Jornada “Inventar mundos possíveis, cidades e tecnologias populares” reuniu coletivos e pesquisadoras para discutir tecnologias e territórios urbanos

Encontro promovido pelo Labeurb discutiu como tecnologias podem ser criadas e apropriadas por movimentos sociais em prol de uma sociedade mais sustentável e solidária 

             

A jornada “Inventar mundos possíveis, cidades e tecnologias populares”, realizada em maio, promoveu um diálogo entre diferentes coletivos com estratégias de apropriação de tecnologias aplicadas a soluções de problemas relacionados ao território e a populações que buscam formas de trabalho mais justas nas cidades. O encontro foi gravado e está disponível no site da TV Tainã

O encontro teve como objetivo pensar em outras formas de apropriação das tecnologias diante da escalada das big techs e da exploração do trabalho realizada por essas empresas. Nesse cenário, o evento foi pensado como uma maneira de conhecer experiências concretas de coletivos com apropriação popular da tecnologia. “O intuito é pensar possibilidades de construir cidades de fato sustentáveis, que priorizem a vida das pessoas ao pensar formas alternativas de urbanidades seguras e solidárias”, diz Greciely Costa, pesquisadora do Labeurb e uma das organizadoras. 

Para isso, estiveram presentes representantes do Señoritas Courier, Núcleo de Tecnologia do MTST, Contrate quem Luta, Federação Comunitária de Campinas e Região (FCCR) e Casa de Cultura Tainã. O encontro foi aberto ao público e contou, além de Greciely Costa, com a participação de Cristiane Dias, também pesquisadora do Labeurb e organizadora do evento, e com discentes da Unicamp e representantes de outros coletivos e movimentos sociais. 

Dependência das plataformas 

Diversas falas dos participantes destacaram que o principal desafio posto é vencer a dependência que se criou das atuais tecnologias digitais. Dependência que se mostra na prática, com muitas pessoas cujo trabalho está totalmente ancorado em plataformas, como destacou Gilberney Caria, presidente da FCCR. Mas há também uma dependência de desenvolvimento, já que mesmo tecnologias de software livre ainda são majoritariamente criadas fora do contexto brasileiro. 

Com isso, cria-se também uma certa dependência filosófica. Isso acontece porque mesmo desenvolvedores se veem presos a uma lógica de funcionamento que segue os padrões estabelecidos no norte global. Para Costa e Dias, esse é um ponto chave da discussão realizada no dia. A “compreensão de que já uma naturalização da tecnologia em nosso cotidiano e no modo como ela determina o pensamento, impedindo de olharmos para outras formas de viver, com tecnologias outras, que já são parte da ancestralidade, tecnologias não predatórias, fora da lógica capitalista”, relatam. 

Marcos Morais reforça esse pensamento ao dizer que “falar de desenvolver tecnologias populares é também pensar a todo momento numa revolução do pensamento. Em primeiro lugar, pensar como é possível criar essas tecnologias mudando completamente a forma de pensar”. Morais é engenheiro de software e atuou no projeto Trabalho Justo, Digno, Solidário, Saudável e Seguro (TJD3S) criado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em parceria com a Fundacentro. 

Para Antônio Carlos Silva (TC Silva), fundador da Casa de Cultura Tainã, a dependência das plataformas está tão enraizada que dificulta até mesmo perceber a relevância de outras tecnologias que não as digitais. E como isso está relacionado com o abandono de práticas de vida no mundo físico. 

 

                                            
                                                  Gustavo Gonçalves e TC Silva. Foto: Mariana Zilli 

 

Apropriações das tecnologias

Um exemplo disso é a noção do tempo dos aplicativos. Há uma lógica instaurada que cria a sensação de que todo serviço precisa estar disponível 24 horas por dia. No contexto das plataformas, essa lógica é ilustrada pela preocupação em criar aplicativos cada vez mais rápidos. Ou em desenvolver algoritmos que possibilitem entregas rápidas e o tempo todo. 

Para Joaquim Renato de Souza, que faz parte da cooperativa de ciclo-entregadoras Señoritas Courier, parte dessa lógica que domina as plataformas está relacionada com o perfil das pessoas que as desenvolvem e o contexto que estão inseridas. Ele destaca, por exemplo, que o Ifood foi uma plataforma criada por alunos da Unicamp. E que estar na universidade não significa que há uma quebra da lógica capitalista que ainda oprime a população periférica. 

Ao desenvolver algoritmos capazes de prever rotas mais rápidas, há muitas vezes um apagamento das pessoas que realizam essas entregas. A cooperativa busca romper com esse funcionamento. “A tecnologia não pode ser soberana sobre nós. Esse algoritmo criado não tem que dar a resposta final. Ele vai criar uma primeira opção de rota, mas quem vai dizer qual caminho a gente tem que percorrer no final das contas são as pessoas entregadoras”, relata Gustavo Gonçalves, que também participa do projeto. Isso porque o algoritmo não contempla diversas questões de cuidado com as pessoas, como descanso, segurança, alimentação e outros. 

 

 

                                                   
             Alexandre Boava, que participou online, Sandra Selma e Joaquim Renato Souza. Foto: Mariana Zilli. 

 

Sandra Selma, que coordena o Contrate quem luta, reforça a importância de incluir questões de cuidado no gerenciamento de um grupo de trabalho. Ela cita como há uma preocupação em orientar os prestadores de serviço que participam do projeto com relação ao planejamento financeiro, especialmente com a aposentadoria. 

Por isso, um dos passos para subverter a dinâmica do desenvolvimento tecnológico atual é mudar a ordem de prioridades. É o que defende Alexandre Boava, do Núcleo de Tecnologia do MTST e um dos organizadores do evento. Para Boava, a necessidade da população deve ser a primeira etapa no desenvolvimento de uma nova ferramenta, evitando criar “tecnologias de prateleira”. 

Nessa perspectiva, no período da tarde do dia do encontro, foi realizada uma Oficina TecnoPopular. Nela, os participantes puderam entrar em contato com noções básicas de programação, ferramentas, criação e design digitais. Mas com o foco de pensar coletivamente o desenvolvimento de dispositivos e produtos tecnológicos que promovam economias locais, sustentáveis e solidárias, baseados nas demandas dos territórios, e não nos interesses de lucro e exploração do mercado.

 

                                             
                                         Marcos Morais durante a Oficina TecnoPopular. Foto: Mariana Zilli.

Sobre o Conversa de Rua

A jornada de maio foi o nono encontro promovido pelo projeto de extensão Conversa de Rua. Criado no ano 2000, “o intuito do programa sempre foi ampliar a compreensão sobre a vida citadina e o cotidiano do/no urbano e propor uma real troca de saberes entre os sujeitos que estão na rua e os que estão na universidade, buscando produzir conhecimentos partilhados pelo modo como um sujeito pode afetar o outro, e considerando o laço social que podemos construir juntos”, contam Costa e Dias.

O projeto se relaciona com duas linhas de pesquisa desenvolvidas no Labeurb: Tecnologias de linguagem e multimídia e Cidades e tecnologias inteligentes. Além de ser uma oportunidade de aproximar a comunidade e promover a construção de conhecimentos coletivos, o encontro também ajudou a compreender melhor o funcionamento discursivo e ideológico dos projetos envolvidos. 

“Um exemplo é o funcionamento do discurso do empreendedorismo de si que se naturaliza no dizer dos próprios movimentos, que lutam por tecnologias populares e soberania digital, sem que estes percebam que esse dizer materializa a perda de direitos trabalhistas. Esse é o discurso das grandes empresas de tecnologia: “seja colaborador”, apagando o trabalhador e, com isso, os direitos que se ligam a esse sentido, tanto os que já existem, quanto os que poderiam vir a existir”, destacam as pesquisadoras. 

O encontro também está associado ao projeto de pesquisa “Datificação da atividade de comunicação e trabalho de arranjos de comunicadores: os embates com as determinações das empresas de plataformas”, coordenado pela profa. Roseli Fígaro, da ECA/USP, junto ao Centro de Pesquisa Comunicação e Trabalho. Esse projeto é financiado pela Fapesp, através da chamada Lincar/2022 (Processo 2022/05714-0) e se dedica a estudar o processo de datificação da atividade do comunicador.

 

Texto por Mayra Trinca
Fotos por Mariana Zilli