No interesse em questionar sobre a arte como trabalho no simbólico, de modo geral, bem como sobre o feminino – diante do lugar na sociedade dado/ negado à mulher –, busquei eventos e artistas mulheres em uma cronologia própria e significativa do feminino no contexto mais geral das Artes. 2
De uma perspectiva da análise de discurso, pergunto como é “a voz” ou “dar voz” ao feminino nas Artes Plásticas: como são colocados dizeres do corpo/sujeito feminino na ordem do discurso a partir do campo artístico, na relação com o que foi ou é silenciado, de diversas formas, na sociedade e no próprio campo artístico?
No âmbito da teoria linguística, incluindo a análise de discurso, tomaríamos essa voz como enunciação, discurso, produção de sentido. Tratar-se-ia então de uma memória feminina, contorno discursivo passível de ser proposto em uma sociedade que se caracteriza pela oposição de gênero. Compreendemos que o funcionamento dos discursos produz uma memória social que supõe os efeitos de regularização dos sentidos, relativo ao jogo de forças que a atravessa. Admite-se, nessa direção, por exemplo, que há um discurso feminino e um discurso sobre o feminino e que estes se afetam mutuamente, constituindo posições-sujeito pelos imaginários em jogo, em sua diversidade, multiplicidade, produzindo sentidos mas também equívocos, silêncios e silenciamentos.
Procurando integrar a essa reflexão sobre o evento artístico a consideração dos efeitos do pulsional na/da linguagem, que perpassam o simbólico, pode-se assumir o gesto artístico como aquele que é capaz de trazer o indizível, o invisível, o imaterial, pela latência do não sentido, pelo vislumbre do vazio.
Introduzo primeiramente uma reflexão de Pêcheux (1990) sobre a língua, no que diz respeito à inscrição do invisível e da ausência nas formas linguísticas: perceber, nas formas linguísticas, as marcas desse “dar forma” ao invisível e ao ausente, que materializa um movimento do sujeito (em direção ao alhures), ao possibilitar uma relação com “as diferentes modalidades de ausência”, como diz Pêcheux, uma relação com o “não está mais”, com o “nunca estará”, com o alhures (Pêcheux, 1990, p. 8).
A arte é também uma prática de linguagem, e se vale de uma (ou muitas) gramática(s) que acolhe(m) a ausência. Assim, essas formulações de Pêcheux sobre as marcas enquanto inscrição na língua, relaciono-as ao desejo, relaciono-as ao que arregimenta no simbólico um lugar à ausência; relaciono-as à percepção de que a gramática que (se) molda à língua, ao poder suplantar e articular passado e presente, oferece-se também ao invisível, indizível, imaterial – língua que pressupõe não apenas que o sujeito dirija-se sobre um outro tempo/ espaço, mas também, com isso, que se dirija a um Outro, presente como por-vir (Didier-Weill, 1997, p. 15-16).
Pêcheux (1990) observa como as formas linguísticas convocam o alhures, o não-realizado. Mas ainda, para além das possibilidades da língua em suas marcas, em que as “modalidades de ausência” mostram-se em sua diversidade como parte do simbólico, a língua acolhe e não-acolhe o invisível e o ausente. A partir da relação do sujeito com a língua, há possiblidade e impossibilidade. Não é a despeito de um lugar pré-existente ao sujeito da/na língua que o simbólico não dá conta do real.
Assim, há uma fronteira cambiante na prática de linguagem, uma fronteira prestes a ser invadida, ultrapassada, derrubada. O invisível, o desejo pode ser encarnado e, se o sujeito, conforme Orlandi (1998), “se estabelece um lugar possível no movimento da identidade e dos sentidos”, a linguagem é tensionada pelo transbordamento do impossível.
O objeto artístico aqui considerado é uma performance, em que a artista coloca-se nua: trata-se de Interior Scroll, de Carolee Schneemann, um evento que se insere no contexto do movimento feminista e das décadas de 60/70 de modo geral, a partir dos EUA, que viveu manifestações político-artísticas à época, relacionadas ao questionamento sobre costumes tradicionais e o lugar da mulher na sociedade. Esse trabalho foi apresentado duas vezes, ambas nos EUA, em 1975, em uma exposição chamada “Woman Here and Now” em East Hampton (Nova York), e em 1977, no Festival de Cinema de Telluride (Colorado). Na primeira apresentação o público era quase todo feminino.
Retomo Didier-Weill, que fala de como são heterogêneas “a materialidade do corpo, a imagem do corpo e o verbo enxertado neste corpo” (Didier-Weill, 1997, p. 19). O corpo, que não é tão somente sua realidade concreta, suas formas e seu funcionamento bioquímico, tem a ver com o mal estar da civilização, o sintoma, e com o fato de que o homem “após ter-se tornado falante, viu-se despojado daquela naturalidade que tanto o fascina no corpo do animal” (p. 20). Parece-me que esse modo de formular a questão é oportuno aqui, pois, além da consideração fundamental acerca do simbólico como algo que acontece no corpo e com o corpo, também articula essa ideia de uma “naturalidade perdida”, dada a inserção do homem na linguagem, que o torna sujeito.
Tomemos essa performance de Schneemann, em que a artista coloca-se nua: o evento significa a partir de um certo contexto em que esse gesto implica o confronto com uma memória (regularidades discursivas) sobre a arte, sobre o que é o artista e ainda sobre o que deve ser a mulher. Nesse âmbito, pode-se considerar se a presença do artista com o seu corpo desnudo em uma performance permite que nos confrontemos com a naturalidade perdida e mobilizemos o enfrentamento ao disfarce sobre o mal estar do humano, assumindo o desconforto, o desconcerto. Suponho então que essa inserção do corpo na arte pode produzir efeito de um corpo “naturalizado”, por oposição ao corpo “idealizado”, ao romper com dada formulação corporal, que se repetiu historicamente no contexto da Arte (pintura/ escultura).
Frequentemente acerca do corpo feminino, imagens para corpo/ sujeito feminino foram/ são fixadas enquanto corpo objeto do olhar, corpo fetichizado. Por exemplo, no quadro de Renoir “Nu reclinado em almofadas”, de 1907:

Nas tradições da pintura/ escultura europeias, o lugar do corpo é outro em relação ao artista, corpo representado que situa o corpo do artista fora da tela (lembrar do quadro As meninas de Velasquez, que brinca com esse lugar do artista, trazendo-o pelo reflexo do espelho). Em Matesco (2009), temos uma breve apresentação sobre o corpo no decorrer da História da Arte, com suas especificidades contextuais: imagem e semelhança de Deus (Idade Média), morada do eu (Renascimento), fragmentação (vanguardas).
No contexto contemporâneo, o corpo do artista integra de diferentes maneiras a obra ou o processo artístico, enquanto materialidade mesmo, e passa também a ser repensado e reinterpretado enquanto objeto da exploração artística. Dos trabalhos que estendem o espaço pictórico (action painting, por exemplo), colocando o corpo como ferramenta para aplicar tinta, a trabalhos que vão utilizar substâncias reais em suas ações (fluídos corporais, por exemplo), propõe-se no contexto das Artes Plásticas o “questionamento do nu eterno e universal” (Matesco, 2009, p. 46).
É importante fazer uma observação sobre a referência à História da Arte, da qual estou me valendo, apesar de reconhecer na mesma uma construção particularizada, que se realiza a partir do lugar da chamada civilização europeia (patriarcal e colonialista), que deixa de fora uma série de manifestações, que não eram (não poderiam ser) reconhecidas como Arte. Portanto, esta análise coloca em jogo uma compreensão crítica dos elementos inseridos nos limites desse viés ideológico do que seja Arte.
Essa inserção do corpo nos processos e nas próprias obras incide sobre o campo da arte enquanto discurso, atua como “feminilização” do discurso artístico, não só por uma relação da produção artística com reflexões feministas, mas também pela potencialização da crítica da cultura, que abre para novos olhares e lugares de fala.
Estou me referindo neste artigo ao trabalho de Schneemann enquanto performance, atentando para o fato de que é esta uma nomenclatura mais geral – o que dá lugar a uma discussão interessante, que coloca em jogo as possibilidades de significação do corpo/ sujeito em termos dos efeitos e possibilidades da presença/ ausência do artista.
O trabalho de Schneemann, junto a outros que compõe o contexto da body art, incide em termos de uma ética da arte, confrontando o pressuposto, na prática modernista, formalista, estruturalista, sobre o distanciamento da subjetividade do artista em relação a seu trabalho.
Na história da arte, o corpo é representado em esculturas e telas, inserido no seu contexto cultural, de tal modo que “O nu não representa um corpo, mas uma ideia: a ideia de homem” (Matesco, 2009). A ideia de homem se transforma no decorrer da história e discursividades distintas perpassam a arte tradicional (anterior às vanguardas), no que diz respeito ao corpo nela presente enquanto espaço pictórico ou espaço escultórico. Mas será necessário romper com essa ideia e trazer o corpo referindo corpo... para introduzir a mulher e um feminino des-objetificado no contexto artístico.
De objeto (motivo), o corpo passa a ser introduzido nesse âmbito da prática artística explicitamente como ferramenta e materialidade. Tomando esses trabalhos mais atuais, e compreendendo-os relativamente ao que se apresentou como corpo (trazido pelo nu) na História da Arte, verificam-se efeitos de naturalização e des-fetichização.
Jones (2013) argumenta que a body art supõe o deslocamento da “fantasia do sujeito modernista fixado, normativo e centrado”, e significa desafio ao “machismo, racismo, colonialismo, classicismo e heterossexualismo subjacentes a essa fantasia”. Para Jones, Interior Scroll executa “uma narrativa de prazer carregada de erotismo”, que contraria o olhar masculino fetichista. Jones assim o descreve:
“Depois de cobrir o corpo e o rosto com pinceladas de tinta, Schneemann puxou uma longa e fina mola de papel da vagina (‘como fita de telégrafo... linha prumo... o cordão umbilical e a língua’), desenrolando-a para ler um texto narrativo para o público. Parte desse texto diz o seguinte: ‘Conheci um homem feliz/ um cineasta estruturalista... ele disse: nós temos orgulho de você/ você é encantadora/ mas não nos peça / para dar uma olhada nos seus filmes/ ... nós não podemos olhar para/ a bagagem pessoal/ a persistência dos sentimentos/ a sensibilidade tátil’. Por meio dessa ação, que ‘estende uma sensação fantástica em movimento’ e ‘se origina junto (...) à persistência frágil da linha se movendo no espaço’, Schneemann integrou o interior ocluído do corpo feminino (com a vagina como ‘a câmara translúcida’) ao seu exterior móvel, recusando-se ao processo de fetichização, que requer que a mulher não exiba o fato de que a ela não faltam, mas que possui, os órgãos genitais, e que eles são não masculinos.” [Disponível em: https://performatus.com.br/traducoes/presenca-in-absentia]
Assim como Jones, estudiosa das body artworks, procuro abordar um trabalho do qual não estive presente enquanto público “por meio de seus vestígios fotográficos, textuais, orais, em vídeo e/ou filme” (Jones, 2013). Também como Jones, acredito que não temos como nos relacionar de forma direta, sem mediação, com qualquer tipo de “produto cultural”, nas suas palavras, “inclusive a body art”. Mas, como proposta em relação a essa referência ao “produto cultural”, apresento uma discussão sobre a heterogeneidade da/ na linguagem pela sua corporificação enquanto objeto simbólico.
Nomeio objeto simbólico ao construto social/ linguageiro, algo que se coloca como elemento significante entre os sujeitos, em uma complexa diversidade mutante, considerando sua característica definidora como a de “articular heterogeneamente as diferentes linguagens” (Silva, 2012).
Ao mesmo tempo que a própria pesquisa documental revela a especificidade da boby art enquanto evento característico de uma certa época e da sua prerrogativa da presença corpo-a-corpo, artista e público, de um caráter ritual intrasferível, também se considera que o estar presente ao evento, que essa especificidade, “não deveria ser privilegiada em detrimento à especificidade de conhecimentos que se desenvolvem em relação aos vestígios documentais de um evento desse” (Jones, 2013). Enquanto pesquisa analítica sobre a arte, não se pode, segundo Jones, desmerecer a possibilidade de discussão de um trabalho da body art a partir da documentação deste e acrescenta que o estar presente não tem “relação privilegiada com a ‘verdade’ histórica da performance” (Jones, 2013).
Em entusiasmados testemunhos sobre as performances na body art, alega-se a possibilidade única de se ter a presença do artista, que na body art temos um reflexo direto das experiências do artista ou uma integração da subjetividade do artista à sua obra (segundo Rosemary Mayer, citada por Jones 2013, “unir o self subjetivo e objetivo como entidade integrada”). Essas manifestações/ crenças são indicativas de certa idealização da subjetividade como mundo interno a ser atingido pela arte, ou expressado através dela, que se projeta na e pela forma moderna de se pensar a oposição sujeito/ objeto.
A escolha de Schneemann pela performance como forma artística para seu trabalho diz respeito ao fato de que ela acredita que a figuração estática não seria capaz de alcançar a crítica ao efeito de distanciamento buscado pela prática modernista. Muitos de seus trabalhos, como este, pressupõem “um desenrolar temporal com a presença literal do corpo da artista e de um público” (cf. Matesco, “Olhando Interior Scroll [Pergaminho Interior], in Schneemann, 2014). Em seu projeto há uma proposta da obra enquanto evento que se corporifica em um dado espaço/ tempo, considerando a importância acerca dessas presenças de artista e público – como o próprio espetáculo teatral que, entre diferentes concepções, pode também ser compreendido em sentido ritual, considerando que o público não será então tomado como “mero espectador”.
Schneemann já estava trabalhando nessa direção quando em 1969 surgiu a expressão body art, rótulo que veio agrupar várias tendências que produziam uma des-fetichização do corpo humano enquanto corpo heroico (cf. Matesco, in Schneemann, 2014). Lembramos ainda que, com relação aos eventos que antecederam esse momento, no contexto das vanguardas artísticas, verifica-se outra formulação do corpo, como espaço pictórico mesmo, que vem trazer uma perda de totalidade e/ou uma desintegração da figura humana: o corpo é distorcido, remodelado, transfigurado pela dor ou diluído pelo desejo, que se projeta simbolicamente em objetos (dadaísmo, cubismo, expressionismo, surrealismo... cf. Matesco 2009).
Na década de 1960-70, a arte passa a se dirigir às coisas do mundo, haverá a possibilidade mais efetiva de se compor articulando diferentes práticas e diferentes materiais artísticos, de se transformar objetos cotidianos pela captura artística destes, de buscar o rompimento das barreiras entre arte e não arte e trazer formas de inserção do público, para uma problematização do espectador como algo fora do trabalho artístico.
Há uma mudança de estatuto dos trabalhos com o corpo, que sugere uma diferença conceitual importante entre body art, com o “engajamento direto do corpo, incontornável para a arte dos anos de 1960 e de 1970” (cf. Matesco, in Schneemann, 2014), e performance, uma nomenclatura mais geral. Portanto, deixamos esse momento em que o corpo materializava a arte no tempo/ espaço da duração de um evento, e chegamos a uma certa concepção indiscriminada em que o evento (ritual) e a sua imagem fotográfica ou fílmica serão tomados um pelo outro. E esse sentido de performance condiz com essa amplitude, descontextualizada dos eventos da body art.3
Considerando-se a noção de objeto simbólico, a performance em presença e o filme de uma performance são objetos simbólicos diferentes, muito embora possa um filme funcionar como documentação de acesso ao evento em presença. Ainda conforme Matesco, “a relação entre ação e imagem adquire novo caráter a partir dos processos conceituais, pois ao invés de registros, muitos trabalhos passaram a ser concebidos enquanto imagem. Uma compreensão mais abstrata e intelectualizada do corpo e a assimilação da performance pelo sistema de arte foram decorrentes dessa transformação” (cf. Matesco, in Schneemann, 2014).
Entre os documentos a que temos acesso para uma compreensão da performance Interior Scroll, está a sequência de fotos abaixo:
Imagem 2: Carolee Schneemann, Interior Scroll, 1975. Fotografia de Anthony McCall. Cortesia de Carolee Schneemann.

Disponível em https://performatus.com.br/traducoes/interior-scroll/
Temos também depoimentos da própria artista. Descrevendo o ritual, Carolee diz:
“Eu me aproximei da mesa vestida e segurando dois lençóis. Tirei a roupa, enrolei-me em um lençol, estendi o outro em cima da mesa e disse ao público que ia ler ‘Cézanne, she was a great painter’ [‘Cézanne, ela foi uma grande pintora’]. Soltei o lençol que me cobria e ali, em pé, pintei grandes pinceladas para definir os contornos do meu corpo e do meu rosto” [SCHNEEMANN, 2014, disponível em https://performatus.com.br/traducoes/interior-scroll/ ]
No nome “Cézanne” Carolee encontra “Anne” e projeta aí seu desejo de se tornar artista, não só artista, mas uma grande artista, algo negado à mulher. O texto lido nessa performance, segundo a artista, é “uma sucessão de afirmações simples daquilo que uma mulher deseja na vida – direto e cheio de ricas contradições” (Schneemann, 2014).
O que a performance produz? Ela transita entre os territórios do corpo/ sujeito feminino (por oposição ao masculino) e do corpo/ objeto (sujeito) artístico, entremeando e expondo contradições em ambos, promovendo equívocos outros. Na perspectiva de uma tradição da arte (mas não só), o corpo feminino é falado (voyerizado), ao passo que a realização de Schneemann em Interior Scroll inscreve de maneira vigorosa o corpo (sujeito) da mulher como um corpo que diz. Não ser imagem, mas “um intercâmbio de negociação contínua de desejo e identificação” (Jones, 2013) – a performance convoca-nos se estamos em sua presença ou se a ela retornamos através da documentação produzida.
Na dependência do olhar do Outro, o sujeito está pronto a se renegar, segundo Weill (1997), “a desqualificar-se como ser falante e, se este sujeito é uma mulher, a obedecer, como imagem, à seguinte injunção: ‘Seja bela e cale- se!’. O sentido dessa auto-desqualificação é: ‘Consinto no silêncio já que consinto em não ser mais do que imagem visível, quer dizer, coisa despojada de invisível. Na verdade, sei que o que fala não poderia ser senão invisível’” (p. 23).
A história da arte (pintura/ escultura) diz da importância do corpo humano, que foi, no decorrer dessa, de seus principais motivos.4 Para a sua representação, o acesso ao nu e ao corpo anatômico (modelo/ cadáver) era imprescindível e, dessa observação/ estudo do corpo, a mulher era excluída, de modo que havia uma exclusão para a mulher como realizadora do principal motivo das pinturas, mesmo depois das mulheres serem admitidas como artistas.
A performance de Schneemann é desestabilizadora desse lugar de imagem visível para o corpo/ sujeito, através da possibilidade de ressignificar a posição feminina, é um trabalho que reverbera sobre o olhar que paralisa/ esvazia o sujeito olhado (imagem). Na instalação/ gestualidade da performance, o desenrolar que expõe um movimento/ texto, traz então o inimaginável. A significação do próprio sexo feminino entra em causa.
A performance implica a língua, na seu concepção e realização. Segundo a própria artista, o gesto de tirar uma forma que se assemelha a uma serpente do seu interior seria um gesto de nomeação:
Pensei na vagina de diversas maneiras – do ponto de vista físico e conceitual, como forma escultural, referência arquitetônica, fonte do conhecimento sagrado, êxtase, nascimento, passagem, transformação. Vi a vagina como uma câmera translúcida, da qual a serpente era um modelo externo: avivada por sua passagem do visível ao invisível, uma mola espiralada, anelada com a forma do desejo e dos mistérios da geração, atributos da força sexual tanto feminina quanto masculina.
A mensagem que eu leio para Interior Scroll é dos textos feministas de Kitch’s Last Meal [A Última Refeição de Kitch]. A imagem ocorreu como desenho; essa imagem parecia estar relacionada ao poder e à posse da nomeação – o movimento do pensamento interno ao significado externo e a referência a uma serpente que se desenrolava, a informação de fato (como fitas de dados, arco-íris, Torá na Arca, cálice, galeria do coro, encanamento, torre do sino, cordão umbilical e língua). [Schneemann, 2014. Disponível em https://performatus.com.br/traducoes/interior-scroll/]
O pensamento da artista, que a partir de 1960 pesquisou e concebeu a ideia de espaço vúlvico, formula-se pela visualidade: “Vi a vagina como uma câmera translúcida”. Na compreensão dessa visualidade, nomes e expressões descritivas perfazem a significação em séries, cadeias, abrindo direções.
Na sequência desse evento, a artista apresenta de início um avental, tapando o local que traz o dispositivo que contém o pergaminho: caixa de acrílico transparente, dispositivo que, ao ser imaginarizado pela artista, dará a possibilidade da renomeação da vagina, pelas contradições trazidas entre visível/ invisível, gestualidade, teatralidade, equipamentos, conjunto díspar que produz um deslocamento sobre os sentidos da virilidade como atributo unicamente masculino, negado à (e renegado pela) posição feminina.
Trata-se de realizar com esse dispositivo (caixa de acrílico transparente) a menção a um pergaminho, seu desenrolar, o acesso a uma escrita anterior (ancestral?), realizar uma leitura ritual desse texto proveniente do corpo próprio à mulher, ou precisamente do chamado “espaço vúlvico” – elemento que se apresenta como pesquisa e investimento no percurso de trabalho dessa artista. A materialidade da língua, declaração em prosa poética, inscrita em uma simulação de pergaminho, formula-se enquanto mensagem de um outro tempo, originado de um corpo feminino que se apresenta deslocado de uma representação (olhar masculino) de corpo objeto.
“A leitura foi feita em cima da mesa, assumindo uma série de ‘poses de ação’ de modelo vivo, com o livro equilibrado em uma mão. Na conclusão, larguei o livro e me coloquei em pé, ereta no meio da mesa. O pergaminho foi extraído lentamente, à medida que eu o ia lendo, centímetro a centímetro”. [Schneemann, 2014. Disponível em https://performatus.com.br/traducoes/interior-scroll/]
Assim, esse “pergaminho interior” fala de um espaço simbólico, espaço de produção de linguagem/ produção subjetiva.
Em seu conjunto, este trabalho implica em uma composição heterogênea: um texto impresso e dobrado, simulando pergaminho/ fita de dados, vai ser desdobrado aos poucos, atingindo tamanho e flexibilidade, simulando uma serpente... Um texto é lido, adereços são utilizados, o corpo assume poses, o corpo integra gestos de pinceladas, uma mesa situa a artista em meio a um público...
“A imagem ocorreu como desenho”:
Imagem 3

Disponível em: https://www.anothermag.com/art-photography/gallery/7928/carolee-schneeman/4
A partir dessa imagem imaginarizada, a artista vai colocar seu corpo na realização da performance, que chega a um ápice através da leitura do pergaminho interior, Interior Scroll, nome provocativo, escolhido como título para a própria performance. Esse pergaminho, ao ser extraído da vagina (gestualidade projetada anteriormente no desenho), a renomeia: câmara translúcida.
A nomeação em uma obra nas Artes Plásticas proporciona brincar com e entre visível/ invisível, desestabilizando, opacificando, presentificando equívocos, colocando questões, promovendo (des)entendimentos... sobretudo se não estamos mais no contexto de uma arte que se situa enquanto representação. Como em:
Imagem 4:Vê-nus, Tunga, 1976

[in: https://www.tungaoficial.com.br/pt/trabalhos/ve-nus/]
A relação obra/ título no trabalho acima de Tunga é muito produtiva, inclusive para a questão que nos toca em relação ao corpo nas Artes Plásticas, mas não será objeto de desenvolvimento aqui. A ideia é apenas apontar para esse elemento, o título, que vem atrelar a língua ao trabalho plástico.
Em seus extremos, por um lado, uma tradição idealmente descritiva, sobretudo na aposta representacional na arte, por outro lado artistas que em alguma ou algumas obras articulam um “Sem título” ao trabalho, sendo que isto pode se dar como recusa explicitada ou pode manifestar uma impossibilidade – posições discursivas e políticas que derivam de uma dada busca que permeia o trabalho, colocando as suposições eventualmente ou de que a representação/ apresentação deve ser exata, inequívoca, ou de que a visualidade deve bastar em sua possibilidade ampla de se oferecer ao público enquanto objeto interpretativo em aberto.
Mas a recusa ao título ou sua ausência, como modo de se manter uma interpretação aberta, deixa a língua fora? Tendo a acreditar que, em qualquer caso, a língua irá fazer parte do jogo, considerando-se inclusive que o silêncio, em suas formas, é parte da língua (Orlandi, 1992).
Lembremos do corpo presente no percurso da história da arte como espaço pictórico ou espaço escultórico, em significações diversas de beleza, perfeição, do divino e depois, por exemplo, no Renascentismo, quando a inscrição do corpo na arte deixa de remeter à representação da imagem e semelhança de Deus, de “morada do eu” – efeito de um corpo estudado anatômica, fisiologicamente etc., e trazido à contemplação, matematicamente compreendido. A língua estando ou não explicitada no objeto artístico significações conceituais produzem-se na relação com os discursos sociais, científicos, etc. e atravessam o objeto simbólico.
Corpo, sujeito e arte na discussão de objeto simbólico
O modo de presença/ ausência do corpo nas Artes Plásticas é o aspecto que foi aqui considerado para uma reflexão sobre a materialidade discursiva e sobre a formulação dos discursos. Os contornos no objeto simbólico são fluidos, entre interior e exterior, a “criação” traz do sujeito (isso, algo) para olhar, re-velar, mas também des-ver.
A posição equívoca do corpo no discurso artístico é interrogada pela body art que desmistifica o gesto formalista de separação sujeito (subjetividade do artista) e objeto (criação do artista), gesto que inscreve certo ideal de pureza para a significação da obra. Um outro ideal recoloca-se na body art pelo entusiasmo de ver complementariedade, ver esse tipo de evento como forma de trazer a subjetividade atrelada ao objeto artístico.
A visualidade demanda a possibilidade de uma abordagem na perspectiva da linguagem, o que se tem procurado realizar a partir da teoria e metodologia da análise de discurso. Considero que filmes ou jornais, por exemplo, são objetos simbólicos que podem ser tomados pelo analista de discurso. São objetos simbólicos na perspectiva que dão forma, que materializam a relação dos sujeitos com a linguagem; são objetos que tem historicidade, e que se apresentam fundamentalmente heterogêneos em termos de linguagem/linguagens.
Trata-se de uma consideração de modos de circulação das linguagens a partir de construtos sócio-históricos – como o jornal, sobre o qual realizei algumas análises, compreendendo-o enquanto formulação do discurso jornalístico.5 A noção de objeto simbólico constitui-se em uma proposta de abordagem para as questões que envolvem a linguagem na mídia e na arte, a partir do contexto da análise de discurso, considerando-se a heterogeneidade e a espacialização.
A heterogeneidade, que tem sido apontada e abordada pela teoria da AD e seu entorno, será trabalhada por vários autores, em compreensões específicas. Implica na investigação acerca da materialidade do discurso, bem como sobre a sua incompletude. Destaco a reflexão sobre o silêncio (Orlandi, 1993), que é um modo de se pensar, na instância do discurso, a indistinção, a instabilidade e a dispersão como próprios dos processos que envolvem a produção de sentidos, a memória discursiva, em sua historicidade. Destaco também a reflexão de Lagazzi (2009, 2017) que, pela produtividade metodológica do conceito discursivo de recorte, procura compreender o que chama de composição fílmica e, nessa composição, concebe as diferentes linguagens em sua incompletude – portanto, não se trata de uma relação de soma em que uma linguagem vem suprir a falta da outra, mas, antes, são linguagens que, ao se articularem, expõem as faltas, as falhas do/no simbólico, não fechando os sentidos.
A linguagem assume lugar no espaço, características materiais de formulação, em adventos como os da própria “escrita”, que circula de diversos modos. No campo das Artes, esse “dar forma” faz a linguagem tomar corpo como espaço pictórico, espaço escultórico, espaço sonoro, espaço teatral etc., articulação no diverso (materiais e materialidades), que produz contornos.
O simbólico atravessa o corpo, o homem constitui-se como ser simbólico, faz-se sujeito, enquanto “falante”. O corpo na arte é representado, é instrumento e é materialidade. No sentido de uma compreensão da performance, o corpo mostra ainda que não é suficiente em sua significação, mas exibe sua própria falta.
Ao mesmo tempo, a presença do corpo do artista evidencia um caráter político pelas marcas da significação do corpo enquanto corpo social: gênero, etnia etc. É interessante que o trabalho de Schneemann foi questionado por feministas, em sua possibilidade de crítica, pelo fato de o corpo da artista, que ela utiliza nas suas obras, ser um corpo condizente com os padrões de beleza vigentes.
O corpo de Schneemann na performance Interior Scroll diz sobre o corpo da mulher, ou seja, o evento artístico traz para a cena, para o público, discursivamente, o corpo/ sujeito mulher, considerando-se inclusive imagens fixadas socialmente e a possibilidade ou mesmo o imperativo de questionar o olhar.
Didier-Weill (1997) fala daquele sujeito que na dependência do olhar do Outro é imobilizado e perde, segundo ele, “aquela coisa viva que há nele e que é a sua parte de invisibilidade”. O autor fala de uma: “imagem despojada de sua parte inimaginável” (p.23).
O corpo de Schneemann faz poses de modelo, trazendo a significação do lugar do corpo feminino na arte, como corpo a ser desenhado por, movimenta-se compondo arranjos corporais que imitam esse corpo objeto ao olhar do artista. Em uma descrição desse evento, Schneemann diz que primeiramente desnuda o próprio corpo e depois define seus contornos, do rosto e do corpo.
Penso nesse gesto como a retomada de um território ocupado, penso nesse sujeito mulher que torna seu o próprio corpo, nessa artista que se faz artista ao tomar posse desse território que, ao olhar do Outro, olhar medusante, é silenciado.6
O objeto simbólico, que não corresponde ao objeto teórico da análise de discurso, o discurso, é efeito e constitui-se da materialidade linguístico-histórica dos discursos. Tais objetos inscrevem-se pela produção/ formulação dos meios históricos de circulação discursiva, fazem parte do modo como as linguagens tomam corpo, colocando-se em circulação (Orlandi, 2001) na sociedade/ história.
Não se trata da separação sujeito/ objeto, na linguagem não são (nunca) objetos acabados, plenos, mas objeto como gesto: implica gesto, produz gesto no simbólico. A performance nos convoca como projeção da trama que dá lugar ao desejo. Um interior é referido para assumir corpo no entremeio (visível/ invisível).
Referências:
DIDIER-WEILL, A. Nota Azul – Freud, Lacan e a Arte Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria Lmtda, 1997.
JONES, A. “‘Presença’ ‘In Absentia’: A Experiência da Performance como Documentação”. Trad. de Ana Ban. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 6, set. 2013. ISSN: 2316-8102.
LAGAZZI, S.M. “Trajetos do Sujeito na Composição Fílmica”. In: FLORES, G.;GALLO, S.; LAGAZZI, S.; NECKEL, N.; PFEIFFER, C.; ZOPPI-FONTANA, M. (Org.). Análise de Discurso em Rede: Cultura e Mídia. 1aed.Campinas: Pontes, 2017, v.3, p. 23-39.
MATESCO, V. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
ORLANDI, E. As formas do silêncio. Campinas, SP: Ed da Unicamp, 1992.
ORLANDI, E. Discurso e texto – formulação e circulação dos sentidos. Campinas, Pontes, 2001.
PÊCHEUX, M. “Delimitações, inversões, deslocamentos”. In: Cadernos de Estudos Linguisticos. IEL/ Unicamp, 1990.
SCHNEEMANN, C. “Interior Scroll [Pergaminho Interior]”. Trad. de Ana Ban. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 8, jan. 2014. ISSN: 2316-8102.
SCHNEEMANN, C. More than Meet Joy: performance, works and selected writings. New York: McPherson & Co, 1979.
SILVA, T. D. Mídia, produção textual e tecnologia: da leitura, das imagens e do digital. Campinas: Pontes, 2017.
SILVA, T. D.; SOUZA, T.; AGUSTINI, C. (Org.). Imagens na comunicação e discurso. São Paulo: Annablume, 2012.
1 Este artigo é resultado da reelaboração de uma análise que produzi no projeto de pesquisa “Arte, escrita e sujeito: arquivos, práticas e tecnologias de linguagem”, vinculado ao Programa de Pós-graduação de Ciências da Univás (2016-2018).
2 “A dificuldade comum para diferenciar happening, Fluxus, body art e performance advém do fato de que um mesmo ato pode envolver várias denominações artísticas. Esses termos foram criados em momentos precisos e trazem consigo referências culturais diferentes (MATESCO, 2009). ”
3 O substantivo “motivo” refere, no contexto das Belas Artes, o assunto de composição. O substantivo guarda uma relação com o verbo “motivar”.
4 Cf. Silva (2017), em que analiso a espacialização da leitura no jornal, através, de uma arregimentação tecnológica do design no cotidiano jornalístico da imprensa na década de 60.
5 O mito da Medusa ilustra a pulsão escópica, onde o ato de ver e ser visto, ao preço do desaparecimento do sujeito diante da imagem de um gozo mortífero, leva a um estado de fixidez e petrificação. O olhar que seduz e petrifica atua como um reflexo da angústia diante do que não se pode simbolizar, ou do confronto com a pulsão de morte.
6 Possui doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. Atuou como Professora adjunta da Universidade do Vale do Sapucaí e Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem. E-mail: telmadds@gmail.com.