conquista, são levados a elas pela propaganda bem-organizada, pelos slogans, cujos veículos são sempre os chamados ‘meios de comunicação com as massas’”.

21  O último levantamento da composição demográfica religiosa do Brasil, realizado em 2019 pelo Datafolha, indica que os evangélicos já são 31% da população brasileira, só perdendo para os católicos (51%) na composição dos que professam algum tipo de fé no país. Segundo as projeções do pesquisador demográfico José Eustáquio Alves (2019), responsável pelo estudo, em 2032 o primeiro grupo deve ultrapassar os seguidores da Santa Sé como maioria consolidada da sociedade brasileira.

22  Em um encontro na Paraíba, em fevereiro de 2017, o então candidato à presidência proferiu as palavras que sustentam nossa identificação de que persegue grupos minoritários e, logo, inscreve-se na posição-sujeito fascista: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”. Grifo nosso.