Enciclopédia digital analisa os múltiplos sentidos do urbano

Por Maria Marta Avancini (originalmente publicada em 07/05/2013, pela revista ComCiênciahttp://goo.gl/Ya5dA)

O Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb), do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) da Unicamp, recebeu financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp) para dar continuidade à produção da Enciclopédia Discursiva da Cidade (Endici), no âmbito do projeto "Enciclopédia Discursiva da Cidade: análises e verbetes".

Coordenada por Eni Pulcinelli Orlandi e José Horta Nunes, a Endici é uma enciclopédia digital que tem como objetivo compreender o urbano através da linguagem, utilizando como base a perspectiva da análise do discurso. Nessa medida, mais do que definir palavras, termos e noções associados ao urbano, a Endici tem a intenção de explicitar os processos de significação e as relações de sentido que se estabelecem na cidade. Tais relações envolvem espaços, tempos, sujeitos, instituições, dentre outros tipos de materialidade (por exemplo, jornais, músicas, poesias etc.). 

Ao todo, 12 pesquisadores, alunos de pós-graduação e graduação ficarão a cargo da redação de 240 verbetes que integração a Endici nessa etapa. Os primeiros 40 verbetes deverão estar disponíveis ao público no site da enciclopédia em agosto.

“Cada verbete será abordado a partir de vários pontos-de-vista, trazendo a perspectiva de especialistas, de analistas de discurso e do senso-comum”, explica Nunes. Assim, a intenção é combinar, num mesmo verbete, diversas visões e interpretações a respeito de um objeto simbólico, evidenciando seu caráter polissêmico – os diferentes movimentos de sentido num mesmo objeto. A redação dos verbetes resulta de uma “leitura prismática” dos textos, em que são explicitadas as diferentes faces da cidade.

Um verbete poderá contemplar, então, vários tipos de olhares: o da administração pública, o da legislação, o do pesquisador, o da mídia, o das artes (música, poesia, por exemplo) e o do cidadão comum, dentre outros. Cada um propõe uma perspectiva, um recorte de análise da noção do verbete. “O discurso muda conforme a posição do sujeito”, afirma o linguista. “O discurso do jornalista não é o mesmo do de um administrador ou de um artista”, complementa o coordenador do projeto. 

Essa variedade de perspectivas constitui complexos discursivos que afetam as pessoas que se relacionam com a cidade. “O sujeito é afetado por várias interpretações no contato que mantém com a cidade”, afirma Nunes. 

Divulgação de saberes urbanos

Ao apresentar os verbetes dessa maneira, a Endici tem como objetivo funcionar como um canal de divulgação dos saberes urbanos, expondo o leitor ao complexo discursivo da cidade, em suas diferenças e contradições. “Queremos expor o leitor aos diferentes gestos de interpretação”, reitera.

Evidencia-se a polissemia, ou seja, os diferentes movimentos de sentido que atravessam os temas relacionados ao urbano e sua complexidade - tanto no plano da construção e da circulação dos discursos, quanto no plano das relações dos sujeitos com os discursos.

Dessa forma, se um verbete sobre o termo “mendigo” fosse publicado em um dicionário ou enciclopédia convencional, seria apresentada uma definição: “aquele que vive de esmolas”, como se lê no dicionário Houaiss. Na Endici, o tratamento será diferente, explica o lingüista Nunes. “O verbete deverá incorporar sentidos que ganhou ao longo do tempo e diferentes perspectivas”. 

No passado, o “mendigo” ou o “vagabundo” era uma figura pública, passível de gestos de caridade (a esmola no discurso religioso), hoje já é visto como um caminhante perigoso ou um sujeito improdutivo - a não ser quando exerce atividades artísticas (malabares, performances circenses) ou de pequeno comércio (trabalho informal, flanelinha, limpa-vidros etc.). “Aí ele é ‘tolerado’, considerado produtivo, inserido na sociedade capitalista”, analisa o co-coordenador da Endici. 

Paralelamente, continua Nunes, a legislação e a administração pública tratam, na atualidade, os mendigos como “população em situação de rua”, produzindo outros significados, como o da assistência social, em vista da reintegração à família e ao trabalho (“sair da rua”). 

Em algumas cidades eles são vistos como “vadios” e são objeto de cadastramento, vigilância e punição para uma reedição do “crime de vadiagem”. “Assim, qualquer um que frequenta o espaço público está sujeito a essas diferentes versões que circulam no cotidiano, nas legislações, nos planos de governo e na mídia, interpretações que estão bem distanciadas de outro sentido que pode ser evocado na memória urbana: o do boa praça”.