Argumentação e Análise de Discurso: entre a ideologia e a metáfora


Argumentação e Análise de Discurso: entre a ideologia e a metáfora


Capa do livro Argumentação e Análise de Discurso

Argumentação e Análise de Discurso:
entre a ideologia e a metáfora

 

Argumentation and Discourse Analysis:

between ideology and metaphor

 

Deborah Pereira1

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8157-6970

 

Resumo: Esta resenha propõe uma leitura do livro “Argumentação e Análise de Discurso – conceitos e análises”, de Eni Orlandi, publicado em 2023. A partir de uma visada materialista, Orlandi apresenta uma teoria discursiva da argumentação na qual a articulação com a ideologia e com o inconsciente ocupa papel central. Assim, deslocando-se de uma visão clássica da argumentação – calcada na comunicação, no convencimento e na persuasão –, na teoria empreendida no livro a autora acena para um funcionamento argumentativo que se dá na instância da não-comunicação, priorizando formas outras de estabelecimento dos sentidos, como a metáfora e o non sense.

Palavras-chave: Argumentação, Ideologia, Metáfora, Análise de Discurso.

 

Abstract: This review proposes a reading of the book “Argumentation and Discourse Analysis – concepts and analyses”, by Eni Orlandi, published in 2023. From a materialist perspective, Orlandi presents a discursive theory of argumentation in which the articulation with ideology and the unconscious plays a central role. Thus, moving away from a classical view of argumentation – based on communication, convincing and persuasion –, in the theory undertaken in the book, the author points to an argumentative functioning that occurs in the instance of non-communication, prioritizing other forms of establishing meanings, such as metaphor and nonsense.

Keywords: Argumentation, Ideology, Metaphor, Discourse Analysis.

 

 “A argumentação é ideologicamente estruturada”. Esta afirmação, que faz parte da apresentação do livro “Argumentação e Análise de Discurso: conceitos e análises”, sintetiza a proposta que Eni Orlandi movimenta nesta obra, lançada em 2023 pela editora Pontes. O ano de publicação, neste caso, é chave para compreendermos o interesse da autora na argumentação: o mundo estava se recuperando da pandemia, figuras políticas de extrema-direita triunfavam, governos totalitários se elegiam, discursos que afligem direitos humanos propagavam-se com força. Neste cenário, “a questão da argumentação se impõe como incontornável” (p. 11) e, por uma filiação teórica materialista, Orlandi nos convida a conceber a argumentação discursivamente, compreendendo que o processo de argumentação se dá pela articulação da interpretação com a ideologia.

  Em cinco capítulos, Orlandi trabalha na construção da teoria discursiva da argumentação, trazendo conceitos e métodos da Análise de Discurso e um material analítico atual, que engloba os discursos da extrema-direita sem deixar de considerar as tecnologias e a “cultura do digital” (p. 14). Para isso, a leitura é introduzida por um histórico acerca dos estudos da argumentação, passando pela retórica antiga, pela retórica aristotélica, pela deslegitimação da retórica no século XIX e pelo período após a Segunda Guerra Mundial momento no qual há um enorme desenvolvimento das teorias argumentativas. O pós-guerra, vale dizer, produziu reflexões específicas sobre a linguagem; Tchakhotin (1939), com A violação das massas pela propaganda política, é um autor destacado por Orlandi, já que ele propunha uma ratio-propaganda, isto é, uma propaganda baseada na racionalidade em detrimento da senso-propaganda (que seria a propaganda dos regimes totalitários e tinha como base os “instintos irracionais”). Ou seja, as teorias de argumentação renascem, no século XX, buscando um mundo racional, caçando um logos nos discursos, como se o convencimento tivesse a ver com uma intencionalidade; e, neste sentido, Orlandi se questiona: “e hoje, o que temos?” Esta pergunta é, justamente, o objeto de reflexão da obra, que faz entrar a noção de ideologia no campo da argumentação.

  Oswald Ducrot também é realçado na discussão introdutória feita no livro: embora o linguista francês considere uma imanência à língua no funcionamento da argumentação diferentemente da Análise de Discurso, que concebe a materialidade da língua, com sua exterioridade , Ducrot produz deslocamentos importantes para uma perspectiva discursiva, pois, para Orlandi, ele “trata a argumentação como uma questão de significação” (p. 36).

  Já no primeiro capítulo, intitulado “Semântica Discursiva e Argumentação”, Orlandi traz fortes asserções que considero serem o núcleo da teoria que está sendo empreendida no livro. Ao afirmar que é na instância da não-comunicação que a argumentação será tratada, a autora provoca um desvio dos estudos clássicos acerca da argumentação e, também, de algumas teorias dentro da própria Linguística. Assim, argumentar é

trabalhar a compreensão do sujeito outro, em seus gestos de interpretação, inscrito em certa formação discursiva, face a outras, e não tentar convencer ou persuadir(...). Porque, como sabemos, e se considerarmos a argumentação estruturada ideologicamente, a ideologia não se aprende e nem pode ser mudada a nosso bel prazer. Ela é constitutiva do sujeito e faz parte do seu processo de identificação. (Orlandi, 2023, p. 43).

 

Deste modo, elaborando ainda mais a tese de que a argumentação se dá pelo que é não racional, ou seja, pelo inconsciente e pela ideologia, Orlandi traz, no capítulo 2, uma análise de formulações proferidas por Jair Bolsonaro. Em “Uma Guerra de Sentidos”, vemos como o sentido sempre pode ser outro (Pêcheux, 2002) e que, para isso, é necessário “superar a compreensibilidade” aventurando-se no non sense (Orlandi, 2023, p. 55).

No terceiro capítulo, denominado “Em nome da democracia - quando as palavras perdem sentido”, Orlandi avança em sua teorização analisando o funcionamento da argumentação bolsonarista. Ela retoma a noção de gesto2, de Pêcheux, compreendendo que o argumento é um “gesto de apontar em certa direção de sentido”, de modo que um argumento existe quando uma formulação “faz funcionar um confronto ideológico” (Orlandi, 2023, p. 61). A autora nos mostra como o insignificante - discursos “sem eira nem beira” - e o insignificado - discursos que podem significar qualquer coisa - operam como argumentos que produzem silenciamento. É também nesta parte do livro que a noção de metáfora aparece: a metáfora, ou seja, “palavras que falam com outras palavras” (Orlandi, 2023), está se endurecendo por conta de uma ilusão de verdade3 e, com isso, as palavras já não falam mais com outras palavras e os sentidos se estancam e se perdem.

O capítulo 4, “Da argumentação na análise de discurso”, vai trazer conceituações ainda mais contundentes acerca da teoria discursiva da argumentação. Neste ponto do livro, o conceito de imaginário é mobilizado: a ideologia, que dá estrutura para o argumento, é sustentada pelo mecanismo de antecipação, isto é, por relações imaginárias - pela imagem que é feita da imagem de alguém. E este imaginário, em uma perspectiva materialista, é uma prática (Orlandi, 2023). Outro ponto interessante é a análise da canção O real resiste, de Arnaldo Antunes. Nesta análise, Orlandi descreve como a canção se sustenta na superação da compreensibilidade, já que o artista provoca o público com versos como “autoritarismo não existe” ou “homofobia não existe”. Aqui, temos “a dessignificação como resposta ao processo de dessignificação” (p. 91) e uma argumentação que se dá pelo choque com o non sense.

Em “Sobre discurso e argumentação”, o último capítulo, há uma reflexão sobre o percurso teórico da autora acerca da argumentação. Novamente colocando a ideologia como central no modo de trabalho dos argumentos, Orlandi trata da importância de, na contemporaneidade, “desalojar o Um, o fixo, o estabilizado”, já que por trás “do que se apresenta como crença está o ideologicamente constituído. E contra a ideologia fixada - relações de força estabelecidas pelo poder - não há argumento” (p. 101). O que existe, no lugar do argumento, são as “margens de manobra”4, o incompreensível, aquilo que desliza, a metáfora.

Neste passo, em sua conclusão, Orlandi lembra que a ideologia é um ritual com falhas e a falha é o lugar do possível. Ou seja, ao pensar que a argumentação é estruturada ideologicamente, é possível analisar “tanto a estabilização de sentidos, e o controle social, como as formas de resistência que se constituem pelos processos argumentativos, na produção de outros sentidos” (Orlandi, 2023, p. 116).

  A teoria discursiva da argumentação, enfim, desloca o argumento da perspectiva do convencimento, da persuasão ou da comunicação e considera a possibilidade de movimento e ruptura de sentidos na maneira como a argumentação funciona. É por isso que a metáfora é tão fundamental, principalmente se tomarmos os modos de significação contemporâneos, permeados por uma forma sujeito desarranjada pelas tecnologias digitais (Dias, 2018) que, pelo domínio algorítmico, cristalizam os sentidos e disseminam literalidades. Assim, uma palavra por outra5, o jogo no qual as palavras falam com outras palavras, pode desfazer evidências, desconstruir sentidos dominantes. Neste aspecto, esta obra de Orlandi reforça e atualiza uma célebre afirmação presente em A língua inatingível, de Pêcheux e Gadet (2004): “a metáfora também merece que se lute por ela”6.

 

Referências

DIAS, Cristiane. Análise do discurso digital: Sujeito, espaço, memória e arquivo. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018.

GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível: o discurso na história da lingüística. Campinas: Pontes, 2004.

ORLANDI, E. P. Argumentação e Análise de Discurso – conceito e análise. 1ª ed. Campinas: Pontes Editores, 2023.

PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2002.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. por Eni Pulcinelli Orlandi [et. al.]. Campinas, Editora da Unicamp, 1995 [1975].

PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (1969). Trad. Eni Orlandi. In: GADET, Françoise & HAK, Tony. (Orgs.). Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5ª edição. Campinas-SP: Ed. da Unicamp,2014.

 

 

 

Data de Recebimento: 08/04/2025
Data de Aprovação: 20/05/2025


1  Doutoranda em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP). E-mail: deborah.p16@gmail.com

2  Pêcheux (1969) define o gesto como “ato no nível do simbólico”.

3  Orlandi cita Nietzsche (1983) quando trata desta ilusão de verdade.

4  Nietzsche (1983).

5  É assim que Pêcheux (1975) define a metáfora.

6  Em A Língua Inatingível, há uma nota de rodapé que explica que “a metáfora também merece que se lute por ela” está presente em um livro de Milan Kundera e remete à fala de um poeta.






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