Chico Mendes em meio ao mal-estar amazônico


resumo resumo

Bethania Mariani



“O Sr. José entrou na Conservatória, foi à secretária do chefe, abriu a gaveta onde o esperavam a lanterna e o fio de Ariadne. Atou uma ponta do fio ao tornozelo e avançou para a escuridão.”

 

(José Saramago, Todos os nomes, 2017)

 

“Eu, tu e todo mundo, no fundo, tememos por nosso futuro. ET e todos os santos, valei-nos, livrai-nos desse tempo escuro.”

 

(Gilberto Gil, Extra, 1983)

 

Pensar em discursos da Amazônia é refletir sobre as muitas amazônias, as quais, em sua diversidade e desigualdade, são apagadas, silenciadas e também resistem. Para o gesto de escrever no plural discursos da Amazônia, necessário se faz mobilizar uma interdiscursividade heterogênea, contraditória, sem ponto de origem, obscura na maior parte da memória já constituída oficialmente, uma memória que, no fio dos dizeres do passado, denominava a Amazônia como um “vazio geográfico”2. Sob o efeito de sentidos dessa expressão “vazio geográfico”, as terras eram significadas como virgens, desabitadas ou abandonadas. Ainda em seus efeitos, os efeitos desse processo de significação para ‘vazio geográfico’ recaíam e ainda recaem sobre os povos indígenas com suas línguas e culturas, muitas vezes designados por antropólogos e historiadores como “sociedades frias ou sem história” (Porro, 2007). Retomando nosso gesto de reflexão sobre a colonização linguística (Mariani, 2002), podemos pensar em uma relação de sentidos entre este modo de designar a Amazônia como “vazio geográfico” e os povos indígenas, significados como primitivos, ou esvaziados de civilidade linguística, religiosa, social ou legal. Ainda fazendo deslizar sentidos, os efeitos desse vazio imaginário projetavam sombras sobre os ribeirinhos, as comunidades quilombolas, os seringueiros, os imigrantes brasileiros, os estrangeiros e tantos outros que lá habitam. Os efeitos da construção imaginária do “vazio geográfico” recaem tanto sobre a terra quanto sobre seus habitantes.

Ainda sobre os modos de designar a Amazônia, ao longo do século XX uma série de termos e expressões circularam e ainda circulam em rede parafrástica, produzindo sentidos para a região, como inferno verde, rain forest, amazonie. São termos e expressões que significam pelas posições inscritas em discursividades colonialistas e neo-colonialistas, ou seja, em processos discursivos que, pelo funcionamento das línguas de colonização (Orlandi, 1990), se apropriam de uma terra e de sua gente.

O ‘vazio’ foi sendo preenchido por levas históricas de colonizadores brancos que estariam condenando a Amazônia a desaparecer, engendrando uma terra que se encontra em um processo de devir catastrófico, dada a cobiça globalizada do extrativismo da borracha, do agronegócio com suas pastagens e gado, dos donos de garimpo e dos traficantes de drogas. Na projeção dessa desastrosa memória do futuro, convivem e se iniciativas várias que vão de negócios totalmente escusos ou com uma aparente legitimidade - como é o caso do turismo (predatório) -, à iniciativas que visam ‘conciliar’ a exploração sustentável da floresta (leia-se o agro) com uma defesa dos saberes e populações tradicionais -, que sobrevivem em meio à destruição. Em resistência, é uma amazônia indígena, em aliança com outros ‘povos da floresta’, e em diálogo com pesquisadores urbanos, que permanece no confronto, estabelecendo fronteiras socioespaciais.

Lembrando P. Henry (1994) em sua afirmação de que não há fato ou evento histórico que não reclame sentidos, muitos foram os eventos históricos que reclamaram sentidos para o que denominamos como Amazônia. Na reflexão que aqui proponho, penso no trabalho de vida de Chico Mendes e na denominação povos da floresta. Coloco em foco a estátua construída e inúmeras vezes derrubada em uma praça em Rio Branco como caminho para produzir uma reflexão sobre os confrontos mortíferos que marcam diferenças e desigualdades profundas na historicidade da região. Mas nada é assim tão simples.

Este texto, como tantos outros, começa antes, em um ponto não exatamente detectável. Faço esta afirmação retomando Orlandi, que chama a atenção para esta impossibilidade da origem e de uma completude dos dizeres e da memória. A memória não é estática, mas sempre sujeita a ressignificações, rearranjos, reacomodações. Quando trabalhamos na perspectiva do interdiscurso e do processo de subjetivação, mexemos em redes de significantes que abriram caminhos para o processo de interpelação-identificação, ou, como compreendemos lendo Pêcheux (1988 [1975]) e Orlandi (1995), processo de assujeitamento ao significante e aos sentidos que estão nos fundamentos do aparelho psíquico e da constituição da memória-esquecimento. Processo de assujeitamento ao campo do Outro, no modo como Pêcheux e Orlandi reterritorializam discursivamente a formulação de Lacan3. Assim, talvez por um caminho de historicização de associações significantes seja possível minimamente trabalhar o desejo que moveu a escrita deste texto sobre a Amazônia, a qual traz como foco o trabalho do ambientalista Chico Mendes e as vicissitudes da sua estátua. Numa pequena tentativa de historicizar esse percurso, pode ser interessante fazer um breve desvio pelas lacunas da memória, do que faz retorno de modo inesperado e que acabou me fisgando para a escrita. Vejamos.

 

Lacunas

Há uns três anos, mais ou menos, quando me mudei de apartamento, resolvi arrumar certos guardados que se encontravam encaixotados e assim encaixotados seguiam comigo nas várias mudanças de endereço que já fiz. Como muitos sabem, tenho um interesse forte por arquivos, e parte desse interesse está no gesto pessoal de guardar não apenas fotos, mas também papeis vários, como diários de adolescência, de viagens, um ou outro texto de aluno, teses bacanas, cartazes, notas, cartões e cartinhas da família, de amores passados e atuais. A arrumação de tais guardados, dessa vez, implicou abrir tais caixas e pacotes meio ‘esquecidos’, produzindo uma descoberta de papeis variados. Dentre tais papeis, um pequeno cartaz de mimeógrafo, dos tempos de graduação, estampava a frase “Salvem a Amazônia!”. Surpreendida, uma vez que, se não estivesse entre meus guardados, eu nem me daria conta de que “Salvem a Amazônia” já havia sido enunciado e circulado nos anos 70 e 80 do século passado, segui nas pegadas desses fragmentos materiais de memória. Também um livreto intitulado Chico Mendes: O testamento do homem da floresta e meu relatório de viagem para pesquisa sobre a língua Puyanawa apareceram em meio aos guardados, dando um testemunho silencioso de alguns de meus interesses entre o final da década de 70 e os anos 80 do século XX.

Não lembro em que momento o livrinho sobre Chico Mendes chegou às minhas mãos. Chico Mendes era seringalista e sindicalista, além de ter sido um dos pioneiros no movimento ambientalista em defesa da Amazônia. Foi assassinado em dezembro de 1988, deixando o Acre, seu estado natal, em pé de guerra. Em janeiro de 1989, quando viajei para o Acre com financiamento do CNPq a fim de trabalhar com o movimento indígena e, sobretudo, para ir à aldeia Puyanawa gravar indígenas que ainda falavam a língua de seus ancestrais, pude escutar sentidos em disputa sobre Chico Mendes e sobre o futuro dos movimentos socioambientais que ele liderava. Dessa viagem para o Acre, lembro de aspectos pontuais: a densa e negra fumaça sobre a floresta, que talvez impedisse o pouso do avião em Rio Branco; a inexistência de árvores no longo caminho entre o aeroporto e o local de hospedagem; a colaboração nas aulas de Abaúna, o prof. de matemática da UFF que desenvolvia um trabalho em etnomatemática na comissão Pró-Índio; o pequeno percurso aéreo de Rio Branco para Cruzeiro do Sul e depois, de carro pela floresta, da cidade de Mâncio Lima até a aldeia Puyanawa; e, por fim, igualmente marcante, a tensão política visível nas várias cidades acreanas por onde passei, com um aparato policial federal extremamente armado.

Essa miríade de acontecimentos, histórico-sociais e pessoais, aqui tecidos e relatados na materialidade do simbólico, e que resulta do encontro com os papeis descritos acima, produziu efeito particular no que me era possível lembrar em meio aos esquecimentos. Chamei esses ‘encontros-descobertas’, que evocam pontos de esquecimento-memória a partir de uma vida material passada – os folhetos, o relatório, o livreto, poucas fotografias -, de pequenos tesouros significantes. E tomo aqui significantes de modo opaco e equívoco, pois, nesta expressão pequenos tesouros significantes, o termo tanto remete para o conceito de significante, o que não tem sentido, quanto algo que é ‘significativo’, que chama a atenção, que fisga. E o que fisga pode ser muitas coisas.

“Tesouro do significante” é uma expressão que tomo emprestada de Lacan (1955/1957 [1999]), fazendo um pequeno gesto para reterritorializá-la discursivamente neste texto. Em Lacan4, o tesouro significante é o lugar do Outro (Autre), o simbólico como instância da lei, da cultura, e também do campo da linguagem. Mesmo Lacan reformulando este conceito de mais de uma maneira ao longo de seu ensino, mantém-se a questão da alteridade, ou seja, mantém-se uma diferença, pela grafia: o outro, um semelhante, e o Outro, campo do inconsciente estruturado como uma linguagem. Lembrando a premissa da psicanálise sobre a linguagem como condição do inconsciente, o campo do Outro (A), tesouro de significantes, é não todo, ou seja, é grafado com uma barra na diagonal representando uma falta fundamental no campo da cadeia significante5. A falta é estrutural. O Outro pode ser pensado como uma espécie de repositório faltoso, no qual funciona a cadeia significante em seu movimento metaforonímico, ou seja, o “tesouro metonímico” em seu deslizamento e combinações significantes elididas sendo interrompido pelo “empilhamento [do tesouro] das metáforas”, que operam por substituições metafóricas em estado latente. (Lacan, 1955/1957 [1999], p. 154 e pp. 122-128). O conceito de real, conceito que vai ganhando destaque crescente ao longo dos seminários, quando pensado em relação ao Outro, assinala fortemente a inconsistência, a incompletude e a possibilidade de movência da cadeia significante. O sujeito do inconsciente, como efeito de linguagem e representado de um significante para outro na cadeia, move-se sempre-já marcado pela falta.

Discursivamente, Pêcheux (1988 [1975], p. 263) retoma Lacan na sua fórmula consagrada do inconsciente como lugar do Outro (Autre): “...cadeia do significante que comanda tudo que vai poder se presentificar do sujeito” (Lacan citado por Pêcheux6) - para, em seguida, deslocar e incluir: “e do sentido, acrescentaríamos” (Pêcheux, id, ibid, negrito nosso). Em Pêcheux, o Outro é aproximado do interdiscurso, e engendra o fio do discurso. O Outro está na constituição do sujeito, e, como afirma Orlandi (1995) com Pêcheux, é irrepresentável. Está tecido no fio do discurso, mas o sujeito do discurso não se dá conta dessa determinação pelo Outro. Orlandi (1995, p. 17) explicita que, com Courtine (1986), o interdiscurso ganha outros contornos quando é aproximado da memória discursiva. Para a autora, a memória discursiva também é irrepresentável, é não cronológica, mas tem historicidade, na qual fala a sociedade e, também, “uma voz sem nome” (Orlandi, ib, ibid). Essas reflexões levam de volta para teorizar de modo mais consistente o que se desencadeou subjetivamente, quando dei de cara com os pequenos tesouros significantes que provocaram um encontro-descoberta em meio ao esquecimento na memória. Qual o lugar da historicidade aí?

Voltando, portanto, aos pequenos tesouros significantes e seu papel no funcionamento da memória (discursiva), e considerando, com Pêcheux, que a memória é lacunar, com falhas, ou, como preferimos dizer invertendo: que esquecimento é memória... do que não se quer ou não se pode lembrar, ou do que ainda não é articulável na cadeia significante. O esquecimento está na memória não por acréscimo, mas de modo estrutural na constituição do processo de subjetivação e na história do sujeito. Não se tem aí uma visada psicológica, sociológica ou historicista, mas sim uma questão de movimento de processos de produção de sentidos nos processos de interpelação-identificação.

Em seus textos iniciais, Lacan discute os efeitos técnicos do tempo, assinalando que a temporalidade do inconsciente – desses encadeamentos de tesouros metaforonímicos - se organiza nos tempos de ver, no de compreender e no de concluir, sem que haja, aí, uma determinação prévia que ditaria o tempo de uma análise ou o tempo de uma sessão, pois o que está em jogo é o próprio movimento do sujeito. Há jogos repetitivos, e o que se chama usualmente de passado se articula em repetições no presente, e em muitas versões. Em ‘Função e Campo da Fala e da Linguagem’, Lacan (1998 [1953], p. 263) afirma que o trabalho da psicanálise é ensinar/levar “o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é a sua história - ou seja, diz Lacan, nós o ajudamos a perfazer a historicização atual dos fatos que já determinaram em sua existência um certo número de ‘reviravoltas’ históricas. Mas, se eles tiveram esse papel, já foi como fatos históricos, isto é, como reconhecidos num certo sentido ou censurados numa certa ordem.” Nesse “perfazer a historicização/reviravoltas históricas” da subjetivação, e sem cair em um ilusório imaginário de origem, de causas etc., como fazer um trabalho de leitura dos pequenos tesouros significantes senão inserindo-os no movimento da cadeia significante para engendrar um gesto possível de análise?

Como afirma Pêcheux (1994, pp. 50-52) o processo de ler um texto de arquivo institui um trabalho de leitura que é o de tornar legível o legível, seja restabelecendo pré-construídos, citações, seja produzindo outras relações de sentidos em meio ao não-sentido. A leituraestá nas relações entre sentidos – e entre significantes, acrescentaria -, e não em conteúdos supostos a priori7. O gesto discursivo de ler recusa a ideia de transparência da linguagem e dos sentidos, recusa ilusórias determinações intencionais de um ego consciente de si. Ler certos papeis (esquecidos? censurados? marcas de reviravoltas?) como tesouros significantes não é buscar um sentido que por si só explicaria o movimento do sujeito em mantê-los guardados, por exemplo. Aliás, nem é isso que interessa, ou o que interessaria seriam as muitas versões, as muitas interpretações. A leitura se realiza nos meandros do movimento, mantendo o enigma, sem visar uma decifração. Nesse trabalho de produzir legibilidade àqueles papeis se movimenta o assujeitamento ao Outro, enquanto rede/trama de significantes aos quais, por processos nada transparentes de identificação-interpelação, sentidos podem ou não aderir.

Imersa nos furos/esgarçamentos estruturantes da memória, no que há de sintomático nesse movimento do esquecer e guardar e deslocar e lembrar diferente e tornar a esquecer relacionados à opacidade dos pequenos tesouros significantes, me dei conta de como havia sido marcada tão intensamente pela tal viagem ao Acre em 1989. Sobre essa ‘intensidade’, fiz uma leitura a posteriori, durante a visita, em janeiro de 2025, a uma exposição no Centro Cultural do Banco do Brasil sobre a década de 80, intitulada Fulgás – artes visuais e anos 1980.8 Lá, mais uma vez, e inesperadamente, reencontrei Chico Mendes, a comoção nacional (e minha) que foi seu assassinato. Um assassinato que expunha um projeto de eliminação sistemática dos povos da floresta, seringueiros e indígenas.

 

Da esquerda para a direita: imagem 1: Livrinho Chico Mendes;imagens 2, 3 e 4: Cartazes em na exposiçãoFulgásno CCBB

Fotos da autora.

 

O dar de cara com os tais pequenos tesouros significantes tanto remeteu para um tempo de juventude acadêmica e militante quanto me espantou por sua atualidade. Boa parte da floresta que vi sendo incendiada nos anos 80 é agora um imenso espaço, agora sim, vazio, tomado pelo agronegócio com pastos e plantações de soja.

Na temporalidade desses 36 anos, um trabalho da história no discurso, ou melhor, da memória do que não se quer lembrar, permaneceu em movimento subterrâneo. Sentidos para o assassinato de Chico Mendes com a posterior prisão dos assassinos reverberaram intensamente na imprensa da época, como relata o socioambientalista Ricardo: “A notícia abalou muita gente e pôs a mídia em órbita. De repente todos queriam saber quem era o desconhecido seringueiro acriano. Ondas de choque percorreram a opinião pública. O crime reverberou e a veemência do repúdio mundial surpreendeu o establishment do país” (Ricardo e Arnt, 2024, p. 62).

Nos dias de hoje, apesar do trabalho de desmemória oficial brasileira, que, sobretudo nos governos Temer e Bolsonaro, progressivamente foi instalando um silenciamento nas mídias sociais e jornalísticas sobre Chico Mendes, além de seguir produzindo desinformação sobre as muitas amazônias na Amazônia, movimentos de resistência sempre se mantiveram em circulação. A publicação de livros e documentários com vários testemunhos de seringalistas, indígenas e ribeirinhos que lutaram com Chico Mendes, a inauguração de uma estátua e a criação de um site-memorial, por exemplo, visam impedir o esquecimento histórico da força do trabalho social e político desenvolvido pelo seringalista. A forte presença dessa ausência se faz escutar nas palavras de Gumercindo Rodrigues (2019), que foi advogado de Chico Mendes: “Ele não está morto. Se estivesse a gente não estaria aqui falando sobre as ideias dele...”.9 Já na primeira página do site do Conselho Nacional das Populações Extrativistas10, além de fotos, notícias variadas, acesso a blog, notícias de congressos realizados, podemos ler: “No começo pensei que estava lutando para salvar as seringueiras, depois pensei que estava lutando para salvar a floresta amazônica. Agora, percebo que estou lutando pela humanidade (Chico Mendes)”.

Como liderança de movimento de resistência, Chico Mendes denunciou para o Brasil e para o mundo sentidos e práxis dominantes na Amazônia. Fazer furos na hegemonia e esgarçar sentidos, isso, como nos diz Lagazzi (2018), é resistência simbólica.

 

 

 

 

Imagem 4 -Captura de tela do site cnsbrasil.org

 

 

 

Images 5 e 6: página inicial do site e estátua de Chico Mendes em Rio Branco, Acre

Fotos da autora

 

Os povos da floresta

Se, por um lado, aqueles pequenos tesouros significantes faziam parte de um percurso singular nos meus (des)caminhos na história social, por outro, me senti convocada a trabalhar alguns fios dessa memória.

Seguindo adiante no questionamento sobre a tensão do esquecer-lembrar-esquecer, sobre esses esburacamentos que eventualmente se mostram nos enigmas constitutivos da nossa história e da nossa subjetivação, puxo um fio para a tensão do esquecer-lembrar que se tece na história brasileira, pensando no gesto de interpretação que envolve especificamente a destruição de marcas de memória. À moda de Ariadne, para não me perder no labirinto de uma história social que parece estar sempre se perdendo da própria memória, recortei a estátua de Chico Mendes na praça dos Povos Indígenas, em Rio Branco, Acre.

Os nomes próprios Chico Mendes, Comissão Pró-Índio, Conselho Nacional dos Seringueiros e União das Nações Indígenas, dentre outros, hiperonimicamente reunidos na expressão ‘Aliança dos Povos da Floresta’, entram aqui puxando o fio de lutas que começam bem antes, mas que, talvez, com diferença em relação à história mítica, não tenham levado à saída do labirinto.

Os caminhos da linguagem política do ódio e da ofensa, no dia-a-dia, sobretudo em tempos extremados, são aqueles que atuam na política do silenciamento, não reconhecendo a alteridade, a democracia, os direitos, a solidariedade. Deslocam sentidos na luta política cotidiana, produzindo efeitos que exacerbam os preconceitos e exclusões as mais variadas, estimulando as ofensas, as discriminações e por aí vai.

Discursivamente dizemos que são caminhos trilhados em língua de pedra (Mariani, 2024), uma língua que impede a fluidez, os deslocamentos, as relações de contradição, de antagonismo, de aliança etc. entre os sentidos. Alargando um pouco nossas considerações, lembramos que Paulo Freire e Marielle Franco lutaram contra minotauros, teceram seus fios para sair do labirinto. Chico Mendes também. Digamos que, na língua de pedra, o fio simbólico de Ariadne no labirinto dos esquecimentos sociais e amazônicos é rompido por hegemonias agropecurárias (e outros interesses), que impedem disputas, polêmicas, (contra)argumentações. Como disse em texto anterior (2024), enunciar a partir da língua de pedra é manter a ofensa acesa, mesmo contra mortos, como Paulo Freire e Marielle Franco. Chico Mendes, assim como Marielle, não apenas foram silenciados, não apenas houve tentativas de colocá-los em esquecimento, mas também continuaram sendo ofendidos.

A língua de pedra tem um funcionamento que associamos à Lebovits-Quenehen (2020), quando a autora discute a atualidade do ódio. Em nossa perspectiva, está em jogo um silenciamento (Orlandi, 1992) que não é apenas dirigido aos outros (vivos ou mortos). As imprecações desumanizadoras do crime ambiental organizado, em sua forma simbólica e em sua práxis, dirigem-se aos outros (cancelados, degradados, desprezados) e ao Outro, ou seja, ao que fundamenta a singularidade do sujeito tanto em sua vida psíquica quanto na historicidade de sua vida coletiva e solidária. Em suma, a violência da língua de pedra significa um ataque ao que nos define como sujeitos de linguagem e do discurso. No atentado aos corpos e à forma de habitar a linguagem, a agressão se dirige à possibilidade de transmitir social e culturalmente traços de diferença. O Outro, que está nos fundamentos imemoriais e irrepresentáveis do sujeito, e está no que faz laço simbólico no social, com suas repetições, com seus interditos e renúncias, se torna objeto de um incansável processo de destruição.

Como disse no começo deste texto, Chico Mendes, nome de projeção nacional e internacional, seringueiro e ambientalista, há décadas trabalhava de modo incansável na defesa da Amazônia, dos trabalhadores dos seringais e dos povos indígenas. Ele liderou vários empates, forma de luta dos seringueiros em meio à floresta, criou o Conselho Nacional das Populações Extrativistas, recebeu o prêmio Global 500, concedido pela ONU. Seu assassinato ocorreu em 1988, ano de conclusão da Constituinte, e reabriu feridas nunca cicatrizadas sobre a eliminação de todos os que se opõem à inexistência de uma via civilizatória que estabeleça um compromisso coletivo visando uma sociedade mais igualitária e justa. A Chico Mendes é atribuída a autoria da designação ‘povos da floresta’, uma designação fundadora de discursividade (Orlandi, 1990), ou seja, tanto em termos retroativos relativamente aos genocídios praticados quanto em termos de uma memória do futuro.

Em entrevista concedida a Edilson Martins, não publicada no Jornal do Brasil11, Chico Mendes afirma em diversos momento que sua morte já tinha sido encomendada mais de uma vez. Chega mesmo a dizer o nome daqueles que de fato foram os mandantes do seu assassinato. Haveria maior mal-estar do que este? Não há respostas, sobretudo porque o luto em relação aos fantasmas dos povos da floresta é permanente.

Mais recentemente, participando do 5º FEANPOLL e do 39º evento do ENAPOLL, realizados na Universidade Federal do Acre (UFAC, entre os dias 03 e 06 de outubro), visitei a estátua em homenagem a Chico Mendes, na praça dos Povos Indígenas. Estive na praça pela manhã, fiz fotos, fui observada por algumas pessoas que estavam sentadas em bancos nas calçadas, duas ou três comendo em pé. Chico Mendes, com movimento de quem dá um passo adiante, vestido com calça jeans azul e camisa branca, parecia mais envelhecido do que nas fotos que dele vi. Na praça, sapatos marrons empoeirados, com a cor da terra de outrora e a de agora, assinalavam no meu imaginário uma caminhada que não havia acabado.

 

 

 

Imagem 6 - Caminhando?!

 

 

Foto da autora

 

Pesquisando sobre a estátua, descobri que ela havia sido derrubada e reerguida muitas vezes, que as mãos haviam sido arrancadas e refeitas. Chico Mendes bem que poderia estar com o fio de Ariadne em mãos... No entanto, os que praticam a língua de pedra atuam com pedras, apedrejando e destruindo tudo o que não é espelho. No gesto de arrancar as mãos calejadas do seringueiro, estaria o horror à diferença? No entorno da estátua, não encontrei nenhuma placa explicativa, nenhum texto, nenhum nome, nenhuma data. Entendi que a práxis política dos que reprimem os processos de resistência dos movimentos sociais não é mesmo para ser menosprezada, pois além de assassinar e manter ofensas aos que se foram durante a luta, estes repressores atacam e tentam destruir qualquer vestígio de memória. Querem colocar no anonimato, no esquecimento, no silenciamento.

Porém, é bom contar. Enquanto eu circulava pela praça e fazia fotos da estátua de Chico Mendes, uma moça que fazia um lanche em pé me observava de longe. Quando saí da praça e me virei para trás para dar uma última olhada, lá estava ela de frente para o Chico, esquadrinhando atentamente o que eu havia olhado. O que ela viu? Não sei. Nas lutas por determinados sentidos e pela inscrição na memória histórica nunca se sabe o que pode promover laço social no movimento da história e dos significantes.

 

 

 

 

 

Referências:

COURTINE, Jean-Jacques. O Chapéu de Clementis In INDURSKY, Freda (org.). Os múltiplos domínios da análise de discurso. Porto Alegre: Ed. Sagra Luzzato, 1986.

HENRY, Paul. A história não existe? In ORLANDI, Eni (org.). Gestos de leitura. Da história no discurso. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.

LACAN, Jacques. O seminário livro 5 (1955/1956). As formações do inconsciente. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LAGAZZI, Suzy. Resistência simbólica. Videoverbete da Enciclopédia audiovisual de termos, conceitos e pesquisas em análise do Discurso e áreas afins. www.encidis-uff.br

LEBOVITS-QUENEHEN, Anaëlle. Actualité de la haine une perspective psychanalytique. Navarin éditeur, 2020.

MARIANI, Bethania. Colonização linguística. Campinas: Pontes, 2002.

MARIANI, Bethania. Língua de pedra: a ofensa (injúria e difamação) na discursividade política. Revista Leitura, [S. l.], v. 1, n. 76, p. 111–125, 2023. DOI: 10.28998/2317-9945.202376.111-125. Disponível em: https://www.seer. ufal.br/index.php/revistaleitura/article/view/14262. Acesso em: 12 outubro 2024.

ORLANDI, E. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. Campinas, Editora da Unicamp, 1992.

ORLANDI, Eni. Terra à vista. Discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo, Campinas: Editora Cortez & editora da UNICAMP, 1990.

ORLANDI, Eni. Interpretação. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988 [1975]

PÊCHEUX, Michel. Ler o arquivo hoje. In ORLANDI, Eni (org.). Gestos de leitura. Da história no discurso. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.

PORRO, Antônio. Dicionário etno-histórico da amazônia colonial. São Paulo: IEB-USP, 2007.

RICARDO, Beto e ARNT, Ricardo. Uma enciclopédia nos trópicos. Memórias de um socioambientalista. Rio de janeiro: Zahar, 2024.

RODRIGUES, Gumercindo. Depoimento no documentário Uma aliança pela floresta. Episódio Chico Mendes – Brigada Ninja – Amazônia. Fotografia e montagem: Pedro Saldanha Werneck, 2019. < https://www.youtube.com/watch?v=EHIZWfCvjK0>

 

 

 

 


1  Cronistas, geógrafos e historiadores muitas vezes referem-se a determinados territórios como um ‘vazio geográfico’ ou ‘vazio cartográfico’, favorecendo a construção de sentidos para a região como desabitada, desocupada, em suma, vazia.

2  Mais adiante no texto esse ponto será retomado.

3  No Saussure lido por Lacan, o termo ‘tesouro’ é retomado para discutir o Outro

4  Outro em francês se escreve Autre, que Lacan registra como A.  A barra corta o A na diagonal, indicando que o Autre (Outro) é não todo.  O sujeito (do inconsciente) está em movimento na cadeia significante sendo representado de um significante para outro. Estruturalmente, a falta de um significante indica que não há um significante que represente o sujeito.

5  Pêcheux em Semântica e discurso (1988 [1975]) retoma Lacan mais de uma vez, chamando a atenção para o assujeitamento ao campo do Outro.

6  A leitura, a escuta, o olhar, a escrita... está nas relações entre sentidos e significantes.

7  Exposição no CCBB-RJ realizada entre outubro de 2024 e janeiro de 2025.

8  No documentário Uma aliança pela floresta - Episódio Chico Mendes | Brigada NINJA Amazônia <https://www.youtube.com/watch?v=EHIZWfCvjK0>

9  < https://cnsbrasil.org/>

10  Conforme editorial do Esquerda Diário <https://www.esquerdadiario.com.br/spip.php?page=gacetilla-articulo&id_article=27676> (consultado em 31/07/2025).  Nesse editorial se encontra o link para a referida entrevista.

11  Mestrando em Comunicação e Práticas do Consumo pela ESPM/SP. E-mail: reanelisboa@gmail.com.






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