Iniciando a conversa
Este trabalho se inscreve na Análise de discurso de linha materialista franco-brasileira, e dizer isso implica assumirmos os desenvolvimentos teóricos e analíticos produzidos na América Latina, sobretudo no Brasil, sendo consequente com as formulações de Michel Pêcheux quanto à materialidade discursiva.
Pretendemos, neste texto, dar continuidade aos gestos de compreensão dos modos de produção de sentidos do corpo-imagem em discursos de escritoralidade e, mais precisamente, compreender em que medida o modo de circulação dessa forma discursiva afeta ou determina os modos de individua(liza)ção do sujeito, na contemporaneidade. Assim, podemos
(...) falar de uma forma-discurso da ESCRITORALIDADE, uma forma-discurso sem as margens estabilizadas, um discurso ele próprio desestabilizador, na medida em que produz efeito de autoria sobre sujeitos não alinhados às conhecidas instâncias de poder, que são próprias dos processos discursivos identificados no discurso da escrita (DE) (Gallo, 2011, p. 418) e, por outro lado, não alinhado tampouco às instâncias sempre ilegítimas e provisórias do discurso de oralidade (DO): uma forma discursiva com características tanto do DE, quanto do DO, e que contempla os discursos que se originam na internet (Gallo, 2011, p.418)
Para tanto, pretendemos realizar dois movimentos: o primeiro é retomarmos uma análise realizada por nós, há quase uma década3, quando a rede social mais conhecida era o Faceboock. Para esse exercício foi fundamental mobilizarmos, além da noção de forma-discurso de escritoralidade, a noção de corpo-imagem. Essa noção foi formulada a partir da prática de vídeos-performances analisadas entre os anos de 2013-2015, e partiu da compreensão do corpo e da imagem enquanto materialidades significantes em imbricação (Lagazzi, 2011, p. 402). Corpo e imagem não lidos um em detrimento do outro, e sim, ambos funcionando e produzindo sentidos no entremeio. Como dissemos à época:
...discutir sujeito e imagem no processo de interpretação, implica em considerar as questões do imaginário, do real e do simbólico. É nessa intersecção de sentidos: gesto-corpo-presença-sujeito-efeito, que busco compreender o corpo-imagem na arte e no audiovisual como possibilidade de inscrição. (Neckel, 2015, p. 281).
Ao retomarmos tal formulação, hoje, considerando os dispositivos tecnológicos que surgiram a posteriori, nos permitimos questionar: o corpo-imagem na arte é o mesmo do corpo-imagem nas plataformas digitais, e depois delas, nas IAs? Na tentativa de responder a essa questão, avançamos para o segundo movimento: um corpo-imagem ou uma imagem-corpo ficcional, ou seja, com a disseminação do uso das IAS acrescentamos, em nossa análise, um segundo material, para tratar da manipulação de uma imagem-corpo ficcionalizado. Estamos nos referindo, aqui, à recente tendência viral no Instagram, de transformar imagens de adultos em bebês, ou algo semelhante a isso, por meio de recursos de inteligência artificial (IA), o que consiste em uma prática audiovisual que combina procedimentos tecnológicos avançados e produção humorística digital. Emergindo com maior presença em 2025, essa produção que vamos analisar, utiliza algoritmos de IA para gerar conteúdos visuais que reinterpretam a fisionomia adulta em sua versão infantilizada, permitindo a criação de vídeos nos quais as versões "bebês" dublam áudios e participam de contextos performativos inusitados, configurando um fenômeno de cultura digital que articula inovação tecnológica, ludicidade e estratégias de visualização e engajamento nas redes sociais. Ou seja, assume-se a deepfake como condição de possibilidade técnica para a formulação e circulação desse corpo e dos seus efeitos de sentido. Propomos, antes de avançarmos na análise, um breve recuo teórico. Em seguida, retomaremos o primeiro gesto de análise e dele avançarmos para o segundo material ao que estamos, provisoriamente, denominando de imagem-corpo ficcional, ou seja, um corpo projetado para ser imagem, mantendo ou não elementos de conexão com a imagem de um corpo de carne e osso.
Retomando noções de um percurso da AD materialista Franco-Brasileira
Na perspectiva discursiva que adotamos, compreendemos os “novos” regimes de visibilidade (final do século XX, início do século XXI) como um acontecimento discursivo, que podemos compreender como um ato simbólico de tipo particular. Nas palavras de Michel Pêcheux
Existe, por outro lado, um sistema de signos não linguísticos tais como, no caso do discurso parlamentar, os aplausos, o riso, o tumulto, os assobios, os “movimentos diversos”, que tornam possíveis as intervenções indiretas do auditório sobre o orador; esses comportamentos são, na maior parte das vezes, gestos (atos no nível simbólico) mas podem transbordar para intervenções físicas diretas; infelizmente, faz falta uma teoria do gesto como ato simbólico no estado atual da teoria do significante, o que deixa muitos problemas sem resolução: quando, por exemplo, os “anarquistas” lançavam bombas no meio das Assembleias, qual era o elemento dominante: o gesto simbólico significando a interrupção a mais brutal que seja, ou a tentativa de destruição física visando tal ou tal personagem política considerada nociva? (Pêcheux, [1969], 1997, p. 78)
Ao propor essa noção de “ato simbólico”, Pêcheux alarga o campo de materialidades discursivas passíveis de interpretação, pela via do simbólico. É possível dizer que Pêcheux nos aponta para a possibilidade/emergência de análises discursivas em outros sistemas de signos. A escola brasileira de análise do discurso tem pesquisado com afinco tal proposição, avançando sobremaneira em gestos de análise que tomam a materialidade discursiva em sua extensão, para além do signo linguístico, considerando-o na relação com outras materialidades significantes4.
Assim, também as noções de imbricação material5 (Lagazzi, 2009) e de “projeções sensíveis”, que pretendemos mobilizar, permitirão a análise das imagens.
A noção de “projeções sensíveis” recobre um lugar de entremeio entre a arte e a análise do discurso. Uma forma de ler, posicionar-se, relacionar-se com a produção artística determinada sócio-historicamente. Trata-se de uma relação de interlocução com a arte balizada na/pela memória discursiva constituída pelos esquecimentos, mediada pelo sensível (instâncias do real, do imaginário e do simbólico). [...] cabe ressaltar que a separação entre estético-poético e estésico-poiético está no efeito dos processos discursivos da arte, e não na constitutividade do discurso artístico, onde a relação é de batimento, de imbricação. (Neckel 2010, p. 130).
Tomamos, nesse gesto de análise, o corpo como discurso, não um corpo seccionado, como o corpo da ciência, nem tampouco um corpo culpa, como o corpo da religião, mas um corpo-sujeito, um corpo-imagem, um corpo que produz sentidos interpelado pela ideologia, um corpo-texto: um corpo sujeito de linguagem e sujeito à linguagem. Aqui queremos enfatizar, principalmente, uma condição de ser corpo-sujeito enquanto “mercadoria”, determinado pela forma histórica do capitalismo. E, nesse sentido, pensamos em um corpo-rede, conforme proposto por Gallo e Romão (2011), um “corpo imaginariamente sem-limite”.
Ou seja, o corpo comparece como excesso de presença, como peça sempre acordada e disponível para o contínuo de ligação e links que a rede (pode) oferece(r) e do qual se alimenta, isto é, está aí traçado um corpo imaginariamente sem limite, que pode(ria) ficar on-line todo o tempo, estar em toda parte, visitar todos os cantos da rede, navegar sem parada e sem cansaço, colar-se à máquina sem fronteiras e sem a escuta de limites que lhe são constitutivos tais como sono, fome, dor, cansaço etc. (Gallo e Romão, 2011, p.15).
Pensamos aqui em um corpo sempre em produção, um corpo do capitalismo, um corpo que gera demandas produtivas e econômicas, mesmo antes de ser um corpo-carne. Um corpo já sujeito de mídia e, por isso mesmo, um corpo mercadoria, um corpo exposto, visível, com valor de troca.
Sabemos que as políticas de discursivização do olhar que funcionaram até o século XX, foram desestabilizadas no século XXI pelos avanços tecnológicos e, consequentemente, pelos processos de globalização. O crescente interesse pelas análises das imagens em diferentes áreas do conhecimento, mudou a forma de compreender os modos de olhar e de produzir sentidos do corpo, e no corpo. Esses sentidos, hoje, constituem-se através de tecnologias digitais e são determinados pelo funcionamento das discursividades da escritoralidade, apropriadas nessas formas tecnológicas. O modo de circulação, nessa forma discursiva, distingue-se daquele das discursividades de Escrita: o corpo, aqui, se produz como um corpo digital na sua materialidade, e assim circula nos espaços enunciativos informatizados; o texto (inclusive o texto imagético) se legitima por meio da quantidade (de “curtidas” ou compartilhamentos, por ex.), por meio da repetibilidade. Assim, o reconhecimento é substituído pela “viralização” dos posts. Os sujeitos são instados a entrar na seriação, seja no gesto de uma leitura parafrástica, seja na exposição se si, por meio de um corpo-imagem.
Ao proporem a noção de espaços enunciativos informatizado, os autores (Gallo, S.; Pequeno, V. e Silveira, J., 2025, p.7-8), refletem sobre os processos de normatização e midiatização, constitutivos desses espaços, e falam de um sujeito-avatar, próprio desses espaços.
Essa forma material discursiva na qual se constitui o sujeito-avatar, nós denominamos forma-discurso de escritoralidade (Gallo, 2014). Ela é diferente da forma-discurso de escrita, na medida em que funciona através de outros processos que propusemos chamar de normatização e de midiatização. A normatização opera no nível da formulação dos enunciados, produzindo esse novo interlocutor, o sujeito-avatar. A midiatização opera no nível da circulação e produz uma nova forma de arquivo e de memória. Essa forma discursiva tem, sobretudo, uma materialidade própria, digital. Os sujeitos-avatares, portanto, são forjados em contextos enunciativos informatizados. Eles se apresentam como condição sine qua non para a tomada de posição do sujeito nos discursos de escritoralidade. Nesses casos, a individualização do sujeito se faz pela via desse constructo técnico – o avatar, e suas formações imaginárias.
Neste trabalho pretendemos desenvolver uma relação entre sujeito-avatar e forma-sujeito-histórica, sendo os espaços enunciativos informatizados, nesta perspectiva, uma das condições de realização dessa forma-histórica do sujeito do capitalismo. Estamos tomando a internet enquanto prática técnica, sem, no entanto, deixar de pensar que toda prática técnica, segundo Pêcheux (1997 a.), é também uma prática política. A abordagem discursiva garante, justamente, a compreensão da dimensão política dessa prática.
Para tanto, uma das relações que observamos, se dá entre a forma de individu(liza)ção pelo Estado, própria da forma histórica jurídica, e a individua(liza)ção por um discurso de escritoralidade, precisamente através do constructo técnico que é o avatar, na forma histórica capitalista contemporânea.
Para Pequeno (2016, p. 27), enquanto elemento técnico, o avatar constitui-se de
[...] um conjunto de clivagens subterrâneas, na materialidade digital, que são formuladas para descrever e explorar o sujeito, aquele que os filtros predizem e definem, aquele que (através dos filtros) se relaciona com as bases de dados e com a memória técnica. O avatar é um conjunto de várias pequenas práticas técnicas, cujo resultado é o produto técnico.
Ainda, segundo a autora, “O Estado, em uma sociedade de mercado, predominantemente, falha em sua função de articulador simbólico e político. E funciona pela falha”. É justamente onde o estado “falha”, que o mercado se instala. O mercado passa a negociar espaços e “sanar” necessidades pela lei de mais-valia, alargando assim o conceito marxista para além das formas de produção da força de trabalho, para a voracidade do consumo. Assim, quando o valor de troca se dá pelo consumo, pelo excesso, o Estado já não consegue normalizar. O que normaliza e dá as regras, nesse cenário, é o mercado. E, essa “norma” aplica-se também aos corpos.
Nossa hipótese, no caso aqui em análise, é a de que uma das formas do sujeito contemporâneo se individuar(lizar) é produzindo-se enquanto mercadoria, por meio de um corpo-imagem-corpo materializado em sujeito-avatar.
Nessa perspectiva, analisaremos essa relação tomando, primeiramente, o corpo- imagem como objeto, pensando-o também enquanto corpo-sujeito, para depois abordarmos a imagem-corpo como sujeito-avatar .
Nosso recorte analítico, portanto, se dá em imagens de um corpo humano presentificado na rede. Desse modo, não é possível tomarmos as imagens, ou os corpos, ou ainda o corpo-imagem como “naturais”; é preciso tomá-los no fluxo de suas significações, nos processos de produção de sentidos no fio do discurso. No entanto, é preciso lembrar que esse “fio” está tramado em rede, e é resultante tanto de uma certa memória discursiva, quanto da memória metálica.
Com as novas tecnologias de linguagem, à memória carnal das línguas “naturais” juntam-se as várias modalidades da memória metálica, os multi- meios, a informática, a automação. Apagam-se os efeitos da história, da ideologia, mas nem por isso elas estão menos presentes. Saber como os discursos funcionam é colocar-se na encruzilhada de um duplo jogo da memória: o da memória institucional que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo, o da memória constituída pelo esquecimento que é o que torna possível o diferente, a ruptura, o outro. (Orlandi, [1999], 2007, p.10)
O que compreendemos desse “duplo jogo” proposto por Orlandi é que, se por um lado a memória discursiva (histórico-social) materializa-se em diferentes ordens discursivas como, por exemplo, a ordem jurídica, a ordem religiosa, ou, a ordem pedagógica, entre outras; por outro lado, a memória metálica funciona apenas pelo acúmulo e pela repetição, ou seja, não há parâmetros da ordem material, apenas da ordem das clivagens subterrâneas, produzindo sem cessar, efeitos de evidência, funcionando pela organização e não pela ordem discursiva.
(Des) Corporificando: Primeiro recorte do corpo-imagem em imagem corpo
Dentro desse escopo construído na primeira parte do trabalho, pretendemos fazer alguns gestos analíticos tomando duas imagens que circularam no Facebook; a de um feto no útero, e a de um bebê, no momento de seu nascimento.
A primeira imagem6, a do feto, apareceu no Facebook em 4 de maio de 2016, em nossas timelines, postada por uma amiga grávida, e teve 164 curtidas, além de alguns comentários.
O que temos aqui é uma imagem ultrassonográfica de um feto na barriga da mãe, portanto, não a reprodução da imagem de um corpo de um neonato, e sim, uma imagem capturada por meio de um exame obstétrico. Na postagem ainda temos a inserção de uma figura de coraçãozinho no canto direito inferior da imagem.
Imagem 01: Exame de Ultrassonografia, postada em redes sociais

Em 11 de julho, foi postada a segunda imagem7: a foto do nascimento do bebê, portanto, já a imagem de um neonato acompanhada da seguinte mensagem:
Imagem 02: Foto do nascimento de uma criança ainda na sala de cesariana e postada em redes sociais

Fulano de Tal8 “... chegou ontem, trazendo muito mais amor pra sua mãe e para sua família. E eu tive a honra de registrar esse momento cheio de emoção. Pude presenciar também o nascimento de uma mãe e de uma avó maravilhosas. Lindo demais! <3”
O que temos marcado nesse enunciado é, portanto, um nome, um sexo (e até onde é comumente generalizado, um “gênero” pré-definido pela presença de um órgão). Imagens com diferentes modos de captura técnica, mas na mesma ordem ideológica.
Trazemos Althusser para, com ele, retomarmos dois importantes momentos da existência biológica, para a partir daí pensarmos a relação sócio-histórica e ideológica.
No primeiro momento ele debruça-se sobre a relação criança-mãe pautada pelo fascínio imaginário do ego e pela identificação narcísica da não separação do eu e do outro. O segundo momento pensado pelo autor é o da ordem simbólica que permite a criança dizer: eu/tu/ele (a) ao identificar-se com um mundo de terceiros, o mundo dos adultos.
Althusser nos diz que:
Antes de nascer a criança é, portanto, sujeito, determinada a sê-lo através de e na configuração ideológica familiar específica na qual ele é “esperado” após ter sido concebido. Inútil dizer que esta configuração ideológica familiar é, em sua unicidade, fortemente estruturada e que nesta estrutura (p.98) implacável, mais ou menos “patológica” (supondo-se que este termo tenha um sentido determinável) que o já-presente futuro-sujeito “encontrará” o “seu” lugar, quer dizer “tornando-se” o sujeito sexual (menino ou menina) que ele já é. [...] Compreende-se que esta pressão e predeterminação ideológica, todos os rituais do crescimento, da educação familiar têm alguma relação com as “etapas pré-genitais e genitais da sexualidade”, tal como estudadas por Freud, na “apreensão” do que ele designou, por seus efeitos, como o inconsciente. (Althusser, 1985, p. 98-99).
O que nos interessa aqui é compreender que esse pertencimento familiar e consequentemente social, determina o lugar do sujeito no laço social. Assim, quando pensamos em um sujeito de “corpo existente”, ou seja, um sujeito já inscrito na ordem jurídico-social, as determinações estão já aí demarcadas, como bem nos lembra Althusser (1985) a respeito do nascimento de uma criança e, em sua abordagem, o nascimento do sujeito, já determinado pela linguagem. Retomemos a passagem do texto em que o autor traz, como exemplo, exatamente o processo de nascimento de uma criança:
Que um indivíduo seja sempre/já sujeito, antes mesmo de nascer é, no entanto, a mais simples realidade, acessível a qualquer um, sem nenhum paradoxo. Que os indivíduos sejam sempre “abstratos” em relação aos sujeitos que são desde sempre, Freud já o demonstrou, assinalando simplesmente o ritual ideológico que envolve a espera de um “nascimento”, este “feliz acontecimento”. Todos sabemos como e quanto é esperada a criança a nascer. Deixando de lado os “sentimentos” isto, prosaicamente, quer dizer que as formas de ideologia familiar/paternal/maternal/conjugal/fraternal, que constituem a espera do nascimento da criança, lhe conferem antecipadamente uma série de caraterísticas: ela terá o nome de seu pai, terá, portanto, uma identidade, e será insubstituível. (Althusser, 1985, p.98).
É a partir dessa abordagem althusseriana que compreendemos a segunda imagem, postada, como dissemos, do dia do “nascimento”.
Tanto na primeira, quanto na segunda imagem, não há formas de identificar de “quem” se trata a foto. Pois a primeira é uma imagem ultrassonográfica, sem traços de aparência, sem nomes, sem identificação de qualquer natureza. Já na segunda imagem, temos um recém-nascido ainda na sala de parto, momentos após o nascimento, um corpo ainda sem marcas singulares, um corpo neonatal como tantos outros, mas aqui sim já determinado pela condição de ser menino ou menina. No caso dessa segunda imagem, uma outra marca importante é a mão que segura a mão do bebê, em gesto de ternura, o que marca uma relação da criança já pertencer à um laço social. Na ordem dos afetos, a marca do “coraçãozinho” incluído na primeira postagem e a imagem da mão adulta segurando a mão do bebê partilham do mesmo lugar discursivo.
Essas duas imagens, assim como o enunciado que segue, nos levam a pensar na imbricação constitutiva do sujeito, de verbo-corpo-imagem, e na forma como a análise de discurso compreende que sujeito e sentido se constituem, se constituindo. É possível aqui trazer uma visada da psicanálise para iniciarmos nossa reflexão a respeito das materialidades discursivas que sustentam e atravessam essas duas postagens. Alain Didier-Weill em seu texto a “Nota Azul: Freud, Lacan e a Arte”, situa historicamente a descoberta de Freud9 e a emergência de práticas técnicas e tecnológicas nos processos de subjetivação do século XX que funcionam já desde o nascimento sob um olhar de medusa, capaz de imobilizar o corpo.
Esse olhar medusante ao qual o autor se refere está diretamente ligado ao aprimoramento tecnológico científico dos aparelhos endoscópios que, se no século XX eles foram “inventados”, no século XXI esses chegam ao extremo requinte de fotografar o indivíduo antes mesmo do nascimento. E, aliado às tecnologias de circulação digital, esse indivíduo já circula em redes sociais tal como a imagem que trazemos. O autor ainda acrescenta que esses “olhos de múltiplas sondas endoscópicas” produzem um sujeito “visível” por todos os lados, podendo inclusive ser visualizado desde o momento de sua fecundação. Quais os limites de nossa visibilidade na sociedade das imagens do século XXI? É possível que o sujeito, antes de ser corpo, seja imagem? Esse “indivíduo” capturado enquanto imagem, antes de existir enquanto corpo, é “já-sujeito”, uma vez que é já significado?
O que se marca na enunciação da amiga da família ao postar a foto do nascimento: Beltraninho (...) “chegou ontem, trazendo muito mais amor pra sua mãe e para sua família”.
O movimento interessante aqui desse corpo-imagem é que, para todos os amigos do facebook, a unidade imaginária do Beltraninho já havia se dado quando, por meio da imagem-corpo (ultrassonográfica) ele pôde ser “visualizado” e “conhecido”.
É o seu corpo-imagem que surge no dia do nascimento.
O indivíduo é, desde sempre, uma unidade imaginária: a imagem-corpo que fazemos de nós mesmos e a imagem-corpo que os outros fazem de nós. O que nos interessa ver nesse processo é justamente os modos de legitimação implicados nas formas de individuação contemporâneas, um processo que prescinde de um corpo ao se legitimar pela imagem. Em outras palavras, no espaço da digitalidade, a imagem pode circular sem referência direta a um corpo. Podemos/devemos falar, então, de uma imagem-corpo? Que diferenças podemos estabelecer entre corpo-imagem e imagem-corpo?
Retomando Didier-Weill, na sociedade do espetáculo, que preferimos chamar da sociedade da égide da imagem, o sujeito é despojado de sua parte inimaginável, e, nas palavras do autor, “desaparece, pois sua consistência visível vinha-lhe apenas da existência de sua carga de invisível” (1997, p. 23).
Se no século XIX, e em boa parte do século XX, estávamos sob a égide da escrita, podemos dizer que na transição do século passado para o século XXI, vivemos sob a égide da imagem. E como isso afeta o processo de subjetivação dos sujeitos?
Vejamos, a escrita, na sua dimensão discursiva, transborda da grafia, enquanto forma material significante, para outras formas materiais. Isso acontece, conforme podemos constatar nos trabalhos de Gallo (1995), porque a escrita ocupou, desde a sua aparição (notadamente no Brasil, um país colonizado por europeus), um lugar social de prestígio e foi, desde a sua introdução nas práticas sociais, fator de legitimação de sentidos e de sujeitos. Particularmente no Brasil, essa escrita esteve ligada a textos em língua portuguesa, língua do colonizador, enquanto as línguas nativas só se materializavam oralmente. Essa divisão permanece praticamente inalterada até os nossos dias. O importante aqui é perceber que os textos escritos em língua portuguesa passaram a constituir o arquivo de textos legítimos, uma vez que materializaram as leis, a palavra de Deus, as regras, a gramática, as descobertas científicas, etc. Esses textos podem ser oralizados, sem necessariamente perderem seu valor e sua legitimidade. Por outro lado, os textos produzidos em línguas indígenas, nunca chegaram a tal condição de legitimidade e, aos poucos, foram se aproximando às formas orais da língua portuguesa. Com o passar dos séculos, uma e outra forma oral se aproximam de tal maneira que hoje são indiscerníveis. No entanto, os lugares discursivos de legitimação continuam sendo os mesmos produzidos originariamente pela escrita. Feita essa pequena digressão, pensemos agora nos textos produzidos nos espaços enunciativos informatizados.
Nesse quadro, cabe perguntarmos sobre o modo como as discursividades de escritoralidade constituem sua legitimidade, já que não se relacionam a instituições (religiosa, jurídica, científica, etc), como no caso da escrita. Segundo Gallo (2016) essa forma de legitimidade das discursividades de escritoralidade se caracteriza por quantidade e por instantaneidade.
No caso aqui analisado, por exemplo, temos que admitir que o fator de legitimidade da imagem do feto está relacionado muito mais a sua capacidade de multiplicação (número de curtidas, comentários e compartilhamentos) do que sua condição de reconhecimento do e no laço social. O que está em jogo são os modos de inscrição dos sujeitos nessa discursividade, o que nos traz questões a respeito dos modos de sua individua(liza)ção10.
Na relação inconsciente/ideologia, podemos retomar Althusser que propõe o processo de interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia. Para esse autor a “Ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (1985, p.85).
Se pensarmos essa ‘real condição de existência’ do sujeito, dadas essas relações sociais apontadas por Althusser, acessamos a incontornável condição de membros de um laço social. Nossa proposta aqui é justamente relacionar os novos modos de circulação e visibilidade do sujeito, por meio de imagens, com essa condição inexorável de pertencimento social.
Nessa instância, retomamos a primeira imagem proposta na análise, a imagem da ultrassonografia postada nas redes sociais. Sabemos que toda a experiência corpórea desse feto é mediada pelo corpo da mãe: sua experiência sensível passa pela experiência sensível da mãe. Concordamos com Althusser que se já há uma “identidade insubstituível”, nesse momento, ela é construída pelo discurso.
Mas em relação ao tempo histórico da formulação de Althusser, diferente da condição de análise que tinha o autor (já que para ele a possibilidade de visualização dessa criança, enquanto um corpo-imagem, só se daria após o nascimento), atualmente podemos ver essa criança já circulando (existindo?) não só por meio de um discurso, mas através de uma imagem-corpo, antes mesmo de sua constituição enquanto categoria jurídico-social, e antes também de sua existência enquanto corpo-imagem.
Nessa trama, propomos que a relação corpo-imagem e imagem-corpo são termos distintos. O corpo-imagem é já um corpo estético de existência, um corpo mediado pelas experiências estéticas do sujeito em sua relação com o mundo. Esse corpo-imagem, de que falamos, é um corpo - como apontamos na introdução desse artigo - que produz sentido, interpelado pela ideologia, um corpo-linguagem, sujeito de linguagem e sujeito à linguagem. E quanto à imagem-corpo?
A individua(liza)çãona era tecnológica da realidade aumentada e dasIAs?
Se nas últimas décadas do século XX e primeiras décadas do século XXI, ficamos estarrecidos frente aos Realitys Shows que nos questionaram sobre as fronteiras do particular/íntimo/privado na relação com a instância pública, como nos sentimos frente a uma imagem de um feto no interior do útero em realidade aumentada, sendo esse corpo já uma imagem-corpo-capital? Um corpo com valor de mercado? Um corpo em completa visibilidade em sua minúcia de detalhes? Por outro lado, se nos perguntarmos pelo processo de subjetivação: em que medida a imagem-corpo produz e é (re)produzida no corpo-imagem?
Ao nos colocarmos essas questões não poderíamos nos furtar de trazer ao encontro desse nosso gesto de leitura a respeito do corpo-imagem, a reflexão de Michel Pêcheux a respeito das práticas técnicas e do sujeito e seu modo de constituição da/na gestão social.
Um grande número de técnicas materiais (todas as que visam produzir transformações físicas ou biofísicas) por oposição às técnicas de adivinhação e de interpretação de que falaremos mais adiante, tem a ver com o real: trata- se de encontrar, com ou sem a ajuda das ciências da natureza, os meios de obter resultado que tire partido da forma e mais eficaz possível (isto é, levando em conta a esgotabilidade da natureza) dos processos naturais, para instrumentalizá-los, dirigi-los em direção aos efeitos procurados. A esta série vem se juntar a multiplicidade das “técnicas” de gestão social dos indivíduos: marcá-los, identificá-los, classificá-los, compará-los, colocá-los em ordem, em colunas, em tabelas, reuni-los e separá-los segundo critérios definidos, a fim de colocá-los no trabalho, a fim de instruí-los, de fazê-los sonhar ou delirar, de protegê-los e de vigiá-los, de levá-los à guerra e de lhes fazer filhos... (2006, p.30).
Essa tensão entre as técnicas materiais e as técnicas de gestão social, conforme nos aponta Michel Pêcheux, é que vão discursivisando os sujeitos e seus corpos no laço histórico-social. E, como ideologia e inconsciente estão materialmente imbricados, o processo de individua(liza)ção na contemporaneidade, continua sendo incontornável e necessária. Incontornável porque as transformações biofísicas são determinadas pelas técnicas materiais, que como vimos, hoje chegam ao requinte de visualizar a vida antes mesmo dela ser reconhecida juridicamente e, necessário, porque de acordo com as técnicas de gestão social, leia-se também econômicas, os sujeitos são colocados em ordem e/ou classificados, e/ou capazes de sonhar e/ou passíveis de vigia... Dito de outro modo, os regimes de visibilidade podem e devem funcionar como técnicas de gestão social que garante, em última instância, o consumo. E, se no século XIX tais técnicas eram fortemente definidas pelo Estado, agora no século XXI são também definidas pelo mercado. E, nesse ponto, a imagem-corpo é, portanto, mercadoria produzida por técnicas de gestão social e que passa a se (con)fundir com o corpo-imagem.
Como vimos aqui, para o sujeito individua(liza)do por um discurso de escritoralidade, essa fronteira entre interior/exterior, ou seja, entre corpo-imagem e imagem-corpo está desaparecendo ainda mais.
É preciso considerar, no entanto, que tanto nos séculos XIX e XX, quanto agora, essas foram produções de um sujeito sócio-histórico e portador de um corpo. Nossa questão aqui, nessa primeira análise, foi buscar compreender como esse corpo é discursivisado e como as novas tecnologias de imagem o individua(liza)m, mostrando que essas tecnologias só podem fazer esse trabalho, na medida em que uma nova forma discursiva, no caso a escritoralidade, lhes dá sustentação.
Em outras palavras, a forma-discurso de escritoralidade permite a individua(liza)ção de um sujeito por meio de sua imagem-corpo, antes mesmo desse sujeito ser reconhecido por um corpo-imagem.
Mas quando esse corpo-imagem é completamente ficcionalizado pelas IAs? O que muda no gesto de leitura e interpretação desse corpo? É o que buscamos compreender na segunda análise aqui proposta.
Um trompe-l’œilàs avessas: o jogar com a ficcionalização da imagem
Sabemos que a expressão francesa trompe-l’œil vem da prática artístico-pictórica que significa “golpe de vista”, utilizada desde as pinturas murais da antiguidade clássica grego-romana, incorporada pelo barroco e anedoticamente ampliada com as vanguardas. Impossível não lembrar do jogo de imagens de Magritte no qual imagem e nomeação não coincidiam. Entre as pinturas da antiguidade clássica que enganavam o olho em razão do seu realismo, e o jogo de imagens de parecer e não ser do surrealismo, nos desafiamos a assumir, ou não assumir, a ficcionalização do mundo.
Mas, e quando o sujeito é materializado digitalmente em um corpo outro, que não corresponde ao seu?
Trazemos aqui uma animação ficcional em vídeo, na qual um corpo adulto assume a forma de um bebê, porém, com a correspondência de sua voz atestando a identidade, supostamente conhecida por todos. Trazemos então a página “Lulinhaamorpelobrasil” do espaço enunciativo informatizado - Instagram.
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Disponível em https://www.instagram.com/reel/DPrhIUXkRgA/?igsh=ODZrdGdiNXU5NjBo
Trata-se da imagem de um corpo de criança com suas formas arredondadas, mãos e pés de criança pequena, mas um rosto que ao mesmo tempo em que reproduz formas de um rosto infantil, traz igualmente a imagem do rosto do presidente da república, cuja voz e a fala tem som e conteúdo das falas de Lula Presidente. Há, portanto, um jogo de (des)encontro entre um Lula adulto com seus 80 anos e um Lulinha pequeno, de um ou dois anos de idade, a julgar pela estrutura e tamanho do corpo na tela, Os movimentos da boca e dos braços são também movimentos infantis. Há uma não coincidência entre o que é dito e o como é dito, estabelecendo, ao mesmo tempo, um jogo anedótico e uma simpatia pelo “bebê” fofinho falando coisas de adulto. Este efeito parece ser comum ao uso desta máscara que gera avatares bebês de personalidades adultas conhecidas midiaticamente.
Os efeitos de sentido que nos capturam enquanto sujeitos, pela via das projeções sensíveis\imaginárias, não são da mesma ordem da projeção algorítmica que produz esse corpo fake que tem voz e retórica do corpo de Lula. O que nos impressiona, aqui, é que a não coincidência da imagem-corpo-lulabebê com a voz e a fala do presidente da república não nos joga, necessariamente, para fora da interlocução, pelo fato de não corresponder à uma “verdade”. Ao contrário, nos captura enquanto sujeitos espectadores explorando o processo de identificação, ao vermos o “vídeo fofo” até o fim, e depois dele outro, e outro… a projeção algorítmica joga com nossos restos, pistas deixadas na rede, para mais uma vez retorná-los, sem que percebamos que se trata de rastros de nós mesmos, rearranjados, em um efeito narcisista em looping. Segundo Bruzzo (2025, p. 88)
O universo das imagens técnicas, tornadas sintéticas (como síntese computacional pós-cibernética), é produto de memórias diferentes. Nosso imaginário relaciona memórias humanas e memórias técnicas, ambas com autonomia criativa, em um cenário combativo de grau avançado. A imagem de mundo está sendo produzida, com as IAs, pela cessão de imagens da humanidade e a autonomia interpretativa da IA, à qual, sem isonomia, cedemos novamente, E essa cessão direitos imaginativos às máquinas significa que incorporamos suas novas imagens, pasteurizadas, amalgamadas , diaspóricas, nas nossas novas memórias humanas.
No caso das imagens produzidas por IA no perfil @Lulinhaamorpelobrasil, já estamos imersos no jogo da ficcionalização. Por outro lado, temos a dimensão do político materializando uma imagem-corpo, tecnicamente. Ou seja, a materialidade técnica digital dos espaços enunciativos informatizados que até então entendemos como responsáveis por processos que normatizam e midiatizam as produções do sujeito, na condição (sine qua non) de sujeito-avatar, agora, a partir da entrada das IAs no cenário midiático, passam a ser responsáveis por um novo processo, o de descolamento definitivo do conteúdo formulado, com a realidade de um corpo-imagem - uma estranha tessitura. Entramos na era da ficção autônoma, forjada tecnicamente por inteligências artificiais, sem compromisso com a veracidade da materialidade imagética, ou seja, a imagem-corpo pode ser uma ficção. No caso aqui analisado, é o discurso político e a materialidade técnica de áudio, que fará a relação entre a imagem-corpo e o corpo-imagem do presidente da república. Essa tecedura dos sentidos poderia ser feita por diferentes discursos, de acordo com diferentes imagens ficcionais. O importante é compreender que não há, nessa prática, compromisso com veracidade: trata-se de um gesto ficcional, com diferentes níveis possíveis, de tecedura. Por exemplo, podemos nos relacionar com uma imagem-corpo de uma Eliza, de uma LuzIA, de uma Alexa, e tantas outras, produzidas pela arte do design, mesmo sem qualquer materialidade que possa fazer uma tecedura desses avatares, para além da materialidade digital: são os des-limites funcionando aí em projeções imaginárias/sensíveis. Por outro lado, o retorno dessas inteligências é, em todos os casos, baseado exatamente, e exclusivamente, em projeções algorítmicas (Gallo, S; Selhorst, L, 2023). As “projeções algorítmicas” aprendem como os restos, as marcas, as pistas deixadas por nossas projeções sensíveis e imaginárias em forma de dados que, ao serem capturados, retornam para nós, ao mesmo modo narcísico que sustentam nossas bolhas virtuais, nossas timelines, nosso lugar de ser e estar nesses espaços enunciativos informatizados.
Alguns apontamentos finais
A retomada de um gesto analítico feito por nós há mais de uma década, e a proposição de um novo recorte demonstra, primeiramente, que o processo de produção de conhecimento, em uma perspectiva materialista, só pode se dar no campo mesmo da luta de classes, e esse processo não cessa, porque o discurso não cessa de reclamar sentidos.
Uma outra consequência da retomada é teórica: ao retomar a noção de projeções sensíveis frente à materialidade destas imagens, conseguimos pensá-las não só como: “Uma forma de ler, posicionar-se, relacionar-se com a produção artística que é determinada tanto pelos aspectos sócio-históricos, quanto pela dimensão do sensível e do inconsciente (...)”(Neckel, 2010). Ou seja, as projeções sensíveis, para além do campo próprio das discursividades artísticas, podem ser pensadas em relação a arte produzida por meio da materialidade técnica digital, que é provocativa, instantânea, subversiva, como é o caso da arte de ficcionar através de um feixe de diferentes materialidades significantes, como vimos no perfil @Lulinhaamorpelobrasil. Ampliando a “relação de interlocução com a arte, balizada na/pela memória discursiva, constituída pelos esquecimentos, mediada pelo sensível” (Neckel, 2010), pudemos acrescentar a relação com a técnica. Pudemos, portanto, dar mais um passo no entendimento de que as projeções imaginárias e as projeções sensíveis são da ordem da constituição dos sujeitos. Já as projeções algorítmicas são da ordem da materialidade técnica que coleta dados sobre os sujeitos e seus trajetos na rede digital.
Temos um corpo-imagem em circulação, como um corpo-na-rede, como uma imagem-corpo, materializando a ficcionalização crescente promovida pelas inteligênciasartificiais e suas reverberações no campo do político e do social - são essas reverberações que propomos recobrir com a noção de projeções sensíveis. Afinal, o sujeito-mãe, o sujeito-criança, o sujeito-presidente são corpos determinados historicamente, que mesmo enquanto sujeitos-avatares, funcionam atados ao corpo social, no qual se produzem as projeções imaginárias/sensíveis: e esse é o limite das IAs. No entanto, apesar de não produzirem projeções imaginárias e sensíveis, as IAs podem processá-las e devolvê-las, emulando sentidos.
Se a noção discursiva de corpo-imagem se refere à construção do corpo a partir de representações simbólicas e discursivas presentes na cultura, na mídia e nas relações sociais, a imagem-corpo, por sua vez, diz respeito tanto à experiência que cada sujeito tem de seu próprio corpo (envolvendo aspectos emocionais, sensoriais e subjetivos) quanto, no campo da materialidade técnica-algorítmica, por aquilo que em forma de dados/rastros/pistas deixamos na rede para ser coletado e emulado como desejo de corpo possível. Talvez isso explique porque, no campo das projeções sensíveis, nos identificamos prontamente com estas figuras fofamente produzidas por IAs. Ou seja, a diferença entre um e outro, embora tênue, está no batimento das perspectivas externas (corpo-imagem) e internas (imagem-corpo) do corpo produzido tecnicamente - está no sujeito em seu processo sempre-já de interpelação, e nas marcas que deixa na linguagem.
No campo da memória podemos recorrer à ficção cinematográfica. Já assistimos bebês nascerem velhos (“O Curioso Caso de Benjamin Button” 2008); ou, meninos robôs condenados à morte em busca do amor de mãe ("A.I. Artificial Intelligence" 2001), só para citarmos dois exemplos em que a ficção também nos convoca, mas sem nos subtrair a memória. Como bem nos alerta Bruzo “A perda desse lastro com a realidade sobre as imagens da cultura não pode ser subestimada, sobretudo tendo em vista que pelo lado da humanidade, a realidade dos registros nunca tenha sido mais importante do que o fascínio pelo mágico, pelo lúdico.” (2025, p,137). As IAs apenas nos devolvem nossas próprias imagens em espelho.
Compreendemos, aqui, que uma das formas de resistirmos ao des-limite promovido pelas tecnologias digitais, e mais fortemente pelas IAs, é pela prática política da ludicidade, que permanece humana, pois nela se produzem nossas projeções sensíveis, algo que ainda é impossível para um autômato apreender, por mais inteligente ou artificial que seja. É a memória discursiva e seus esquecimentos que produz o lastro, que produz o sentido, que produz o lúdico, que produz o sujeito. É do humano o desejo e a falta. Como bem nos lembra Michel Pêcheux, desde seu AAD 69:
(...) o tempo da produção e do produto não são sucessivos como para o platônico, mas estão inscritos na simultaneidade de uma batimento, de uma “pulsação” pela qual o non-sens inconsciente não pára de voltar no sujeito e no sentido que nele pretende instalar. Só há causa daquilo que falha (J.Lacan). É nesse ponto preciso que o platonismo falta radicalmente o inconsciente, isto é, a causa que determina o sujeito exatamente onde o efeito de interpelação o captura; o que falta é essa causa, na medida em que ela se “manifesta” incessantemente e sob mil formas (o lapso, o ato falho, etc.) no próprio sujeito, pois os traços inconscientes do significante não são jamais “apagados” ou “esquecidos”, mas trabalham, se se deslocar, na pulsação sentido\non-sens do sujeito dividido. (Pêcheux, 1997, p.300).
Por agora, aceitamos o desafio de Michel Pêcheux em pensar o “gesto de leitura no nível simbólico” e “a falta, no sujeito”. E é desse lugar que pretendemos seguir pensando o corpo enquanto corpo político, um corpo de/no discurso e, como pudemos aqui formular: um corpo-imagem-corpo, próprio do sistema capitalista contemporâneo, e o sujeito-avatar que lhe corresponde, constituído por um processo específico de individua(liza)ção que, entretanto, não prescinde do sensível, como procuramos mostrar.
Referências:
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1 Professora no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem, da Universidade do Sul de Santa Catarina. E-mail: solangeledagallo@gmail.com.
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3 Noção proposta por Lagazzi em 2005 a partir da noção de “forma material” proposta por Orlandi, E. [2001] 2005, p.33
4 As formulações “intersecção de diferentes materialidades” e “imbricação material significante” ressaltam que não se trata de analisarmos a imagem e a fala e a musicalidade, por exemplo, como acréscimos uma da outra, mas de analisarmos as diferentes materialidades significantes uma no entremeio da outra. (Lagazzi, 2011, p. 402
5 Imagens de exames de ultrassonografia postadas em redes sociais como no Facebook, por exemplo. https://www.google.com.br/search?q=imagens+ultrassom+no+facebook&oq=ima&aqs=chrome.0.69i59l2 j69i57j0l3.2092j0j8&sourceid=chrome&ie=UTF-8
6 Imagens de recém nascidos em timelines https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome- instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-8#q=imagens%20neonatais%20no%20facebook.
7 É importante para a análise a menção de um nome próprio, porém optamos por não identificar nominalmente o bebê
8 [...] não foi por acaso que a psicanálise nasceu em nosso século com a descoberta por Freud, do trauma pelo qual o infants experimenta, no alvorecer de sua vida histórica, o surgimento do olhar medusante que o reduz à pura materialidade de um corpo petrificado porque repentinamente destituído de qualquer habitação simbólica. (DIDIER-WEILL, [1976], 1997, p.34)
9 Segundo Ramalho (1989, p.68) “O bebê começa a existir bem antes de ser concebido como significante, na linguagem, quando é falado. Por exemplo: o desejo dos pais em terem um filho, na escolha do nome, etc. O seu corpo (da ordem do Real) é, portanto, o receptáculo do discurso dos pais é o lugar de inscrição. A sua expressão corporal encontra-se assujeitada ao Outro e a quem o gesto é dado a ver, assujeitado o seu olhar, assim como a palavra ao ouvido do auditor, e engajado no mesmo semblante e na mesma busca de ser compreendido, notado e amado.” In: Função Materna na Constituição do Sujeito; Escritos Psicanalíticos, Colóquio II. Centro de Trabalho em Psicanálise.
10 Professora no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem, da Universidade do Sul de Santa Catarina. E-mail: nadia.neckel@animaeducacao.com.br.