Testemunho e memoriável: frente ao impossível de dizer, uma reinvenção possível
Testimonial and memorable: facing the impossible to say, a possible reinvention
Andréa Rodrigues1
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9091-6108
Luiza Castello Branco2
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6749-5840
Resumo: Esta resenha objetiva apresentar o livro Testemunhos de resistência e revolta – um estudo em Análise do Discurso, escrito por Bethania Mariani. A coletânea de textos traz o testemunho como objeto discursivo, a-bordando nesse gesto noções de sujeito, inconsciente, ideologia, real – questões que insistem em seu percurso teórico-metodológico na Análise de Discurso, atravessada pela Psicanálise. Dessa forma, Mariani tece seu emaranhado de fios pelo modo como seu objeto de estudo funciona em cada textualidade analisada. Ao longo dos oito capítulos, o livro traça um percurso de leituras discursivas do testemunho em diferentes objetos de análise. E o leitor pode acompanhar essa trajetória para seguir refletindo então sobre a noção de testemunho, seus modos de funcionamento, suas relações com o indizível, com o real da história e da língua, com a urgência de certos dizeres, com a resistência e a revolta, entre muitas outras questões que vão surgindo a cada página virada.
Palavras-chave: Testemunho; Resistência; Revolta; Memoriável; Discurso.
Abstract: This review aims to present the book Testimonies of Resistance and Revolt – a study in Discourse Analysis written by Bethania Mariani. The collection of texts brings the testimony as a discursive object, discussing in this gesture notions of subject, unconscious, ideology, real – questions that insist on her theoretical-methodological path in Discourse Analysis, crossed by Psychoanalysis. In this way, Mariani weaves her tangle of threads through the way her object of study works in each analyzed textuality. Throughout the eight chapters, the book traces a path of discursive readings of the testimony in different objects of analysis. And the reader can follow this trajectory to continue reflecting on the notion of testimony, its modes of operation, its relations with the unspeakable, with the real of history and language, with the urgency of certain sayings, with resistance and revolt, among many other questions that arise with each page turned.
Keywords: Testimony; Resistance; Revolt; Memoriable; Discourse.
“[...] enquanto aceitamos ficar cegos pelo fantasma da coerência que nele se mostra, percebemos o que figura no não dito desse texto: os pontos em que ele afronta a contradição, por exemplo, ou seja, também aqueles pontos em que toca aquilo que recalca: seu impossível de dizer.” Alain Lecomte3
“Até hoje eu continuo querendo saber o que dizem as palavras.” Eni Orlandi4
É assim que começamos esse texto, com a certeza da incompletude, da falta no dizer, do esquecimento constitutivo, da contradição histórica que engendra o sujeito de linguagem, em sua forma histórica sujeito – aquela que reveste o indivíduo humano para poder ser agente de uma prática social5. Estamos advertidas de que nosso trabalho de dizer sobre os escritos de Mariani nesse livro não escapa aos caminhos tortos e esburacados da memória e à dificuldade e à fragilidade do equilíbrio das / com as palavras; e que habitam esse nosso texto as impossibilidades da linguagem e os efeitos do ideológico como produção da ilusão de obviedade.
Esse livro6, ou o livrinho7, como a autora o trata quase maternalmente, compreendemos como um modo singular de fazer o relato de si, dar seu testemunho e de significar simbolicamente sua resistência e revolta como sujeito de linguagem e teórica incansável.
Os gestos de análise que aqui se apresentam “não são definitivos, mas [...] permitiram avançar um pouco mais para abrir novos campos de questões” (MARIANI, 2021, p. 24).
A coletânea de escritos que dão corpo ao livro traz o testemunho como objeto discursivo, abordando nesse gesto noções de sujeito, inconsciente, ideologia, real – questões que insistem em seu percurso teórico-metodológico na Análise de Discurso, atravessada pela Psicanálise. Como Mariani nos adverte, para estar nessa teoria é preciso não esquecer da eficácia do funcionamento do imaginário de uma ciência régia e de um objeto estável, posto que o discurso enquanto objeto teórico é construído no entremeio de outras teorias como a linguística, o materialismo e a psicanálise, três campos de conhecimento cujos objetos são heterogeneamente irredutíveis – a língua, a história, o inconsciente. E justamente por isso, por serem litorais (Lacan8), são “terrenos de encontros problemáticos” (PÊCHEUX, 2016 [1980], p. 18).
Dessa forma, Mariani tece seu emaranhado de fios pelo modo como seu objeto de estudo - testemunho – funciona em cada textualidade analisada. Discute sobre a fragilidade do imaginário em relação aos encontros com o real; formula sobre a especificidade dos discursos de testemunho colocando em perspectivas suas ordens heterogêneas: a da historicidade de certos acontecimentos em relação com a da singularidade do sujeito. Ao formular discursivamente sobre testemunho, nos ilumina sobre o impossível de ser dito, sobre a impotência das palavras, o tropeço no real da língua para significar a impossibilidade de significar o inabordável (por exemplo, em relação à barbárie vivida em Primo Levi (1988) – aniquilação pessoal/destituição subjetiva).
Mariani formula sobre testemunho como um furo na linguagem, como a luta contra a impotência das palavras, contra a desintegração do humano, que tenta dar uma forma, um contorno ao caos. A autora compreende testemunho como a dimensão do indizível, do impossível de dizer, formulações apresentadas a partir de suas análises do material apresentado em seus “ensaios que recortam o testemunho como temática [...] testemunhos de enfrentamento com o real da língua, da história, e do inconsciente” (p.18).
O sumário nos convida a uma viagem por um horizonte plural de materialidades em relação discursiva – vamos dos testemunhos de perda e luto com Machado e com Dostoievski às cruzes nas areias da praia de Copacabana, aos documentários e vídeos em que o sujeito migrante se compreende num entremeio linguageiro e num desencontro com sua língua materna. Nas palavras de Mariani,
Nos diferentes testemunhos, o que me interessa está no esquecimento, no que falha, no que não se consegue dizer. Mal-estar diante do Outro – Estado, família, instituições –, que produz o funcionamento de um testemunho de algo que não se fecha. No testemunho fala-se do mal-estar e do desamparo em que se encontra o sujeito após o encontro com o real do acontecimento. (MARIANI, 2021, p. 72)
Ao longo dos oito capítulos, o livro traça um percurso de leituras discursivas do testemunho em diferentes objetos de análise. E o leitor pode acompanhar essa trajetória para seguir refletindo então sobre a noção de testemunho, seus modos de funcionamento, suas relações com o indizível, com o real da história e da língua, com a urgência de certos dizeres, com a resistência e a revolta, entre muitas outras questões que vão surgindo a cada página virada.
Em seu capítulo inicial, intitulado “Escrevendo perda e luto em Esaú e Jacó”, Mariani nos narra sobre suas reflexões em relação à noção de testemunho, iniciando por escrever sobre perda e luto. A autora constrói seu percurso teórico de formulação compreendendo o modo como pequenos acontecimentos que produziram deslizamentos de sentidos em sua prática existencial desestabilizaram e equivocaram certezas imaginárias. Era preciso, segundo ela, “escrever algo possível sobre o impossível que insistia não sendo de outro modo” (p. 26).
Nesse texto, ela nos faz saber da relação de atravessamento-imbricamento entre as questões pessoais – que a moveram nesse início do percurso teórico sobre testemunho – e as questões teóricas discursiva e psicanalítica9, que a fizeram pensar produtivamente sobre perda e luto. Seu material de análise para essa experimentação vai ser buscado na literatura machadiana, o romance Esaú e Jacó.
Mariani apresenta-nos a questão da perda e do luto em Esaú e Jacó para iniciar sua formulação teórica sobre testemunho, compreendendo-o como um lugar para ajudar a pensar o luto no espaço da clínica analítica. Em sua leitura, nos diz que escrever sobre o luto compreende “poder dizer da experiência do luto no sujeito como a elaboração (possível) de um momento fugaz, fugidio, um clique, momento em que se reconfigura não mais a radicalidade de uma perda, mas a perda em sua espantosa radicalidade de movência, movimento em direção a um significante novo” (p. 36).
O texto seguinte, “Testemunho, acontecimento e esquecimento: shoá, alienação parental e outros casos”, teve sua primeira apresentação em 2014. Desde então, passou por reflexões com pares, releituras, reescrituras e apresenta avanços em relação à sua primeira versão.
Consideramos esse um texto denso, não só pelas diferentes textualidades em análise – o texto analisa recortes de dois livros, uma entrevista, um filme documentário, e um enunciado que circulou no Facebook –, mas também pelas complexas noções que mobiliza – como real da língua, real da história, real do inconsciente –, que vão fazer avançar suas formulações sobre testemunho e memoriável, e as noções outras daí consequentes.
Divide-se então em cinco partes: uma seção dedicada a pontuações teóricas em torno do real da língua; uma segunda seção em que Mariani antecipa que testemunho será pensado “na dimensão de um furo na linguagem” (p. 41) e traz o início da análise dos relatos de Primo Levi – vítima e sobrevivente de um campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial – e de Rigoberta Menchú – vítima e sobrevivente do extermínio de parte de população indígena da Guatemala; uma terceira seção em que analisa um enunciado que circulou no Facebook no qual trabalha as noções de memória e esquecimento para formular sobre memoriável. Assim a autora nos diz, “Falar das lembranças, do memoriável é deparar-se também com o esquecimento, logo, com o real que sinaliza no campo da fala e da linguagem a impotência das palavras e um indizível na/da apreensão dos objetos.” (p. 49); uma quarta seção em que retorna à análise de recortes dos relatos de Primo Levi e Rigoberta Menchú para avançar em sua reflexão sobre testemunho. Mariani observa, “[...] A questão está em Outro lugar: Freud e Lacan nos ensinam que a verdade é da ordem do inconsciente, é da ordem de um saber e só pode ser semidita. Tudo não se diz. E algo se transmite, se alguém ouvir.” (p. 52); e uma quinta seção em que estende sua reflexão sobre testemunho analisando recortes do documentário A morte inventada (2009), dirigido e roteirizado por Alan Minas, em que toma “como base o que haveria de real nos testemunhos que pais e filhos dão ao longo do filme sobre a separação que viveram e que deixou marcas em suas vidas”, ou mais especificamente, sobre “o afastamento provocado pelas mães após o divórcio” (p. 55; 57).
No terceiro capítulo, que se intitula Fora do lugar: sujeito, línguas, cidades, Mariani analisa a narrativa autobiográfica Fora do lugar, de Edward Said, e observa que ela pode ser tomada como o testemunho de um processo de subjetivação. Para tal análise, a autora retoma o debate sobre a teoria da subjetividade em Lacan (1985; 1999), e discute também de que modo Pêcheux (1988 [1975]) a insere no quadro da Análise do Discurso.
Em seu livro, Said nos fala de impasses vividos na infância e na adolescência, “ao mesmo tempo em que rememora esse ‘fora do lugar’ na incompreensão diante das transformações sociopolíticas pelas quais cidades, países, populações e ele próprio precisaram passar” (p. 70). Diferentemente de algumas outras textualidades analisadas por Mariani ao longo de seu livro, o texto de Edward Said não traz a urgência em denunciar violências sofridas, mas faz menção a uma “necessidade de narrar” (p. 75). A autora observa que o contato com línguas e culturas diferentes nos países em que Said transita/transitou traz para o autor a necessidade de “desaprender” (p. 75). E destaca, abordando a questão do testemunho, “o ‘fora do lugar’ como testemunho da ilusão do sujeito, desse estranhamento que se tem com a não coincidência do sujeito consigo mesmo nesse movimento de uma vida” (p. 70).
O quarto capítulo traz o texto “Ainda sobre testemunho, ainda sobre as noções de sujeito. Uma escuta discursiva para Memórias do subsolo”, em que Mariani continua na sua formulação sobre a noção de testemunho, apresentando sua reflexão sobre as noções de sujeito. Tema este que lhe é caro e a que já dedica anos de pesquisa, pois coloca em relação dois campos de trabalho: Análise de Discurso e Psicanálise.
Tomando para análise a novela de Fiodor Dostoievski Memórias do subsolo, Mariani teoriza sobre como a noção de testemunho desloca-se na Análise de Discurso e na Psicanálise. E isso tem a ver com o tipo de escuta. E formula sobre a noção, apontando o “Testemunho como da ordem da singularidade do memoriável, ou seja, como um falar urgente que se impõe aos esquecimentos que a historicidade, em suas violentas disputas e alternâncias de poder, vai tecendo” (p. 84). A autora, ainda, observa finamente que “há um indizível no memoriável, que não se confunde com o impossível de dizer do real da língua” (p. 85). E conclui, após a análise da novela, que “o valor do testemunho para aquele que se dispõe a testemunhar [...] [está] no fracasso de um suposto voluntarismo consciente de querer dizer ou de querer fazer algo”, pois é aí “que se forja o bem dizer do testemunho, manifestação do sujeito do inconsciente, não de uma vontade, mas sim de uma verdade outra” (p. 86).
O quinto texto intitula-se “‘Mas nessa luta se aprende. Se aprende muitíssimo’. Testemunho de um pai. Memória”. Nele, Mariani nos apresenta uma fala que escutou durante um colóquio na Cidade do México, em 2017, proferida por um pai que perdera o filho, um testemunho que traz em seu início a frase “nessa luta se aprende” (p. 99). Esse pai representava os pais de 43 estudantes assassinados em 2014, na cidade de Iguala, no México. Trata-se de um dizer que se enuncia a partir de um lugar coletivo. As histórias desses pais, unidos na busca de saber o que aconteceu com seus filhos, “são narrativas que se entrelaçam com parte da história dos movimentos de resistência no México, país que conta, atualmente, com mais de 30 mil pessoas desaparecidas” (p. 99).
Mariani afirma que na leitura desse testemunho ela pôde formular o que chama de testemunho de resistência - uma “resistência ao esquecimento” (p. 110). As narrativas desses pais, que falam em nome dos desaparecidos, são consideradas testemunhos de resistência frente ao apagamento que o Estado impõe, e a autora nos lembra que ouvir os que testemunham sobre a existência daqueles que tiveram suas vidas violentamente interrompidas é “uma forma de produzir visibilidade para os desaparecidos” (p. 107).
No sexto capítulo – Discursos de resistência e testemunho –, Mariani apresenta análises que abordam o “testemunho inscrito no urbano” (p. 125). Ela explica que nesse caso estaria definindo testemunho de uma forma ampla, “como presença material de um traço, um vestígio de um acontecimento que já foi” (p. 125). E é a ideia de circulação cotidiana dos sentidos, citada a partir de Pêcheux (1990 [1983]), que a faz pensar nesse testemunho:
Os processos de resistência nas cidades deixam testemunho, entendido aqui como a inscrição de traços que podem se perpetuar para além do tempo histórico e conjuntural dos movimentos sociais. No urbano – pontes, pilares, calçadas, muros e, também, em prédios específicos, desenhos, inscrições sinalizam que ‘algo está fora da ordem’, como diria o Caetano Veloso. (MARIANI, 2021, p. 125-126)
Um exemplo de testemunhos inscritos no urbano seriam os vestígios de um morro que foi derrubado em 1921, no centro do Rio – o Morro do Castelo – mas que permanece em placas de trânsito, em linhas de ônibus, como modo de nomear a região onde havia o morro – “um vestígio discursivo, um testemunho mudo em relação à memória do que havia e não há mais, do que se dizia e ainda se diz sem que se saiba exatamente o que significa” (p. 127).
O sétimo texto, “De uma língua à outra: migrações, resistências e im-pressões”, traz como corpus de análise o documentário D’une langue à l’autre (2002), dirigido por Nurith Aviv. A-bordando aspectos que se atravessam e sustentam a relação entre sujeito(s) e língua(s), Nurith Aviv nos propõe a uma escuta de memoriáveis, quando nos conta sobre si própria e, também, quando apresenta testemunhos de uma geração de poetas, escritores e músicos imigrantes ou filhos de imigrantes. Como observa a autora,
permite-nos escutar o desencontro entre sujeitos, línguas, memórias e culturas [...], as contradições históricas da formação de uma sociedade que adota como língua oficial e nacional o hebraico, uma língua que até o início do século XX era usada apenas nas liturgias religiosas, sob a forma da leitura de textos sagrados. Mas não apenas isto, pois, como dissemos, o desencontro, a equivocidade e a contradição estão sempre no sujeito em relação a si próprio, ou seja, na divisão entre o que o sujeito pensa que tem como identidade e o que falha nesse imaginário de unicidade da identidade. Dito de outra maneira, o desencontro se manifesta entre o que o sujeito supõe como seu saber linguístico consciente e o que nele fala à revelia. (MARIANI, 2021, p. 135)
O texto é dividido em seis seções: na primeira, Sujeito entre línguas, Mariani se propõe a discutir sobre a situação do sujeito migrante no entremeio das línguas num desencontro com a própria língua que fala, com a do seu passado, com a nova língua de adoção. A segunda seção, Entremeio e política de línguas, coloca em conflito o que existe e resiste na tensão entre línguas do sujeito em espaço, e a política de sentidos, que “faz o sujeito subjetivar-se” – processo que, segundo Mariani, consiste em “habitar de forma singular o funcionamento de uma língua estruturada e articulada e faltante” (p. 138). Na terceira seção, Subjetivação e política de sentidos, Mariani dá visibilidade à incompletude que o documentário traz à tona, compreendida em sua análise “como a falta constitutiva de qualquer língua, assinalando o impossível de tudo dizer e de tudo significar” (p. 143). Na quarta seção, Os poetas e escritores do documentário, a autora reflete sobre a dimensão maternal da língua como uma questão para avançar em sua formulação sobre testemunho, trazendo, na seção seguinte, Com a palavra, os poetas, escritores e músicos: sujeito de uma língua à outra, análises de testemunhos de três escritores que estão nesse espaço entrelínguas. Finaliza, belamente, com a seção O que resta? Resta a língua materna, nos dizendo que os testemunhos desses poetas, mesmo percorrendo moebianamente (dentro/fora, direito/avesso) esse espaço entrelínguas, prosseguem “de uma língua – maternal esquecida da infância – à outra, língua de uma coletividade, língua imposta ou adotada”, ressignificando-se entre as fronteiras (p. 150).
No último capítulo, que se chama Brados e gestos de revolta (em um ínfimo lapso de tempo), Mariani apresenta análises de um segundo tipo de testemunho estabelecido por ela: o testemunho de revolta, que surge no cotidiano, a partir de uma revolta diante de uma situação, e que toma, inesperadamente, o sujeito. São falas ou gritos que não se podem conter. A autora explica: “É uma emergência do dizer, é da ordem de um acontecimento – atualidade e memória – que intervém no imaginariamente estruturado linguageiro do sujeito” (p. 21).
Produzido já no período da pandemia, o texto tematiza os brados e gestos, por exemplo, contrários a um governo negacionista em pela pandemia, no Brasil de 2020 e 2021. Gritos que chegam pelas janelas das pessoas em quarentena, revoltadas. Mariani relaciona esses gestos e brados como aquilo que materializa discursivamente os “grãos de enunciação” da resistência – expressão que ela reencontra em Pêcheux, e da qual se apropria para pensar nesses gestos que “dão forma e substância a modos de fazer resistência ainda não totalmente estruturados” (p. 155).
O texto traz, para análise, dois acontecimentos desse período, e Mariani afirma que com suas análises ela irá buscar esboçar o que está chamando de “escuta discursiva” – uma escuta “dos sentidos que circulam no social” (p. 158). O primeiro acontecimento está em um vídeo em que uma jogadora de vôlei, após a fala de uma outra jogadora em uma entrevista, pega o microfone e produz um grito contra o presidente do país, precedido da seguinte observação – “só pra não esquecer”. O segundo envolve uma homenagem feita em Copacabana aos mortos pela Covid, com cruzes colocadas na areia. Enquanto um homem contrário à homenagem caminha entre as cruzes e as derruba, um outro – que perdera seu filho – o segue e as recoloca. Mariani analisa os gritos produzidos durante essa cena, e comenta, por exemplo, como uma das frases desse pai – “eu tenho que tá falando” (...) “eu vou recolocar”– e a frase da jogadora – “só pra não esquecer” – são dizeres que irrompem para repetir, para não deixar em silêncio a revolta que acontece nesses sujeitos. A autora finaliza seu texto observando que foi “a escuta discursiva dos grãos de enunciação desses sujeitos” que lhe permitiu “pensar o acontecimento (discursivo) no sujeito (urbano), no seu cotidiano assombrado pelo mal-estar” (p. 167).
Por fim, comentamos sobre os quatro belíssimos e corajosos textos que acompanham o livrinho e convidam à leitura – o prefácio escrito por Maria Cristina Leandro Ferreira, os textos das orelhas escritos por Lucília Maria Abrahão e Sousa e Lauro José Siqueira Baldini, e o da quarta capa escrito por Luciene Jung de Campos. Um quarteto de textos que dá sustentação à espinhosa temática - luto e morte (sobre a qual parecemos não querer saber), às leituras de Mariani e aos conceitos que avançam pelas análises e abrem um campo para os analistas de discurso e todos os que se interessam pelas relações entre sujeito, língua, história.
Referências
ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. Publicado na revista La Pensée, em 1971.
LACAN, Jacques. Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p. 15-25.
LACAN, Jacques. O Seminário 2 – O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. (1954-1955). Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, Jacques. O Seminário 5 – As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LECOMTE, Alain. A fronteira ausente. In: CONEIN, Bernard et al. (org.) Materialidades discursivas. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016.
LEVI, Primo. É isto um homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
ORLANDI, Eni. História das ideias x história de vida. Fragmentum, n. 7, Santa Maria, Laboratório Corpus, UFSM, p. 11-50, 2006.
MARIANI, Bethania. Testemunhos de resistência e revolta – um estudo em Análise do Discurso. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes, 1990 [1983].
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. Unicamp, 1988 [1975].
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. 3.ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1997 [1975].
PÊCHEUX, Michel. Questões iniciais. In: CONEIN, Bernard et al. (org.) Materialidades discursivas. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016. p. 17-19.
Data de Recebimento: 04/09/2022
Data de Aprovação: 08/11/2022
1 Professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, e-mail: andrearodrigues.letras@gmail.com.
2 Docente no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem na Universidade do Vale do Sapucaí, e-mail: luizakcb@gmail.com.
3 Lecomte, 2016, p. 152.
4 Orlandi, 2006, p. 12.
5 “A ‘forma-sujeito’, de fato, é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais.” (ALTHUSSER apud PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 183)
6 O livro deriva do projeto “Processos discursivos de subjetivação: relatos de si, testemunho e laço social”, apoiado pelo CNPQ em 2017-2021.
7 Mariani não está sozinha quando nomeia seu escrito de livrinho. Althusser, quando manuscreve “Sobre a reprodução” no capítulo “A reprodução das relações de produção” também se refere ao seu escrito como um “livrinho”. Cito: “Eu gostaria de chamar a atenção do leitor para alguns aspectos de uma obra que, em muitos pontos, pode surpreendê-lo e desnorteá-lo. 1) Este livrinho é o tomo I de um conjunto que deve comportar dois tomos.” (ALTHUSSER, 1999 [1971], p. 21).
8 Compreendemos “litorais” como bordas de um “território de encontros problemáticos” em movimento que se des-enlaçam, produzindo enigmas nesses encontros. Fomos inspiradas pela proposta lacaniana trazida no texto “Lituraterra” em que a metáfora “litorais” comparece para permitir construir interdiscursividade da psicanálise com outros campos, e também como possibilidade para produção de novos campos de questões dentro da própria psicanálise. (LACAN, 2003, p. 15.)
9 Saberes que, bem nos lembra a autora, não se somam, mas podem se (des)costurar e se re-cortar em novos saberes (MARIANI, 2021, p.30).