O ato de noticiar não é neutro nem desinteressado: nele se encontram, entrecruzando-se, os interesses ideológicos e econômicos do jornal, do repórter, dos anunciantes bem como, ainda que indiretamente, dos leitores. Além desses fatores, as forças políticas em confronto no momento histórico em que se divulga um acontecimento vão constituir também os sentidos produzidos pelas notícias. Assim, cada jornal vai construindo uma visão do mundo específica e diferente. (Mariani, B. 1999, p. 102, negritos meus).
Introdução
Como nos diz a autora, na epígrafe, o discurso jornalístico rompe com a ilusão de objetividade muitas vezes sustentada pelos próprios meios de comunicação. Ao afirmar que o ato de noticiar não é neutro nem desinteressado, Mariani (1999) desloca a ideia de uma linguagem que apenas informa e posiciona a prática jornalística como constituída por diversos interesses: ideológicos, econômicos e políticos, os quais indicam o que pode ser dito, como se diz e quem pode dizer.
O entrecruzamento de diferentes posições – do jornal, do repórter, dos anunciantes e dos leitores – nos mostra que a produção da notícia não é um processo transparente, mas sim uma materialização discursiva marcada por filiações e disputas. Além disso, o destaque às forças políticas em confronto no momento da circulação da notícia reforça a noção de que o discurso jornalístico é também um campo de luta simbólica, em que sentidos se confrontam, se estabilizam ou são silenciados, dependendo do lugar enunciativo e da conjuntura histórica.
Ao afirmar que cada jornal vai construindo uma visão de mundo específica e diferente, a autora desloca o jornalismo do lugar do espelho da realidade para o lugar de uma produção situada de sentidos: os sentidos não são naturais, tampouco universais, mas produzidos em condições históricas e ideológicas determinadas. Esse entendimento abre espaço para analisar como, inclusive nos chamados meios alternativos, os efeitos de sentido operam segundo modos específicos de interpelação e constituição de sujeitos.
Para a análise de discurso materialista, não há uma língua autossuficiente e independente de suas condições de produção, a exterioridade é constitutiva do sentido: não há sentido sem sujeito e nem sujeito sem ideologia (Orlandi, 2005). Isso significa que o sujeito não é origem do que diz (ainda que pelo efeito da ideologia, acredite que sim), mas efeito de posições ideológicas que o constituem e delimitam o que pode ser dito. Assim, todo sentido é sempre efeito de um sujeito interpelado, e todo sujeito só existe na relação com as formações ideológicas que o atravessam/constituem.
Sobre a delimitação daquilo que pode e deve ser dito, Pêcheux (1995) nos diz que a Formação Discursiva é
Aquilo que, numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc. (Pêcheux, 1995, p. 160, negritos meus).
A formação discursiva é o lugar onde o sujeito se inscreve discursivamente, ainda que sem plena consciência. Ao falar, o sujeito ocupa uma posição determinada pelas formações ideológicas em conflito, sendo interpelado por elas. O que o sujeito diz, portanto, é historicamente administrado, regulado por memórias e por dispositivos de repetição e interdição. A formação discursiva articula linguagem, ideologia e história, constituindo os sentidos e o próprio sujeito que não fala (ainda que não saiba disso) “em nome próprio”, mas de um lugar já ocupado e instituído.
O discurso jornalístico, assim como qualquer discurso, não está apartado do social, de suas condições de produção, da história: ele produz sentidos a partir de suas filiações discursivas ainda que naturalize dizer do mundo como se o observasse de um lugar privilegiado, fora do ideológico, como se o mundo fosse um objeto a ser analisado (Mariani, 1999).
Ainda que a autora esteja se referindo ao funcionamento dos grandes meios de comunicação, a questão que se coloca neste artigo é se o funcionamento da imprensa alternativa digital seria diferente? Se sim, quais são essas distinções? O que a imprensa alternativa diz do próprio funcionamento? São algumas questões para pensar como essa imprensa circula e produz sentidos.
O discurso jornalístico alternativo e digital
O discurso jornalístico alternativo digital, embora se proponha (formação imaginária2) como contraponto ao discurso dominante dos grandes meios de comunicação, não escapa ao funcionamento próprio da linguagem constituída pela ideologia. Ainda que coloque em xeque a pretensa neutralidade da mídia hegemônica, ele também se constitui por filiações discursivas e ideológicas que delimitam o que pode e deve ser dito. Os sentidos que circulam nesse espaço não são livres, mas efeitos de posições de sujeito, de memórias discursivas e de regimes de visibilidade específicos. Mesmo ao buscar dar lugar a sujeitos e discursos silenciadas ou a temas apagados na cobertura dominante — e frequentemente o faz —, o jornalismo alternativo também interpreta, seleciona, organiza, silencia e produz sentidos a partir de sua própria posição na disputa simbólica, sem jamais estar fora do ideológico, ainda que por vezes também encene essa exterioridade.
O jornalismo alternativo digital emerge como uma prática discursiva que tensiona o monopólio da enunciação historicamente consolidado pelos grandes grupos de mídia, os quais, sob a aparência de neutralidade e objetividade, ocupam lugares de autoridade na administração dos sentidos sobre o que é público, relevante e verdadeiro. No contexto contemporâneo, marcado pela intensificação da circulação informacional nas redes digitais e pela fragmentação dos modos de produção e acesso ao discurso, é preciso interrogar de que modo esse outro jornalismo se inscreve nas disputas por visibilidade e reconhecimento. (Soares, 2025, p. 2, negritos meus).
O autor nos diz que o jornalismo alternativo digital emerge como um dizer que desestabiliza o monopólio da enunciação historicamente mantido pelos grandes grupos de mídia. Esses, ao se apresentarem como neutros e objetivos, mantêm lugares de autoridade na administração dos sentidos sobre o que se considera público, legítimo e verdadeiro. Ao tensionar esse lugar, o jornalismo alternativo expõe que tais sentidos são produzidos em condições ideológicas específicas, sustentadas por formações discursivas hegemônicas.
No contexto atual, em que há uma intensificação da circulação de discursos nas redes digitais, o alternativo e digital passa a disputar os modos de dizer e de significar o mundo. Ao se inscrever em outras filiações ideológicas, esse jornalismo rompe com regularidades discursivas estabilizadas, reintroduzindo sentidos silenciados ou interditados. Com isso, evidencia-se que a luta por visibilidade e reconhecimento é também uma luta por dizer de outro modo, fazendo com que o espaço midiático se torne um campo de embate simbólico entre diferentes formas de leitura do social.
Tomando os discursos em geral, a afirmação de que o que sustenta a formulação dos dizeres no digital é a sua própria circulação se refere a esse aqui e agora da própria circulação que, no digital não se separa da circunstância da enunciação. (Dias, 2018, p. 34, negritos meus).
Diferentemente de outras materialidades, no digital a formulação e a circulação estão imbricadas, não havendo uma separação nítida entre o momento em que algo é dito e o modo como isso será compartilhado, reenviado, curtido, comentado, recortado ou descontextualizado. A circunstância da enunciação, nesse caso, não se limita ao instante da produção inicial, pois se prolonga e se transforma conforme o discurso se movimenta pelas redes. O digital, portanto, produz um tipo de presente contínuo, em que o dizer se reorganiza permanentemente com base em sua própria circulação.
O digital reconfigura a espacialidade e a temporalidade da circulação, introduzindo novos modos de repetição, dispersão e reconhecimento dos dizeres. As fronteiras entre lugares de enunciação se tornam mais móveis, e as filiações discursivas se atualizam a partir de dinâmicas próprias das redes. Ao permitir a emergência de discursos que escapam, ao menos parcialmente, das formas tradicionais de controle simbólico, o digital intervém nos modos de visibilidade, memória e inscrição ideológica do jornalismo alternativo, demandando que ele seja tratado como parte das condições de produção, e não apenas como meio técnico.
Em algumas situações, o jornalismo alternativo (digital) ocupa um lugar de resistência, deslocando os sentidos estabilizados e fazendo funcionar outras posições de sujeito, o que permite o surgimento de enunciados que rompem com o que se apresenta como consenso. Ao colocar em circulação novos modos de narrar, ele tensiona os gestos de interpretação já naturalizados e contribui para a reconfiguração dos discursos sobre o mundo. Entretanto, essa resistência não se dá fora dos limites da história e da ideologia: ela se realiza a partir de disputas, contradições e interdições próprias dos materiais de que esse discurso se alimenta.
O elemento da circulação se sobressai ao da formulação e ao da constituição no processo de produção dos discursos e do conhecimento, pela maneira como a noção de informação se discursiviza em nossa sociedade. (Dias, 2018, p. 43, negritos meus).
A autora propõe um deslocamento importante na compreensão dos discursos contemporâneos, ao indicar que a circulação adquire centralidade na produção de sentidos, ultrapassando a formulação e a constituição como elementos primordiais. Esse destaque à circulação se relaciona à forma como a noção de informação se materializa discursivamente na sociedade atual, em que a velocidade, a replicação e a visibilidade do dizer passam a exercer forte influência na legitimação do que é tomado como conhecimento.
Esse movimento sugere que o valor de um enunciado passa a depender menos de sua elaboração conceitual e mais de sua capacidade de circular. A discursivização da informação, nesse contexto, inscreve sentidos que são validados pelo número de acessos, compartilhamentos e interações, o que redefine os modos de constituição do saber. Assim, a circulação se torna não apenas um efeito, mas uma condição determinante da produção discursiva no digital, afetando a própria relação dos sujeitos com o que se toma como verdadeiro, relevante ou pertinente.
O jornalismo alternativo e digital é um espaço de contradição: ele pode tanto produzir deslocamentos e instaurar outras interpretações quanto reproduzir formas discursivas que sustentam a ilusão de (formação imaginária que o jornalismo produz de si e que o sujeito leitor de alguma forma reproduz) um discurso objetivo que apenas informa. O discurso jornalístico alternativo digital participa de redes de sentidos em disputa, produzindo interpretação que se filia às mesmas condições históricas que sustentam o discurso jornalístico dominante.
A mídia alternativa mobiliza formações imaginárias que se ancoram na ideia de autonomia, engajamento e transparência, diferenciando-se do jornalismo tradicional ou situando este jornalismo nesse lugar em detrimento do lugar que o jornalismo alternativo diz ocupar. Essa imagem, inscrita nos modos de apresentação e nos enunciados que compõem sua discursividade, constrói a figura de um jornalismo que está na rua, fala com o povo, transmite ao vivo, rompe com os filtros da grande mídia. Nessa formação imaginária, a mídia alternativa se posiciona como mediador direto da notícia, como se não houvesse entre o que está sendo noticiado e o discurso qualquer instância de mediação simbólica, técnica ou ideológica. Ao adotar essa posição, o jornalismo alternativo projeta uma relação com o leitor/militante que sustenta a ilusão de uma informação mais verdadeira por vir de dentro da luta, como se isso por si só garantisse acesso privilegiado à verdade.
Contudo, essa formação imaginária que o Mídia Ninja produz de si também participa das mesmas condições históricas de produção que configuram o discurso midiático dominante. O gesto de se apresentar como legítimo por sua vinculação direta aos movimentos sociais e por sua performance digital pode tanto instaurar deslocamentos nos modos de dizer quanto reiterar a crença em uma fala transparente e objetiva. O leitor, interpelado por essa formação, tende a ocupar o lugar de alguém que vê o “lado verdadeiro da história”, reforçando a ilusão de que existe um discurso que apenas mostra, sem interpretar. A formação imaginária, nesse caso, atua como efeito ideológico, apagando os atravessamentos da linguagem e as disputas que constituem o dizer jornalístico, mesmo quando ele se declara alternativo.
Análise das sequências discursivas:
livre, independente e multiplicidade de parcialidades
O dispositivo teórico-metodológico da análise do discurso materialista se constrói num movimento pendular entre teoria e análise (Petri, 2013). Petri observa que é impossível precisar onde se inicia esse processo, pois ele pode emergir da teoria, da análise propriamente dita ou ainda do contato do analista com seu objeto. É nesse movimento que a análise do discurso permite compreender como o jornalismo — hegemônico ou alternativo — se constitui em determinadas condições históricas e se inscreve em formações discursivas que produzem os efeitos de sentidos possíveis.
Essa relação imbricada entre teoria e método são constitutivos do discurso na nossa perspectiva, admitindo a impossibilidade de se empregar a análise do discurso apenas como método. Esta é uma particularidade desta disciplina, como defende Orlandi (2012):
Ser aberto, dinâmico (não positivista), não sendo tomado como aplicação automática da teoria, mas como mediação entre teoria e análise, na busca dos procedimentos próprios ao objeto que se analisa. (Orlandi, 2012, p. 12, negritos meus).
A análise do discurso se distancia de posturas prescritivas ou mecanicamente aplicacionistas, rejeitando uma lógica positivista que reduziria a prática analítica à simples operacionalização de conceitos teóricos. Ao propor uma postura aberta e dinâmica, Orlandi (2012) desloca a análise para um lugar de mediação, em que a teoria não é um conjunto de regras a serem seguidas rigidamente, mas um ponto de partida para a construção de procedimentos que emergem da materialidade significante do objeto em questão. Tal perspectiva reafirma a inseparabilidade entre teoria e análise, exigindo do analista uma escuta atenta ao funcionamento do discurso e à historicidade que o atravessa, reconhecendo que cada corpus demanda um gesto de interpretação singular, ainda que ancorado em um referencial teórico rigoroso.
Parto, portanto, do discurso do Mídia Ninja sobre o seu próprio funcionamento, uma vez que ao dizer de si desloca sentidos colados ao funcionamento da grande imprensa. O nosso corpus analítico é composto por sequências discursivas3 extraídas do portal de notícias Mídia Ninja, especificamente da aba A Mídia Ninja e das subabas Quem somos e Perguntas frequentes. A sequência discursiva abaixo (SD1) retirada da aba A Mídia Ninja (Quem Somos) diz sobre o próprio funcionamento
SD1. Somos uma rede de comunicação livre que busca novas formas de produção e distribuição de informação a partir da tecnologia e de uma lógica colaborativa de trabalho. Entendemos a comunicação democrática como um direito humano e defendemos o interesse público, a diversidade cultural e o direito à informação, visibilizando pautas de comunicação, causas identitárias, cultura, meio ambiente, juventude e outras que dialogam com os desafios do século XXI. (Mídia Ninja, A Mídia Ninja, Quem Somos, negritos meus).
Na SD1, o gesto de dizer-se uma rede de comunicação livre constitui mais que uma autodeclaração: trata-se de um posicionamento discursivo que nos mostra uma distinção em relação ao discurso da grande imprensa. Ao denominar-se como livre, o Mídia Ninja se inscreve em uma formação discursiva que confronta diretamente o modo como os grandes veículos de comunicação se apresentam no espaço público. Esse dizer de si, ao mesmo tempo em que afirma um projeto de comunicação, delimita o lugar do outro no jogo das posições: o outro que se diz neutro, técnico ou imparcial, mas que se sustenta em filiações ideológicas e econômicas historicamente constituídas.
A afirmação de liberdade, nesse caso, não remete a uma liberdade plena ou desvinculada de determinações ideológicas. O que se coloca em funcionamento é um efeito de sentido que se inscreve em oposição às filiações históricas e ideológicas que sustentam os grandes meios de comunicação. Ainda que busque se diferenciar, o discurso da imprensa alternativa também se produz a partir de filiações, inscritas na história e nas condições de produção que sustentam seus modos de dizer. Dizer-se livre, portanto, participa de uma disputa simbólica que não escapa às determinações ideológicas que atravessam todo dizer.
É importante abrir um parêntese aqui para dizer sobre os grandes meios de comunicação que se vendem como independentes. O uso da denominação independente carrega a marca de uma tentativa de apagamento das determinações históricas, econômicas e ideológicas que atravessam a produção jornalística (assim como dizer-se livre). Ao se dizerem independentes, esses meios produzem uma imagem de autonomia frente a partidos políticos, governos ou interesses externos, mas silenciam — ou naturalizam — os vínculos com as lógicas do mercado, com determinadas formações ideológicas e com as condições materiais que sustentam sua existência.
Ambos (livre e independente) operam com o apagamento da posição de sujeito e da opacidade da linguagem, sustentando a ilusão de que o enunciador não está implicado no que diz, como se fosse possível narrar as notícias a partir de uma posição privilegiada (fora do ideológico), isenta, exterior ao conflito de sentidos. A independência, nesse funcionamento, deixa de ser compreendida como uma posição historicamente situada e passa a operar como uma forma de legitimação, como se houvesse um lugar puro do dizer.
O jornal O Globo na aba Quem somos, na Seção I: OS ATRIBUTOS DA INFORMAÇÃO DE QUALIDADE, no item 1. Isenção usa a denominação independente duas vezes. Na Seção II: COMO O JORNALISTA DEVE PROCEDER DIANTE DAS FONTES, DO PÚBLICO, DOS COLEGAS, DO VEÍCULO PARA O QUAL TRABALHA E DAS REDES SOCIAIS, outras duas vezes para se referir à independência das redações (“as redações dos veículos do Grupo Globo são absolutamente independentes” e “As redações são independentes na busca por notícias”) e na Seção IV – OS VALORES CUJA DEFESA É UM IMPERATIVO NO JORNALISMO, uma vez:
SD2. Seção I) ATRIBUTOS DA INFORMAÇÃO DE QUALIDADE: O Grupo Globo é independente de governos, e os seus veículos devem se esforçar para assim ser percebidos; m) O Grupo Globo é independente de grupos econômicos, e os seus veículos devem se esforçar para assim ser percebidos. Por esse motivo, as decisões editoriais sobre reportagens envolvendo anunciantes serão tomadas a partir dos mesmos critérios usados em relação aos que não sejam anunciantes; Seção IV – OS VALORES CUJA DEFESA É UM IMPERATIVO DO JORNALISMO - O Grupo Globo será́ sempre independente, apartidário, laico e praticará um jornalismo que busque a isenção, a correção e a agilidade, como estabelecido aqui de forma minuciosa.
(O Globo, Quem somos, https://oglobo.globo.com/principios-editoriais/#isencao, itálicos nossos e caixa alta do jornal).
A denominação independente aparece reiteradamente como um traço fundamental da posição discursiva do grupo. Em três momentos distintos — nas seções I e IV dos Princípios Editoriais —, essa nomeação se organiza como um gesto de legitimação que busca instituir o jornalismo praticado pelo veículo como neutro, isento e desatrelado de interesses externos, sejam eles políticos ou econômicos. No entanto, ao tomar a denominação independente como objeto de análise, é possível observar que seu funcionamento ultrapassa o gesto de autodefinição. O que se coloca, nesses enunciados, é um efeito de sentido sustentado por condições históricas e ideológicas que estruturam a posição de enunciação ocupada pelo jornal.
Na formulação O Grupo Globo é independente de governos, e os seus veículos devem se esforçar para assim ser percebidos, o dizer opera uma duplicidade que nos mostra a instabilidade do próprio enunciado: afirma-se um funcionamento essencial (a independência), mas também se admite que ela precisa ser reconhecida, percebida, construída discursivamente. O esforço para ser visto como independente nos aponta que tal autonomia não é uma condição estável ou garantida, mas um efeito que precisa ser continuamente produzido no dizer. Assim, o jornal mobiliza a imagem de neutralidade como um modo de garantir autoridade e confiabilidade, apagando os atravessamentos que sustentam o lugar de onde se fala.
Essa lógica reaparece na sequência O Grupo Globo é independente de grupos econômicos [...] as decisões editoriais sobre reportagens envolvendo anunciantes serão tomadas a partir dos mesmos critérios usados em relação aos que não sejam anunciantes. Aqui, o discurso tenta delimitar um espaço de autonomia frente aos interesses do mercado, mas o próprio fato de enunciar essa separação denuncia a tensão existente entre a prática editorial e os vínculos econômicos que sustentam a atividade jornalística. Ao declarar que os critérios editoriais não se alteram em função da presença de anunciantes, o enunciador tenta neutralizar o questionamento sobre possíveis interferências externas, reforçando uma posição de autoridade que se constrói precisamente na medida em que esses vínculos são colocados em causa.
Na seção IV, ao afirmar que O Grupo Globo será sempre independente, apartidário, laico e praticará um jornalismo que busque a isenção, a correção e a agilidade, o enunciado se organiza em torno de uma cadeia de atributos que visa fixar uma identidade editorial marcada por valores considerados universais. A utilização da denominação sempre tenta apagar as marcas da historicidade e da ideologia, instaurando uma imagem de continuidade e coerência ética. Entretanto, a associação entre independência, isenção e correção retoma uma lógica discursiva própria da grande imprensa: a de que haveria um lugar neutro do dizer, um ponto de observação privilegiado a partir do qual o mundo pode ser narrado com objetividade.
O funcionamento discursivo da denominação independente, portanto, não se esgota na superfície do texto. Ele mobiliza uma memória institucional que naturaliza determinadas posições de sujeito — como a do jornalista neutro, do veículo imparcial e do observador externo —, ao mesmo tempo em que silencia as filiações ideológicas e históricas que sustentam essas posições. O dizer-se independente, nesse contexto, participa de um jogo de legitimação que visa distinguir o jornal dos vínculos partidários ou governamentais, mas que, paradoxalmente, também o inscreve nas mesmas condições discursivas que caracterizam a produção jornalística hegemônica: o apagamento da opacidade da linguagem e da posição de enunciação.
Assim, a independência não se apresenta como uma condição efetiva, mas como uma construção discursiva que busca sustentar certos efeitos de sentido, especialmente o da credibilidade. Essa nomeação se ancora na tentativa de construir/sustentar uma imagem de confiabilidade, mas o faz dentro de uma formação discursiva que pretende naturalizar seus próprios limites, silenciando os atravessamentos ideológicos que a constituem. Ao se dizer independente, o jornal reinscreve os gestos de controle e de administração dos sentidos que atravessam a prática jornalística, mesmo quando esta se apresenta como neutra, imparcial ou desinteressada. Fechando assim o parêntese aberto acima.
Voltando aos sentidos posto em circulação na SD1, ao mobilizar denominações como direito humano, interesse público, diversidade cultural e visibilização de pautas identitárias, o portal de notícias faz funcionar uma memória discursiva marcada pelas lutas sociais e por processos de resistência que reivindicam não apenas a palavra, mas a própria possibilidade de ser incluído no jogo da comunicação.
Esse dizer também mobiliza uma lógica de constituição coletiva: ao se apresentar como uma rede e ao enfatizar uma lógica colaborativa de trabalho, o enunciado rompe com a figura tradicional da autoridade editorial centralizada, comum nos grandes jornais. Em seu lugar, projeta-se uma outra configuração de autoria, sustentada em práticas coletivas que buscam redistribuir a palavra, desconcentrar o poder de enunciação e ampliar os modos de visibilização dos sujeitos sociais.
Portanto, o que está em jogo nesses enunciados não é apenas uma descrição institucional, mas um gesto de inscrição política e simbólica no campo discursivo da comunicação. A constituição dessa posição de sujeito — que diz de si como livre — confronta modos estabilizados de funcionamento da mídia e intervém na circulação dos sentidos, instaurando outras regularidades e outras formas de interpelação dos leitores.
Para compreender a produção dos efeitos de sentido nas denominações analisadas a partir da SD1, é necessário considerar, no campo da análise do discurso, o modo como as denominações funcionam enquanto gestos de linguagem inscritos em formações discursivas.
Denominar não é apenas um aspecto do caráter de designação das línguas. Denominar é significar, ou melhor, representa uma vertente do processo social de produção de sentidos. O processo de denominação não está na ordem da língua ou das coisas, mas organiza-se na ordem do discurso [...] (Mariani, 1998, p. 118, apud Ferrari; Medeiros, 2012, p. 84, negritos meus).
Essa citação de Mariani, retomada por Ferrari e Medeiros, desloca a compreensão tradicional do ato de nomear — frequentemente visto como uma simples operação linguística ou referencial — para o campo da significação enquanto processo histórico e social. Ao afirmar que denominar é significar, a autora inscreve o gesto de nomeação como parte de uma rede discursiva atravessada por relações de poder, memória e ideologia.
Não se trata de uma designação objetiva que decorre de uma relação estável entre palavra e coisa. Ao contrário, o ato de nomear mobiliza sentidos que são produzidos em formações discursivas específicas, ou seja, em contextos históricos e ideológicos determinados. Assim, o que está em jogo é menos o nome como rótulo e mais a posição-sujeito que esse nome faz emergir e o conjunto de sentidos que se estabilizam ou se apagam nessa operação.
Ao dizer que a denominação não pertence à ordem da língua ou das coisas, mas se organiza na ordem do discurso, Mariani (1998) aponta para a instabilidade dos sentidos e para a impossibilidade de que seja apenas uma nomeação. Nomear é um gesto político que posiciona sujeitos, atribui lugares, atualiza memórias e bloqueia outras possíveis leituras. Em outras palavras, nomear é sempre tomar parte na disputa pelos sentidos.
Nome é, pois, discurso. E, na ordem do discurso, as denominações fazem emergir posições-sujeito dos enunciadores, evidenciando, assim, formações discursivas às quais estão vinculadas. (Ferrari; Medeiros, 2012, p. 85, negritos meus).
Os autores sustentam uma concepção de nomeação que rompe com qualquer entendimento descritivo da linguagem. Ao afirmarem que o nome é discurso, inscreve-se a denominação no campo do político e do ideológico, afastando-se de uma ideia de nomear como mera atribuição referencial. Nomear é, nesse sentido, produzir sentidos sob determinadas condições de produção, acionando memórias, apagamentos e filiações que ultrapassam o sujeito falante.
Quando se afirma que as denominações fazem emergir posições-sujeito dos enunciadores, aponta-se para o funcionamento da ideologia na constituição do dizer. Não se trata apenas de quem nomeia, mas de qual lugar ocupa aquele que nomeia, qual formação discursiva o atravessa e quais sentidos são possíveis ou interditados nesse gesto. Assim, nomear é posicionar-se e posicionar o outro, é instaurar relações de poder e modos de significar o mundo.
Essa perspectiva desloca a análise da nomeação do campo da língua para o campo do discurso, compreendendo que a regularidade dos nomes é regulada por formações discursivas em disputa. Denominar, portanto, não é um ato inocente ou transparente, mas um gesto atravessado pela opacidade da linguagem e pelas condições materiais e históricas que determinam o que pode e o que não pode ser dito.
Diante disso, a Mídia Ninja ao afirmar-se como uma rede de comunicação livre, constrói um gesto enunciativo que se define pela negação de um outro funcionamento: aquele atribuído à grande imprensa. A designação livre opera como materialidade que delimita um campo discursivo específico, vinculado à recusa de filiações políticas e econômicas que atravessam outros modos de fazer jornalismo.
Dizer-se livre implica estabelecer uma diferença produtiva, pois, ao nomear-se assim, a rede formula para si um lugar no qual se pretende desvinculada das injunções que marcam os grandes grupos de mídia. A constituição dessa posição discursiva envolve uma disputa: não se trata apenas de dizer quem se é, mas também de indicar quem não se quer ser. A produção da comunicação como direito humano, a defesa da diversidade cultural, das causas identitárias e dos temas contemporâneos marca a inscrição em uma formação discursiva que desloca a centralidade de interesses de mercado ou de compromissos partidários. Ao mesmo tempo, esse dizer tensiona os sentidos atribuídos à própria noção de independência, uma vez que a linguagem, atravessada por contradições, nunca é plenamente autônoma. A liberdade proclamada, portanto, não está no plano de um fora da ideologia e muitos menos do Mercado, mas opera como um dispositivo discursivo que organiza sentidos em torno de uma identidade construída na oposição a um outro funcionamento da comunicação.
Seria a imprensa alternativa livre? O que essa liberdade diz sobre aquilo que o Mídia Ninja pauta? Parece-me que há sítios de significância4 em torno do funcionamento da imprensa alternativa, postos aqui na denominação livre escolhida pela Rede de Comunicação para dizer-se e para se opor à grande imprensa.
Além disso, o Mídia Ninja diz de uma comunicação democrática que reforça o sentido de independência e de liberdade, uma vez que para produzir uma comunicação democrática e livre é preciso romper com as filiações políticas e econômicas. Mas é possível romper com essas filiações? De que forma o Mídia Ninja rompe com essas filiações próprias, segundo a Rede, do discurso da grande imprensa?
SD2. A Mídia Ninja é fruto do investimento do trabalho de seus colaboradores, e conta com a estrutura e força de trabalho da rede Fora do Eixo para realizar suas atividades, além de organizações internacionais que se interessam em custear a formação de novos agentes de comunicação e a produção de conteúdos ligados às questões socioambientais e culturais. Temos autonomia dos poderes econômicos e políticos, que não determinam nossa linha editorial nem os conteúdos que queremos comunicar. (Mídia Ninja, A Mídia Ninja, Perguntas frequentes, em resposta à pergunta Como a Mídia Ninja se financia?, negritos meus).
Segundo a própria Rede de Comunicação, o investimento é parte do trabalho dos colaboradores dessa Rede, a estrutura e força partem da Rede Fora do Eixo e de organizações internacionais que não determinam nem a linha editorial e nem os conteúdos que comunicam. Ou seja, os sentidos de liberdade estão ligados discursivamente à independência econômica que permite a liberdade editorial e de conteúdo.
Esta rede diz buscar novas formas de produção e distribuição de informação a partir da tecnologia e de uma lógica colaborativa. O Mídia Ninja se reconhece nesse lugar discursivo nova forma de produção/distribuição de informação em aposição às velhas formas (ainda que não diga quais seriam essas).
Além disso, a sua produção e distribuição se dá a partir dessa lógica colaborativa que já está inscrita na denominação Rede (Rede Mídia Ninja e Rede Fora do Eixo): uma remissão a uma teia de funcionamento que compartilha da mesma forma de produção/distribuição de informação, apontando para uma filiação discursiva constituída desse novo outro lugar sempre em oposição aos meios de comunicação que não podem ocupar esse lugar ou fazer parte dele em virtude, principalmente, da dependência econômica que provavelmente pautam linhas editoriais e conteúdos.
No enunciado em que a Mídia Ninja sustenta a autonomia em relação aos poderes econômicos e políticos, há um funcionamento discursivo que tenta fundar a legitimidade do dizer a partir de uma exterioridade produtiva. A nomeação da rede Fora do Eixo como estrutura de apoio e a menção ao trabalho colaborativo funcionam como marcas de um outro modo de produção, que se quer distante da dependência financeira ou institucional que atravessa outras instâncias midiáticas. Essa inscrição discursiva reorganiza o lugar da enunciação: não mais um dizer condicionado por patrocínios, financiamentos governamentais ou pressões partidárias, mas um dizer que se apresenta como fruto de um trabalho coletivo e autogerido.
A produção de conteúdos ligados às causas socioambientais e culturais aparece então como desdobramento desse funcionamento material e simbólico. A constituição desse lugar enunciativo também opera como gesto de enfrentamento: há um reposicionamento da linguagem jornalística que se descola da lógica empresarial da notícia e busca instaurar outro regime de circulação e de sentidos. A nomeação da rede Fora do Eixo como base é, portanto, mais do que uma menção factual: ela demarca o eixo ideológico de onde se diz, um eixo que se pretende descentralizado, horizontal, colaborativo. A produção discursiva ali se organiza de modo a sustentar que essa forma de operar não se submete aos condicionamentos que regulam a grande imprensa. O enunciador reivindica, nesse funcionamento, um lugar em que a autonomia editorial se dá como consequência de uma filiação discursiva diversa.
Contar com a estrutura/força da Rede Fora do Eixo também aponta para um outro lugar de produção de sentidos. Um eixo pode ser uma linha reta, real ou imaginária, que atravessa o centro de um corpo e em torno da qual esse corpo efetua ou pode efetuar movimento de rotação. Estar Fora do Eixo é produzir sentidos de um outro lugar. É estabelecer, para si, novas filiações.
SD3. Valorizamos a multiplicidade de parcialidades e buscamos alinhar a informação com um conjunto de valores e direitos sociais, com os quais temos compromisso e que para nós são fundamentais. Nossas pautas são nossas causas. Acreditamos no movimento e na transformação social, a partir de uma experiência radical de mídia livre e distribuída, a serviço de uma nova narrativa social, mais comunitária e mais afetiva. (Mídia Ninja, A Mídia Ninja, Perguntas frequentes, em resposta à pergunta A Mídia Ninja é imparcial? negritos meus).
Multiplicidade de parcialidades e alinhamento com um conjunto de valores e direitos sociais com os quais temos compromisso é afirmar-se como um meio de comunicação que tem lado e que isso não é uma questão que inviabilizaria a produção de notícias. Ao contrário, posicionar-se contrário à imparcialidade é o que possibilita tomar partido diante daquilo que se coloca em circulação. O Mídia Ninja é um movimento de militância da/na comunicação que vai traçando esse funcionamento e se descolando daquilo que tradicionalmente ainda constitui o discurso da grande imprensa sobre si.
Na formulação que afirma valorizar a multiplicidade de parcialidades, o Mídia Ninja opera um deslocamento significativo em relação ao imaginário da imparcialidade jornalística. Ao tomar para si o compromisso com causas e valores sociais, essa rede de comunicação assume uma posição discursiva atravessada por filiações políticas explícitas, em que a noção de neutralidade não é vista como critério de legitimidade, mas como construção ideológica que mascara interesses. O enunciador afirma que suas pautas são suas causas, o que faz da produção noticiosa uma prática engajada e situada. O dizer torna-se, assim, atravessado por uma militância da/na linguagem, que tensiona o papel da imprensa como mera mediadora e assume a produção de sentidos como lugar de confronto. Nesse funcionamento, a comunicação não se apresenta como canal de transmissão de dados, mas como campo de disputa em que os sujeitos e os sentidos se produzem mutuamente.
A nomeação de uma experiência radical de mídia livre e distribuída inscreve um outro modelo de circulação, fundado em redes colaborativas e na interpelação dos sujeitos como agentes de transformação. Os sentidos de comunidade e de afeto que aparecem associados à proposta de uma nova narrativa social não operam no plano da emotividade, mas funcionam como efeitos de um discurso que se constrói na crítica ao individualismo e à homogeneização da linguagem jornalística tradicional. Assim, o Mídia Ninja se posiciona não apenas como produtor de notícias, mas como sujeito discursivo que se constitui na luta por modos outros de dizer, de informar e de organizar o comum.
Os compromissos, segundo o próprio Mídia Ninja, dizem respeito aos seus valores e direitos sociais que pautam aquilo que é produzido como conteúdo e linha editorial. O Mídia Ninja vai apontando, portanto, os sítios de significância nos quais essa Rede circula/e diz circular.
Se afirmamos que sentido e sujeito se constroem ao mesmo tempo (Orlandi, 2012), dizer-se desse lugar é construir para a imprensa das grandes corporações um outro lugar que a mídia alternativa não quer ocupar porque pensa a língua, a produção de notícias constituída por filiações discursivas outras.
Segundo Mariani (2005), a língua não é apenas um instrumento de comunicação. Comunicar é a parte visível do funcionamento do discurso. O discurso, portanto, é opaco, e essa opacidade produz um efeito de evidência que se cola aos referentes.
É a ideologia que fornece as evidências pelas quais todo mundo sabe o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado queiram dizer o que realmente dizem e que mascaram, assim, sob a transparência da linguagem. Aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados. (Pêcheux, 1995, p. 160, negritos meus).
Pêcheux destaca o efeito de evidência como um dos modos pelos quais a ideologia atua na constituição dos sentidos. Quando o autor afirma que é a ideologia que fornece as evidências pelas quais se sabe o que é um soldado, um operário ou uma greve, ele nos interpela a perceber que esse saber não é natural, mas resultado de processos históricos e discursivos que instituem sentidos como se fossem únicos, óbvios, inquestionáveis. O efeito de evidência é, portanto, uma forma de apagamento da opacidade da linguagem: os sentidos aparecem como dados, como se sempre tivessem estado ali, prontos para serem reconhecidos, quando, na verdade, foram produzidos, reiterados e estabilizados em determinadas formações discursivas.
Chamar atenção para esse efeito é crucial, pois significa romper com a aparência de neutralidade da linguagem e desfazer o automatismo interpretativo que naturaliza sentidos. Quando Pêcheux se refere ao caráter material do sentido das palavras e dos enunciados, ele desloca a análise da linguagem do plano abstrato para o plano da história e das condições de produção. O que se mostra como evidente carrega, na verdade, um trabalho de apagamento da sua constituição discursiva. Assim, desmontar o efeito de evidência é colocar em cena a ideologia em seu funcionamento, evidenciando que o que se diz, e como se diz, está sempre atravessado por posições de sujeito, disputas de sentidos e memórias que sustentam o que pode ser tomado como verdadeiro ou legítimo.
Sob o efeito de evidência, no qual se pauta, o discurso jornalístico circula como se falasse do mundo de um lugar privilegiado. À semelhança do discurso pedagógico em sua forma mais autoritária (Mariani, 1998), que nos ensina, nos mostra, nos exemplifica, ilustra, nos guia na direção de um mundo pronto para ser lido: os sentidos são disponibilizados sem margens para outras interpretações: “Fazendo crer que apresenta os fatos tais como são, com uma linguagem isenta de subjetividades” (Mariani, 1998).
O discurso jornalístico funciona como um desambiguizador do mundo, construindo modelos de compreensão da realidade, naturalizando sentidos e interpretações e apagando os processos históricos (Mariani, 1998).
A discussão sobre os discursos que dizem sobre remete a um funcionamento em que o lugar do enunciador é marcado por uma suposta autoridade sobre aquilo que está em jogo. O discurso jornalístico, especialmente nas formas hegemônicas de circulação, organiza-se sob o efeito de transparência e linearidade, como se apresentasse os fatos de modo objetivo e direto. Essa organização do dizer apaga os processos históricos e os conflitos de sentido, construindo para o interlocutor uma única via de interpretação. O que está em questão, nesse funcionamento, não é apenas o que se diz, mas a forma como se diz.
Ao noticiar, o discurso jornalístico produz um efeito de saber, em que a linguagem funciona como mecanismo de controle e de estabilização dos sentidos. Ao mesmo tempo, inscreve-se como mediador autorizado, sustentando a ilusão de que o mundo está ali, dado, pronto para ser narrado. Essa posição, ao se apresentar como neutra, bloqueia a possibilidade de interpretações outras, pois instala um ponto de fechamento no processo de produção de sentido. No caso da Mídia Ninja, a tentativa de construir uma rede de comunicação que se afasta dessa lógica implica em criar fissuras nesse modelo discursivo. Ainda assim, o risco de ocupar um lugar que distribui sentidos com pretensão de clareza e evidência permanece, mesmo quando o enunciador se posiciona como militante. O que está em jogo, portanto, é a relação entre o lugar de onde se fala, os efeitos que se produzem sobre os interlocutores e o modo como a linguagem é mobilizada para organizar ou desorganizar o real.
O que o Mídia Ninja diz ao dizer sobre o mundo? Será que didatiza aquilo sobre o que fala? Como as notícias circulam em se tratando de funcionamento da língua? Que lugar esse meio de comunicação ocupa quando diz sobre seus referentes? São algumas questões postas e ainda não respondidas para pensar o funcionamento do discurso dessa rede de comunicação.
SD4. As grandes corporações de mídia vivem uma intensa crise. Esse momento pode ser entendido em dois aspectos principais: no âmbito econômico, de um modelo pautado pela venda de anúncios e a circulação física de publicações que não conseguem se adaptar aos novos tempos digitais, e de credibilidade, por anos e anos de omissão e manipulação de informações em prol do poder econômico e de grupos políticos de seu interesse.
A velha mídia está amarrada a uma linguagem e a um padrão de qualidade que são paradigmas do jornalismo comercial, com pouca abertura para experimentação e adaptação às novas formas de produção e interação com a informação permitidas pela explosão das redes sociais. (Mídia Ninja, A Mídia Ninja, Perguntas frequentes, em resposta à pergunta O que a Mídia Ninja pensa sobre a Mídia tradicional?, negritos meus).
Na SD4, a velha mídia é designada como um corpo em crise, afetado por transformações de ordem econômica e discursiva. Nesse funcionamento, observam-se deslocamentos na relação entre formas tradicionais de produção jornalística e novas condições de circulação do discurso mediado pelas redes digitais. O enunciador, aqui, se posiciona a partir de um lugar que se opõe ao jornalismo hegemônico, instaurando uma divisão que articula sentidos em torno da ideia de ruptura com um modelo que se apresenta como obsoleto, restritivo e comprometido com interesses que atravessam o poder econômico e político.
Ao afirmar que há uma crise de modelo econômico, o enunciado inscreve na linguagem uma leitura histórica do jornalismo comercial, caracterizado pela dependência da publicidade e da circulação física. Trata-se de um gesto que não apenas delimita um tempo de antes e de agora, mas também articula sentidos sobre a dificuldade de adaptação das grandes corporações midiáticas às transformações digitais. Essa designação constrói um efeito de deslocamento, apontando para a inadequação de um modo de funcionamento que não mais corresponde às formas atuais de produção, circulação e recepção da informação.
Ao lado do aspecto econômico, o enunciado introduz um segundo eixo: o da credibilidade. Nesse ponto, instaura-se uma memória discursiva que faz funcionar sentidos em torno da omissão e da manipulação, deslocando os efeitos de desconfiança para o plano da história e da repetição. A referência aos anos e anos marca o funcionamento de uma regularidade interpretativa em que os meios tradicionais de comunicação são inseridos em uma posição de sujeição a interesses externos, configurando-se como operadores de um dizer que silencia, escamoteia e administra o que pode circular como notícia. Esse funcionamento não é neutro: articula-se uma crítica que reinscreve os sentidos do jornalismo dominante como sustentado por práticas que se afastam da transparência que dizem buscar.
No segmento final da SD, o enunciador mobiliza a denominação velha mídia, retomando e intensificando a separação entre modelos. Ao designar essa mídia como amarrada a uma linguagem e a um padrão de qualidade, opera-se um deslocamento do que é tradicionalmente valorizado como técnica jornalística para uma posição de rigidez e conservadorismo. A designação coloca em funcionamento uma crítica à forma como a linguagem se estabiliza no discurso jornalístico hegemônico, sugerindo que os sentidos ali produzidos estão presos a parâmetros que não acompanham os movimentos de transformação das formas sociais de interação com a informação. A pouca abertura para a experimentação é tomada, aqui, como uma marca dessa limitação — uma espécie de incapacidade de lidar com os deslocamentos que a linguagem opera nas novas materialidades digitais.
Assim, o enunciado da SD4 constrói uma posição discursiva que se distancia da mídia tradicional, mas o faz a partir de um lugar que também está atravessado por determinações ideológicas e históricas. Ao criticar os vínculos da mídia hegemônica com o poder, ao denunciar suas práticas discursivas e ao nomeá-la como velha, não se coloca fora da ordem do discurso, mas se inscreve em uma formação em disputa. O dizer que se apresenta como resistência se estrutura por memórias, filiações e gestos interpretativos que não escapam da contradição: ao denunciar a linguagem da grande mídia como fechada, também institui, nos próprios termos dessa crítica, um modo de dizer marcado por efeitos de oposição e distinção.
Considerações finais
Esse trajeto interpretativo permite tensionar a ideia de que a análise do discurso dos enunciados postos em circulação pelo portal de notícias Mídia Ninja permite compreender como essa rede de comunicação se inscreve em uma formação discursiva que busca deslocar sentidos naturalizados pelo jornalismo hegemônico. Ao afirmar-se como livre, comprometida com causas sociais e ancorada em práticas colaborativas, essa rede se constitui discursivamente em oposição à mídia tradicional, instaurando para si um lugar de enunciação atravessado por outros modos de dizer, outras filiações, outras formas de organizar a linguagem e os sentidos.
No entanto, o funcionamento desse discurso não escapa às determinações ideológicas. Ao mesmo tempo em que se distancia dos paradigmas da grande imprensa, o Mídia Ninja reinscreve, ainda que de modo diferenciado, gestos de autoridade, regularidades discursivas e operações de estabilização de sentidos. Sua oposição à linguagem da neutralidade, sua crítica à noção de imparcialidade e seu posicionamento militante constituem um gesto político que não está fora da ordem do discurso, mas se inscreve nela como uma posição em disputa.
A análise das denominações livre, independente, multiplicidade de parcialidades, entre outras, indica que nomear é sempre se posicionar. Essas nomeações não operam no vazio; produzem efeitos de sentido ao delimitar quem pode dizer, o que pode ser dito e como os sujeitos se constituem no processo. O Mídia Ninja, ao dizer de si, mobiliza uma memória discursiva atravessada pelas lutas políticas, pelas demandas dos movimentos sociais e por formas de organização da linguagem que reivindicam a desconstrução de modelos centralizados de autoridade informacional. Ainda assim, esse dizer não se produz fora das tensões e contradições da linguagem: ele participa do mesmo jogo de forças que organiza os sentidos em circulação no espaço midiático.
Dessa forma, pensar o discurso do Mídia Ninja é pensar também os limites e as possibilidades da imprensa alternativa e digital enquanto espaço de resistência. Sua inscrição em uma rede de sentidos em disputa, sua tentativa de reposicionar o lugar da enunciação e seu engajamento com determinados valores sociais não anulam a complexidade do funcionamento discursivo, mas a intensificam. Não se trata, portanto, de afirmar a pureza de um lugar discursivo alternativo, mas de compreender que todo dizer é atravessado por filiações, tensões e efeitos de historicidade que o inscrevem em determinada formação.
A imprensa alternativa, assim como qualquer outro dispositivo discursivo, não se constitui em um fora do ideológico. Ela é espaço de deslocamentos e de contradições, de constituição de sujeitos e de disputas por sentidos. Falar de si é também instaurar um lugar a partir do qual o outro é dito. Por isso, compreender o funcionamento do discurso do Mídia Ninja implica reconhecer que o gesto de se dizer é sempre também um gesto de inscrição política, de confrontação e de produção de sentidos no interior de uma rede discursiva que não cessa de se movimentar.
Referências:
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SOARES, Alexandre S. Ferrari. Outros modos de dizer o presente: o discurso jornalístico alternativo digital e a disputa pelos sentidos da atualidade. Revista Gestadi, vol. 1, n. 4, 2025, http://dx.doi.org/10.5281/zenodo.15611182.
Data de Recebimento: 12/05/2025
Data de Aprovação: 21/07/2025
1 Pêcheux (1993, p. 75) nos diz que “um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas”, sendo estas definidas pelo autor como “as circunstâncias de um discurso”. Dentre as circunstâncias, Pêcheux (1993, p. 82) destaca as formações imaginárias: O que funciona nos processos discursivos é uma série de formulações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem do seu próprio lugar e do lugar do outro.
2 Para Mariani (1998, p. 53), a noção de sequência discursiva, definida por Courtine (1981:25) como ‘sequências orais ou escritas de dimensão superior à frase’, é fluida o suficiente para viabilizar a depreensão das formulações discursivas (fds), ou seja, de sequências linguísticas nucleares, cujas realizações representam, no fio do discurso (ou intradiscurso), o retorno da memória (a repetibilidade que sustenta o interdiscurso).
3 Na perspectiva da Análise do Discurso materialista, os sítios de significância são marcados por relações de força, por filiações ideológicas e pela memória discursiva. Assim, eles são lugares onde certos sentidos se estabilizam provisoriamente, constituindo zonas onde o dizer se repete, naturaliza posições de sujeito e silencia outras possibilidades de sentido. Os sítios de significâncias são fundamentais para compreendermos como certos discursos insistem socialmente, como determinadas formulações retornam, mesmo em contextos diversos, sustentando uma forma de ver e dizer o mundo que se apresenta como legítima.
4 Professor na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras - Linguagem e Sociedade. E-mail: asferraris1901@gmail.com.