Os discursos na reabilitação urbana e a dimensão do city marketing: o caso do centro da cidade de São Paulo.


resumo resumo

Geise Brizotti Pasquotto



1. City marketing e suas ferramentas de promoção urbana.

Segundo Lefebvre (1991, p. 115), “a publicidade torna-se a poesia da (Pós)Modernidade, o motivo e o pretexto dos espetáculos mais bem-sucedidos”. A cidade do espetáculo, como é intitulada atualmente, objetiva a promoção de sua imagem, para torná-la atrativa mundialmente. Neste contexto, a cidade torna-se uma mercadoria a ser vendida, num mercado extremamente competitivo, em que outras cidades também estão à venda. “A cidade-mercadoria não existe fora de um sistema simbólico de significações subvertidas, que se reinventam constantemente” (SOARES, 2006, p. 05). A espetacularização da “cidade-empresa” (HARVEY, 1996; VAINER, 2000), recria novas imagens para serem “comercializadas” no mercado global, ao mesmo tempo em que promove transformações espaciais para readequá-las às novas demandas locais.

Desta forma é possível compreender o motivo pelo qual o city marketing ou marketing urbano se impõe cada vez mais como uma esfera específica e determinante do processo de planejamento e gestão de cidade (VAINER, 2000, p.78). A utilização do marketing e estratégias publicitárias foi empregada em uma dinâmica onde a produção-consumo-lucro são os aspectos esperados no resultado das ações.

O Marketing Urbano é uma ramificação do planejamento estratégico que visa a associação de ações para a promoção das cidades, tornando-a atrativa e competitiva. Essa relação com a “cidade-mercadoria” foi empregada inicialmente por Ashworth e Voogd (1990, p.11). Atualmente, ele está cada vez mais sendo utilizado no incremento e gestão das cidades de grande porte ou turísticas, adquirindo um papel central no conjunto das novas políticas urbanas, tornando-se um importante ferramental para alavancar os diversos processos de promoção das cidades. E “sua emergência e ascensão [...] indicam também a emergência e ascensão de uma nova ideologia do planejamento e ação, uma nova visão de mundo que se impõe na orientação dessas políticas” (SÁNCHEZ, 2003).

Segundo Pasquotto (2011), a partir da década de 1990, as principais ferramentas do marketing urbano identificadas são: i) a arquitetura icônica, ii) os eventos emblemáticos, iii) as “marcas”, iv) o discurso/slogan/logotipo e v) as parcerias público-privadas. Esses instrumentos podem ser utilizados individualmente, no entanto, geralmente, eles são articulados em conjunto. Neste artigo será abordado a ferramenta “discurso” no processo de reabilitação urbana da área central de São Paulo. 

 

2. O discurso na revitalização urbana

Um dos principais elementos que deve ser considerado na formulação de um discurso, segundo Mendes (2006), “refere-se ao grupo de pessoas que se pretende atingir – o público-alvo -, e que deve ser claramente identificado: é preciso conhecer-lhe características como faixa etária, gênero, nível sociocultural, escolaridade, valores, hábitos e costumes”. Entretanto, segundo a autora, os emissores (que são as pessoas que proferirão os discursos) devem possuir alguma conexão com o seu receptor (público-alvo), por assemelhar-se com eles ou por ser referência de sucesso, credibilidade e respeito. Como observa Ribeiro (1999), representar a totalidade, o todo social, implica poder: implica construção de hegemonia, capacidade de convencimento, criação de consenso.

Os discursos como iniciativa voltadas a desenvolver um “espírito” dinamizador e transformador, segundo Sanchez et al (2005), utilizam de termos como competitividade, sinergias, eficiência, parcerias, sustentabilidade ambiental e financeira, pertencimento, cidadania, entre outras. Os autores relatam que “a lealdade ao lugar e o sentido de pertencimento estimulados pelos projetos de cidade em curso, têm significados políticos: incidem tanto nas mentalidades coletivas quanto no chão” (SANCHEZ et. al., p.08, 2005)

O discurso também está relacionado com outra ferramenta do marketing urbano: a “marca”1 (PASQUOTTO, 2011). A marca do arquiteto e urbanista é a mais usual, onde o poder público passa a elencar em seus discursos obras assinadas por grandes arquitetos do “star system”, como sinal indicador do processo de internacionalização que a cidade está inserida. Esse processo de utilizar arquitetos estrangeiros representa “[...] uma cartada de peso na grande arena estratégica, a mídia” (CAMPOS; SOMEKH, 2001, p.175). Os arquitetos conceituados mundialmente auxiliam na mitificação das construções desde sua construção (HAZAN, 2003).

Segundo Bourdieu (apud RAMONET, 1999), “o que há de mais terrível na comunicação é o inconsciente da comunicação”, ocorrendo um vagaroso e contínuo processo de sedimentação de imagens que levam o público-alvo a uma falsa noção de totalidade. Desta forma, cria-se na população o ideário de uma nova imagem, onde a cidade inteira está sendo beneficiada com as intervenções e que ela também está incluída nessas modificações, ou seja, a “assistência ao espetáculo cria uma ilusão de participação” (SÁNCHEZ, 1999, p.08).

Esta estratégia da utilização do discurso para promover as intervenções urbanas e gerar um pensamento idealizado na população é muitas vezes utilizada pelos discursos políticos. Como exemplo é possível citar as revitalizações de áreas centrais e de intervenções culturais como palco para tais ações.

 

3. Reabilitação urbana no centro de São Paulo: área da Luz

A metrópole de São Paulo, entre 1990 e 2000, segundo Pagano & Bowman (1997), estava inserida em um contexto de alterações mundiais, acarretando a necessidade de orientar-se para o mercado globalizado. Assim, iniciam-se intervenções em toda cidade, porém, um dos focos principais para o desenvolvimento dos programas é o centro da cidade. Tourinho (2004, p. 241), ao relacionar o crescimento da metrópole e a destruição das áreas centrais, comenta que "o centro tornou-se um obstáculo a ser superado através de medidas predatórias que buscavam atravessá-lo da forma mais eficiente (para o capital flexível), dilacerando um conjunto de áreas públicas".

Frúgoli Jr. (2000, p. 75-76) destaca que um dos imperativos para que São Paulo seja considerada uma cidade mundial é exatamente "a existência de um centro decisório forte e articulado, capaz de agilizar o processo de tomada de decisões, além de criar uma imagem positiva da metrópole, sobretudo ao empresariado estrangeiro".

A área intitulada “Luz”, objeto de estudo deste artigo, é composta de três distritos: Bom Retiro, República e Santa Cecília e integrou diversos programas e projetos urbanísticos (Figura 01). Esta região constitui uma parte importante do centro de São Paulo e é paradigmática quando se trata de um tecido urbano corrompido.

 

 

 

Figura 01 - Perímetros dos projetos para a Área da Luz e do perímetro de estudo.

Fonte: Elaboração da autora, 2022.

 

Em 1974 foi criada pelo escritório Rino Levi Arquitetos Associados a Zona de Preservação e Recuperação. Dez anos depois, em 1984, foi realizado o Projeto Luz Cultural, sob a coordenação da Secretaria de Estado da Cultura.

Em 1990 foram intensificados os programas para esta região e iniciaram-se projetos na área da Luz que reforçaram sua vocação de “polo difusor” de transformação urbana. Em 1991 foram criados pela associação Viva o Centro os programas de segurança urbana: “Centro Seguro” e “Ação Local”. Em 1993, pelo Procentro, foi desenvolvido o Programa de Requalificação Urbana e Funcional do Centro. Nos anos de 1996 à 1998 foram desenvolvidas, anualmente, diversas ações para o centro. Em 1996, pela prefeitura e pela Sehab, foi realizado o Concurso Nacional de Ideias para um Novo Centro de São Paulo, e em 1997 foi elaborada a Operação Urbana Centro. Em 1998 foi desenvolvido o Projeto Polo Luz, pelos governos estadual e federal, do qual resultaram as reabilitações da Pinacoteca do Estado, da Estação Júlio Prestes e da Estação da Luz. Também neste período iniciou-se o Projeto Monumenta/BID, que foi executado a partir de 2000, na gestão Marta Suplicy, juntamente com o Programa de Reabilitação do Centro de São Paulo. Em 2005 iniciou-se a implantação do Projeto Nova Luz, na gestão de José Serra.

Os investimentos nesta área obtiveram apoio de diversas instâncias: do governo federal, estadual e municipal, organizações não governamentais e do setor privado.

Os primeiros investimentos foram realizados pelo governo do estado, em razão do grande número de imóveis institucionais sob sua guarda na região. O investimento na construção ou reforma de edifícios culturais de grande porte apostava em obter contrapartidas do setor privado que de fato contribuíssem para a recuperação da área. Mesmo com o ressurgimento da ideia da utilização do grande potencial cultural da região em favor da reabilitação urbana, já vista no Projeto Luz Cultural, o primeiro projeto executado foi o da integração das linhas da CPTM da Zona Leste às Estações Luz, Brás e Barra Funda, além da linha 4 do metrô (Projeto de Integração Centro, parte do Plano Integrado de Transportes Urbanos - PITU 2020), em 1995 (MOSQUEIRA, 2007).

Dentre as iniciativas não governamentais que se envolveram na elaboração e difusão de projetos para o chamado Polo Luz, destaca-se a Associação Viva o Centro. Em 1998, realizou-se um estudo urbanístico desenvolvido pelo Laboratório de Urbanismo da Metrópole – LUME FAU USP com Coordenação Geral da Professora Doutora Regina Maria Prosperi Meyer e Coordenação Técnica da Doutora Marta Dora Grostein.

O Polo Luz recebeu algumas intervenções dos poderes públicos estadual e federal, como a instalação da Sala São Paulo, a reforma e expansão da Pinacoteca do Estado, a inserção do Museu da Língua Portuguesa, a implantação do sistema de trens metropolitanos ligando a Zona Leste ao Centro, os planos de curto prazo de execução da Linha 4 do metrô, de adequação funcional e restauro da Estação da Luz e do Projeto Nova Luz.

Em 2008 iniciou-se a proposta de mais um edifício cultural: o Complexo Teatro da Dança. Em 2014 o projeto foi paralisado e em 16 de março de 2016, em solenidade no Palácio dos Bandeirantes, o Governo mudou oficialmente o foco do terreno e passou a proposta de intervenção da Secretaria da Cultura para a Secretaria da Habitação.

 

4. Os discursos desvinculados da realidade na região central de São Paulo.

Na fase de inserção dos edifícios culturais na região da Luz em São Paulo, muitos discursos incidiam na mesma pauta: a revitalização2 central. Pode-se constatar uma tentativa de relacionar uma obra cultural pontual com revitalização da área central.

Em 1999, o então Secretário de Estado da Cultura Marcos Mendonça (Gestão 1995-2002) e o Presidente da Associação Viva o Centro Henrique de Campos Meirelles, em prefácio para a publicação "Pólo Luz: Sala São Paulo, cultura e urbanismo", citaram tais investimentos, principalmente a inserção da Sala São Paulo, como uma âncora de requalificação da região:

 

[...] Hoje, a Júlio Prestes, renovada pela cultura, se transformou em âncora para a requalificação urbana de todo o centro, resgatando do passado a história da cidade, já quase perdida, devolvendo-a a seus cidadãos. (MENDONÇA, 1999 apud MEYER, 1999).

 

A concretização de uma obra da importância da Sala São Paulo […] dá ao centro de São Paulo mais um poderoso instrumento para a sua recuperação. Nos processos de requalificação de centros metropolitanos, a cultura desempenha um papel fundamental. (MEIRELLES, 1999 apud MEYER, 1999).

 

No Catálogo de lançamento "Inauguração da Sala São Paulo" no mesmo ano, o então governador Mário Covas, apresentou a construção, dizendo:

 

O Governo do Estado de São Paulo está dando o mais importante passo na implementação, em definitivo, de uma política de requalificação de espaços urbanos através da cultura. [...] E, ao fazê-lo, o Governo do Estado de São Paulo deixa claro que opções ligadas à cultura passarão a substituir a velha promessa de que somente obras viárias de grande porte e custos altíssimos podem alterar a face de uma região. O Centro Velho de São Paulo, deteriorado por décadas de abandono, exigiu esta decisão (COVAS, apud WISNIK et al, 2001, p.19).

 

Também o vice-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (Gestão 1995-2001), em entrevista para a IPTV Cultura, na inauguração da Sala São Paulo no dia 09 de julho de 1999, retomou o mesmo diálogo de revitalização da área.

 

Pode ser um marco, o início de uma recuperação do centro. São Paulo vem se transformando de uma cidade industrial para uma cidade de serviço e um grande centro cultural de entretenimento, que vai trazer emprego. Essa inauguração tem um impacto social, em relação ao emprego, e um impacto econômico, na recuperação da área central da cidade (ALCKMIN, 1999).

 

Até mesmo o maestro Neschling foi tocado por essa "onda de revitalização do edifício cultural" e disse, em entrevista para a revista Bravo!, que a Sala São Paulo seria um dinamizador da área:

 

-+[...] está sendo inaugurada em um lugar totalmente degradado da cidade de São Paulo, mas a presença dela vai certamente reurbanizar o centro, tal como o Beaubourg fez com toda aquela zona degradada em que se tinha degenerado o Marais (NESCHILING, 1999)

 

Um ano depois, no lançamento do Complexo da Dança, discurso similares foram realizados, embora o edifício da Sala São Paulo já estivesse em funcionamento e a malha urbana da área continuasse com fragilidades severas.

Segundo documento cedido pela Secretaria de Cultura do Estado, "o projeto [do Complexo da Dança] irá contribuir decisivamente para revigorar a região dos Campos Elíseos, tornando o entorno da Praça Júlio Prestes um novo `território das artes´, fixando-se na paisagem como uma proposta cultural de grande abrangência" (SÃO PAULO, 2010).

No discurso realizado na abertura da primeira fase das obras do Complexo de Dança de São Paulo em março de 2010, José Serra (governador do Estado de São Paulo na Gestão 2007-2010) afirmou:

 

Nós temos aqui o Museu de Arte Sacra, a Pinacoteca, a Estação Pinacoteca, a Sala São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa e o Jardim da Luz. E próximos temos o Museu da Polícia Militar, o palácio do Campos Elíseos. Estamos configurando o pólo, que será completado com esse Teatro da Dança [..] Isto é um passo muito importante para a revitalização de toda essa região do Centro (SERRA apud SALLES, 2010, online).

 

E no Portal do Governo ele complementou dizendo que “este Complexo vai ser um elemento de revitalização incrível, um espaço fenomenal. É uma obra que vai complementar todo o espaço cultural da região” (SERRA apud GOVERNO INICIA 1ª ETAPA…, 2010, online).

Na mesma linha de pensamento, o secretário da cultura do estado, João Sayad, reitera "Acreditamos que a construção do teatro vai ajudar e muito na recuperação da área central, onde já existe a Sala São Paulo, a Pinacoteca, o Museu da Língua Portuguesa. Isso vai atrair mais atividades e investimentos importantes" (SAYAD apud MIRANDA, 2008, online).

A revitalização, por meio da retirada dos moradores de rua, é pensada pelo secretário da cultura do estado, João Sayad, por inserir um edifício que irá suprir os espaços vazios da região. O secretário afirma que a região é ocupada por cerca de 1.500 moradores de rua porque há espaços vazios, o que deve mudar com a construção do teatro de dança e música. "Eles estão aqui porque a região é deserta. Quando ela for ocupada, eles vão procurar outra região deserta" (SAYAD apud CARVALHO; SEABRA, 2009ª, online). Outra justificativa é que a região da Luz foi escolhida porque é um epicentro de transporte público, de acordo com Sayad.

Mesmo com a radical mudança de programa para o local em 2014, o discurso continuou o mesmo. O atual secretário, como todos os outros diálogos políticos com propostas de intervenção para a área central, defendeu que o Edifício Multifuncional implantado no local do antigo projeto para o Complexo da Dança será fundamental para a revitalização da área. “Os equipamentos culturais, como a Sala São Paulo, ajudaram a revitalizar o centro, mas eles já cumpriram o seu papel. Acho que só moradia vai resolver a nossa questão a partir de agora” (GARCIA, 2016 apud BRENDLER, 2016, online). E complementa dizendo que “o fator de recuperação urbana mais forte que há no mundo é a moradia […] Os equipamentos culturais ajudam, mas têm um limite. Os do centro já alcançaram seu objetivo na revitalização” (GARCIA, 2015 apud MASSUELA; PEREIRA; FAGUNDEZ, 2015, online).

No entanto, o diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, Valter Caldana, é mais cuidadoso ao analisar a questão da revitalização. Ele concorda que só a habitação poderá ajudar a revitalizar o centro, mas defende que apenas construir prédios não vai resolver essa questão.

 

Trata-se de uma área estratégica para a cidade. Mas não adianta sair fazendo prédio. Deve-se projetar a ‘cidade-resultante’. Devemos discutir, por exemplo, a otimização do espaço do terminal Princesa Isabel, que fica a cerca de 80 metros dali e hoje está rigorosamente destinado ao uso do ônibus (CALDANA, 2016 apud BRENDLER, 2016, online).

 

5. Considerações finais

Como foi possível verificar no artigo, umas das ferramentas do marketing urbano é o discurso. Ele é utilizado como forma de solidificar uma atuação política, como as intervenções urbanas, e ganhar a adesão da população. No caso dos discursos relacionados com os edifícios culturais do centro de São Paulo, foi identificado um aspecto ludibriante e repetitivo. Esta forma de persuasão faz com que a população, influenciada pelo discurso positivista, acredite apenas em um aspecto da inserção, esquecendo-se dos fatos passados, onde os edifícios culturais não reabilitaram o centro. Este discurso unilateral também é utilizado como propaganda para atrair parcerias e ganhar visibilidade local e até mesmo mundial.

Em relação à cultura, para compreender por que este tema é tão utilizado pelos políticos, cabe retomar o que o ex-governador de São Paulo disse em entrevista:

 

Acho que as obras culturais ficam mais no tempo do que as de infraestrutura”, disse Serra no evento que marcou o início das obras do Teatro da Dança, na Luz. “Por exemplo, a gestão do Covas é muito lembrada pela Sala São Paulo, que não foi a sua maior obra. Covas começou o Rodoanel, esticou três linhas de metrô, fez muitas coisas. Mas, na verdade, o que se lembra é no caso da cultura porque é uma realização singular, e não rotineira (SALLES, 2010, online).

 

Essa utilização reiterada dos mesmos discursos foi enfatizada em publicação de Cesar Carvalho e Catia Seabra na Folha de S. Paulo:

 

Quando a Sala São Paulo foi inaugurada, há dez anos, o então governador Mário Covas (PSDB) dizia que a obra serviria para acabar com a Cracolândia. Em 2004, na abertura da Estação Pinacoteca, um discurso similar ao de Covas foi repetido pelo então governador Geraldo Alckmin, também tucano. A reforma da Pinacoteca e a criação do Museu da Língua Portuguesa seguiram a mesma toada – eram todas obras que tinham como objetivo tornar transitável a região em torno da Cracolândia, área que ficou conhecida por concentrar dependentes de crack. As quatro obras consumiram investimentos de cerca de R$ 200 milhões em valores atualizados (CARVALHO; SEABRA, 2009b, online).

 

Desta forma, pode-se observar que a repetição no discurso é desvinculada de uma concretização projetual. A área da Luz, apesar de ser um dos importantes pólos culturais da cidade e de ter recebido ao longo dos anos programas e intervenções, não obteve êxito em sua reabilitação urbana. Segundo PASQUOTTO (2011), um dos pontos elencados para que essa reabilitação não ocorresse recai no fato das ações serem pontuais, com uma intensa separação entre as secretarias. A articulação entre elas é extremamente fraca e um Plano Master não era abordado como estruturador de todas as intervenções. Outro ponto importante é a configuração "cidade-empresa-cultural", onde se conjugam o dinheiro e poder com a arte e cultura, que, segundo Arantes (2007), é uma estratégia fatal.

 

A cidade como palco da sociedade do espetáculo e como circunscrição da 'indústria cultural' pós-moderna, é vendida de duas formas: como um pacote comercial maquiado de arte e cultura, e assegurado pelo discurso ideológico de planejamentos micro-isolados, que atendem a lucratividade e o bem-estar de pequenas parcelas privilegiadas da sociedade; e, em fragmentos que são os locais e espaços subsidiados por grandes empresas, que ao incentivarem o acesso à cultura elas legitimam e fortalecem sua marca. Neste quadro temos a cidade como uma mercadoria que pode ser comercializada integralmente ou de forma parcelada (ARANTES, 2007).

 

 

Referências bibliográficas

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Data de Recebimento: 04/04/2022
Data de Aprovação: 18/10/2022


1  Na dissertação de mestrado de PASQUOTTO (2011) é indicado três tipos de marcas que adicionam um “valor” nas intervenções de promoção urbana: i) a marca do edifício, ii) a marca do arquiteto ou urbanista e iii) a marca do programa/intervenção.

2  Neste capítulo “Os discursos desvinculados da realidade na região central de São Paulo” será utilizado o termo “revitalização” em detrimento de reabilitação, pois os discursos políticos e as propagandas na mídia utilizam tal terminologia. No entanto, o termo reabilitação seria mais adequado pois designa o reestabelecimento dos direitos. Na jurisprudência é "a ação de recuperar a estima e a consideração” (CHOAY E MERLIN, 1988, pág. 573). Segundo Berrio e Orive (1974, pág. 11), o termo reabilitação vinha se consolidando até configurar-se como um dos aspectos fundamentais da conservação e, no texto da Convenção da UNESCO de 1972, substitui praticamente o termo restauração, aplicado tanto em arquitetura como em urbanismo. Este termo se sobressai aos outros por ser o que mais pressupõe a preservação do ambiente construído (MARICATO, 2001, pág. 125-128) e ocupado, porém sem carregar um significado associado a momentos diferentes da história do urbanismo, como os termos antecessores (renovação, revitalização, entre outros) e também por incluir uma ação de preservação da arquitetura comum (não apenas de interesse histórico) e de conceber o patrimônio edificado em si como valor de recurso. Para saber mais sobre as terminologias, verificar as publicações:

PASQUOTTO, Geise Brizotti. Renovação, Revitalização e Reabilitação: reflexões sobre as terminologias nas intervenções urbanas. Revista Complexus, v. 2, p. 143-149, 2010.

PASQUOTTO, Geise BrizottiOLIVEIRA, M. R. S.As periodizações nas intervenções urbanas: uma análise das classificações de Vargas & Castilho, Boyer e Simões Jr. Labor & Engenho, p. 29-43, 2010.