O que as praças comunicam? Estudo do conflito entre comunidade e gestão pública no espaço citadino


resumo resumo

Rodrigo Carlos Bezerra Lopes
Paula Apolinário Zagui



Introdução

A Praça Antônio da Graça Machado está localizada na cidade de Mossoró, Rio Grande do Norte, a cerca de 6km do centro do município, e faz parte do cotidiano dos moradores do Abolição IV, bairro na qual está inserida. Em sua redondeza, existe comércio, igreja, bar, lanchonetes e academia, além das residências. Uma localização almejada, tendo em vista o posicionamento na principal avenida do bairro.

 

Figura 1 - Praça Antônio da Graça Machado

Fonte: Registro fotográfico do autor.

 

              Entre abril de 2021 e junho de 2022, o espaço passou por uma reforma que contemplava a troca do piso, renovação de estrutura e inserção de novos equipamentos. Essa restauração não foi realizada no tempo previsto, o que gerou críticas relacionadas à demora por parte dos residentes. Em um portal de notícias, foi entrevistado um morador que explicitou o descontentamento com relação ao atraso, destacando os poucos trabalhadores no local e a lentidão do desenvolvimento da obra. “Agora que eles arrancaram o piso da praça” denuncia o entrevistado (Barreto, 2021).

 

Figura 2 - Placa

Fonte: Registro fotográfico do autor

 

Figura 3 – Placa

Fonte: Registro fotográfico do autor

 

              Uma placa referente à reforma divulga um prazo de 10 meses para o seu encerramento. O espaço só foi entregue em junho do ano seguinte, em uma inauguração que contava com a presença dos tratores e dos trabalhadores da obra finalizando o serviço.

              Entender os anseios da população com relação à Praça do Abolição IV é compreender o espaço a partir de sua relação com a comunidade. Por isso, é a partir dessa concepção que diferenciamos espaço de paisagem, pois essa é caracterizada como aquilo que é percebido em um instante fixo, não apenas através da visão, como também dos outros sentidos. O espaço é a paisagem que passou por uma construção social, seja a partir do trabalho ou do lazer; a relação da sociedade com essa materialidade fixa constrói um novo significado, concedendo-lhe características culturais próprias (Santos, 1988).

              Portanto, investigar o meio urbano é uma forma de compreender a comunidade que nele vive, assim como a maneira de entender suas vivências, direcionando novos olhares para a pesquisa e criando diferentes dinâmicas para o espaço. A partir desse entendimento, desenvolvemos um estudo de caso da Praça Antônio da Graça Machado, analisando suas possibilidades comunicativas e a relação estabelecida entre comunidade e gestão. Isso permite identificar possíveis conflitos, considerando a divergência de sentidos que o espaço assume, tornando-se simultaneamente um meio de vivência e autopromoção.

O estudo de caso foi escolhido como método de pesquisa por se configurar como uma investigação aprofundada de poucos objetos, o que permitiu a realização de reflexões, análises e problematizações detalhadas da praça como objeto empírico da pesquisa (Yin, 2001). Defendida por Gil (2008), a observação participante conferiu completude ao estudo por possibilitar a presença do pesquisador no campo por meio da observação e vivência das dinâmicas urbanas, explorando diretamente a praça a partir de sua instância agregadora de diversas interações sociais e intermediadora do primeiro contato entre pesquisador, objeto e comunidade.

              As bases bibliográficas deste trabalho seguem estudos relacionados ao urbano, apoiando-se em reflexões feitas por Lucrécia Ferrara (1990, 2015), Jane Jacobs (2011), Jan Ghel (2013) e Lipovetsky e Serroy (2015), atravessando, também, considerações conceituais defendidas por Milton Santos (1988). No campo da semiótica, Jean-Marie Floch (2001, 2014) orientou o estudo do símbolo da rosa presente no antigo piso da praça e os processos de significação que decorrem dele. Duarte (2005), Gil (2008) e Yin (2001) auxiliaram no desenvolvimento da estratégia metodológica.

            Este artigo busca auxiliar na compreensão das possibilidades comunicativas do urbano e na forma como as intervenções no espaço construído o midiatizam. O recorte realizado na Praça Antônio da Graça Machado favoreceu a praticidade da investigação e se constituiu como um recorte empírico da pesquisa, mas suas reflexões e problematizações podem estimular o debate sobre as mais diversas áreas públicas brasileiras. A relevância nacional deste estudo se dá por sua capacidade de gerar questionamentos sobre mediações e interações em diferentes contextos urbanos, tanto na cidade de Mossoró quanto em outras regiões do Brasil.

 

Entre mediações e interação, uma denúncia silenciosa

As conveniências de elementos considerados fundamentais para a vida moderna nas cidades, como o deslocamento, a habitação, o trabalho, são formadas a partir de elementos que complementam a paisagem das cidades e organizam a dinâmica social delas. As vias de deslocamento, as habitações e os gigantescos edifícios públicos cumprem suas funções de organizar, instrumentalizar, dividir e hierarquizar o urbano baseado em suas funcionalidades e quem será atendido por elas, podendo gerar desigualdades como a existência de áreas distintas para ricos e para pobres (Ferrara, 2015).

Ao ver as praças como um dos elementos que compõem a configuração do urbano, as reflexões comunicacionais acerca da Praça Antônio da Graça Machado se encontram com o que já foi proposto anteriormente, em termos de conceitos, visões e estudos que enxergam as cidades como potências comunicativas. 

Figura 4 - Praça da Abolição IV antes e depois da reforma

Fonte: Registro fotográfico do autor

 

             Se considerarmos que as áreas urbanas são definidas por suas funções, as cidades, por sua definição, estão intrinsecamente ligadas à relação das pessoas a esses ambientes e sua materialidade (Ferrara, 2015). O pertencimento da comunidade nesses locais atribui um novo significado ao espaço e transmite mensagens inéditas a partir dessas novas funcionalidades e interações.

Para ilustrar esse conceito, é válido revisitar a ideia de paisagem proposta por Milton Santos (1988) como uma observação estática de um determinado ambiente em um instante específico. Se uma pessoa passasse de carro ao lado da praça pela Avenida Presidente Costa e Silva exatamente quando a fotografia da esquerda da Figura 4 foi tirada, a percepção desse indivíduo sobre o lugar estaria centrada na sua reconstrução e nas possibilidades futuras, porém incertas, que ela poderia oferecer. Contudo, dificilmente a Praça do Abolição IV seria vista, naquele exato momento, como uma área acolhedora, não apenas devido à incompletude de sua estrutura, mas também devido à escassa presença da população ali. Isso ressalta a perspectiva do autor sobre como os espaços são definidos não somente pela sua constituição física, mas também pela maneira como a população interage com eles, permitindo múltiplas interpretações e novas formas de interação.

Agora, se a mesma pessoa voltasse a passar pela praça no momento em que a fotografia da direita da Figura 4 foi capturada, a área assumiria conotações distintas, tanto pelas já mencionadas novas cores quanto pela atividade da sociedade naquele local. Essa atividade varia desde a utilização do lugar para atividades esportivas e de lazer até a adoção de novas maneiras de vivenciar o ambiente, como, por exemplo, convertê-lo em um local de trabalho, dado o uso de pontos específicos da praça pela comunidade para fins comerciais. Belmino, Marra e Paiva Filho (2025) auxiliam na compreensão da praça como um espaço que pode ser ressignificado pelas intervenções que a comunidade promove nela, transformando-a em um palco de atividades culturais, religiosas e profissionais. Portanto, um ambiente multifacetado e multifuncional que se desenvolve a partir das suas dinâmicas de resistência em um contexto urbano mais periférico.

Apresento um relato pessoal como exemplo da situação: Por morar próximo ao objeto de estudo, meu pai e eu costumávamos passar de carro frequentemente em frente à praça. No entanto, após a conclusão da reforma, sempre que passamos por lá, ele faz comentários positivos sobre o espaço, o que contrasta com o seu silêncio quando passávamos por ali anteriormente à reforma. Esses comentários estão diretamente ligados ao fator de novidade que a restauração trouxe, bem como à presença ativa da comunidade no local, seja em atividades de lazer ou profissionais.

Jan Ghel (2013) amplia essa perspectiva, argumentando que a presença das pessoas intensifica a sensação de acolhimento, conferindo maior vida às cidades por meio de atividades como caminhar, pedalar ou simplesmente permanecer nesses espaços. A autora também defende que a restauração de certas áreas pode estabelecer novas relações com a comunidade, permitindo um uso mais diversificado delas, de acordo com as suas funções e normas, bem como novas formas de interação.

Para Lucrécia Ferrara (1990), a multidão é uma forma de complementar a imagem da cidade, ao mesmo tempo que a mesma parece esvaziada quando não existe uma grande quantidade de pessoas, ao tornar ela um elemento transformador para o significado dos espaços urbanos. Logo, a vivência da comunidade na praça constrói novos significados e diferentes imagens.

Porém, a comunidade não retornou às suas atividades na praça somente após a reforma. Depois de meses de pouco desenvolvimento da obra, a população retornou ao local para realização de atividades de lazer, como a prática da caminhada. Essa dinâmica de utilização da área antes mesmo de ser entregue nos leva a reflexões sobre mediações e interações nas cidades.

              Ferrara (2015) compreende as mediações como uma forma de comunicação simbolizada por ser uma via de mão única, mais preocupada em estabelecer normas e regras, aderindo funções ao uso dos espaços e das ferramentas. A própria praça pode ser enxergada como um fenômeno mediador, já que ela existe com o estabelecimento prévio das formas como os moradores podem utilizá-la, dispondo de equipamentos para exercício físico, quadra de esporte e brinquedos para as crianças. Cada trecho da estrutura possui um público majoritário distinto, representando um contexto segmentado e direcionado. Pessoas mais velhas são as que mais utilizam os equipamentos de exercício, enquanto jovens garotos estão mais presentes na quadra de esporte.

              Se as mediações representam o estabelecimento de normas e funções nos espaços, as interações simbolizam essa ruptura, geralmente manifestada como uma denúncia por parte da comunidade às tentativas de mediação e normatização. São as pessoas que fazem as interações, por decidirem que caminho seguir e de que forma interpretar e utilizar o espaço, quebrando as regras escritas e simbolizadas no lugar. É uma lembrança do pertencimento das pessoas nos espaços (Ferrara, 2015).

O aproveitamento do espaço durante sua reconstrução pode ser visto, por um lado, como uma denúncia silenciosa da população do bairro, que, diante do atraso da obra, não esperou sua conclusão para retomar as atividades de lazer. No entanto, mais do que um gesto de contestação, esse uso antecipado da praça também pode refletir a valorização cultural do espaço pela comunidade, que reconhece o local como um ponto essencial de convivência e bem-estar, independentemente das condições estruturais.

Em minhas visitas semanais à praça, foi possível perceber as poucas mudanças estruturais realizadas no período de tempo de sete dias, geralmente representadas pelo aperfeiçoamento de trechos específicos do calçamento. A lentidão também foi sentida pelos moradores que perderam as sociabilidades que a praça gerava, então, antes mesmo da entrega oficial, pessoas caminhavam diariamente sobre a estrutura incompleta do lugar, aproveitando os espaços que estavam mais adiantados e evitando os pontos pouco desenvolvidos, uma resposta ao não cumprimento do prazo que estava exposto em um outdoor na grama da praça.

Foi perceptível que as obras se intensificaram na reta final da restauração, o que pode ter sido uma resposta ao uso diário do espaço incompleto pela comunidade, ou até mesmo uma formalidade midiática, já que a inauguração ocorreu próximo ao período de entrega de outros espaços reformados da cidade. O próprio outdoor destaca que aquela praça é uma dentre outras que estão sendo restruturadas, configurando a construção e reforma de diversos espaços, não apenas daquele.

A intenção da fotografia abaixo foi registrar o andamento da reforma, mas, não intencionalmente, algumas pessoas da comunidade que caminhavam na praça passaram em frente à câmera no momento do clique, exemplificando o fenômeno destacado acima.

 

Figura 5 – Pessoas caminham na praça durante reforma

Fonte: Registro fotográfico do autor.

 

O pertencimento da comunidade em um momento de estrutura incompleta é uma crítica que expõe uma relação conflituosa entre população e gestão com relação ao espaço.

 

A praça como vitrine e vivência

Mais do que um espaço de lazer, utilizado diariamente pela comunidade que vive nas redondezas, a praça é também a vitrine pública de uma gestão. A reforma, a reconstrução e o trabalho que ali foi feito alavancam um nome e constrói uma figura pública que é beneficiada por isso. As reflexões de Floch (2001, 2014) e os exemplos que serão apresentados neste texto conduzem essa perspectiva de compreender a praça como um fenômeno discursivo.

Essa configuração de troca evidencia a presença do discurso político na praça, reforçada por um cartaz feito por representantes da comunidade em agradecimento à reforma, parabenizando o atual prefeito pela conquista. A permanência da mensagem na praça após a inauguração reforça seu caráter simbólico, funcionando como um enunciado que legitima a ação da gestão municipal e insere a praça no jogo discursivo da política local. Mesmo após ser realocada para o muro de uma casa ao lado, a mensagem continua a operar como uma marca dessa relação entre urbano, reconhecimento público e estratégias de visibilidade política.

Figura 6: Cartaz na praça

Fonte: Registro fotográfico do autor.

 Lipovestky e Serroy (2015) debatem sobre o caráter comercial de determinados espaços públicos, o que os transforma em vitrines de propaganda política. No contexto da praça, essa característica publicitária cria um ambiente de fusão entre vivência e vitrine, demonstrada no dia da reinauguração da Praça Antônio da Graça Machado, visto que, enquanto tratores se dispersavam do local e a estrutura era montada para a realização do evento, crianças brincavam no parque e fortaleciam as possibilidades de vivência e lazer.

Figura 7 – Crianças brincando na praça no dia da inauguração

Fonte: Registro fotográfico do autor.

Esse foi também o dia em que a praça mais contou com a presença de pessoas. A comunidade e representantes da Prefeitura foram prestigiar o evento há muito tempo esperado pela população. Os moradores agiam como se aquilo fosse mais uma tarde comum, brincando, se exercitando ou apenas aproveitando o espaço, exemplificando uma transformação urbana, citada por Lipovetsky e Serroy (2015), que prioriza o uso da cidade para a realização de atividades mais lúdicas voltadas para os prazeres momentâneos, ao caracterizar o entretenimento como o núcleo da usabilidade dos espaços urbanos, o que direcionará um pensamento de reestruturação que cumpra esse objetivo. Já os membros da gestão se organizavam em círculos e pouco interagiam com os equipamentos.

Figura 8 –Inauguração da praça

Fonte: Registro fotográfico do autor.

Mesmo com a participação de pessoas externas e a transformação do espaço em um evento com a presença de banda, carro de som e discursos calorosos sob o microfone, parte da população não se importou com o fato do ambiente ainda não ter sido oficialmente entregue. Crianças, por exemplo, brincavam na quadra, enquanto os outros discursavam. A reforma, como conquista da gestão, foi um dos destaques dos discursos. 

Figura 9 - Crianças brincando na quadra

Fonte: Registro fotográfico do autor.

O evento de entrega potencializou as configurações comunicativas da praça. Houve espaço para falas da comunidade, mas, a maioria dos discursos vieram das pessoas ligadas à gestão. Ferrara (2015, p. 123) problematiza essa questão dos interesses da gestão referentes às mediações em espaços públicos: 

 

Indo diretamente às constatações concretas, observa-se que as mediações surgem como consequência da inserção da gestão pública que transforma a cidade em roteiro de experimentações técnicas ou manifestações de poder frequentemente individual e político, mas sempre aprisionando-a na dicotomia forma-função (Ferrara, 2015, p. 123).

               

A faixa e a presença dos representantes da gestão se opõem à problemática do atraso da obra, denunciado pela comunidade, e reforçam o apontamento da autora sobre hierarquia, tendo em vista que a desigualdade entre os interesses relacionados ao espaço a partir da fusão entre vitrine propagandística da prefeitura e vivência humana dos moradores cria diálogos desiguais.

 

Entre Rosas e Concreto

            No início deste artigo, apresentamos a crítica de um morador ao andamento da reforma da praça, denunciando que, após considerável tempo de obra, só os pisos foram retirados. A troca do piso é um dos destaques dos discursos no evento de reinauguração do espaço.

Mais do que uma materialidade vazia, os blocos que formavam o pavimento da Praça Antônio da Graça Machado são carregados de valores simbólicos e sua retirada representa uma reformulação física e emblemática das intervenções da gestão no espaço urbano, tal como o apagamento de uma gestão passada. Atualmente, o quarteirão possui um piso completamente novo em formato e estética. É através desse novo piso que apresentamos um olhar mais específico voltado para os métodos que a gestão usa para transformar os locais em um reflexo de sua imagem.

Figura 10 – Antigo piso da praça

Fonte: Registro fotográfico do autor

Era sob esse pavimento acima que os moradores exerciam suas atividades na Praça do Abolição IV antes da reforma. Essa imagem foi retirada da internet, pois, como mencionado, os blocos com desenho de rosa foram rapidamente retirados na restauração, antes mesmo da pesquisa começar a ser colocada em prática; essa é a única fotografia da praça apresentada nesta pesquisa que não foi registrada pelo pesquisador.             

Um olhar descontextualizado pode gerar múltiplos significados para esse símbolo de rosa estampado no pavimento. Porém, para quem mora na cidade, esse ícone é diretamente atrelado à figura da antiga prefeita do município, uma vez que, ele foi utilizado em peças publicitárias de campanhas políticas, construindo uma associação entre pessoa e imagem. O formato do desenho, os traços e os detalhes são os mesmos e carregam uma imagética representativa da gestora, que também é conhecida como “A Rosa”.

 Figura 11 – Santinhos eleitorais da ex-prefeita


Fonte: Publicação da página @alguemmossoro

 

Durante minhas visitas à praça, dialoguei com moradores e comerciantes locais e questionei se alguém sabia quem havia construído aquele espaço. Ninguém tinha certeza, mas associaram o símbolo do antigo piso à ex-prefeita.

Nessa perspectiva, a análise compreende a interação entre dois eixos principais: o plano da expressão, relacionado aos aspectos materiais e sensíveis da linguagem; e o plano simbólico, referente ao processo de construção de significado por meio desses elementos visuais (Floch, 2001).

Esta análise compreende a expressão como o formato do símbolo aplicado nos pisos da praça. Através de uma estratégia propagandista de aplicação do ícone da rosa em santinhos, panfletos e peças publicitárias no geral em período de campanha eleitoral (Figura 11), a imagem política da ex-prefeita e os conceitos e significados que ela assume para os receptores, foi materializada em uma forma que, ao ser vista, estabelece conexão direta à gestora. Sua aplicação no piso da Praça da Principal comunica aos que por ali passam que foi “A Rosa” que construiu aquele espaço.

Ao entender os significados para a comunidade, o que se tenta mostrar é que “A Rosa” ofereceu segurança, lazer, esporte e todos os significados que a praça assume no imaginário dos moradores, transformando a área em uma vitrine propagandística de forma mais presente, subconsciente e intrínseca à própria estrutura, tendo em vista que é mais fácil a retirada de uma lona, de outdoor ou um cartaz dali do que diversos blocos que, juntos, integram o piso do local. Mais do que um elemento decorativo, a rosa evoca valores relacionados à memória política.

Portanto, o plano expressivo, caracterizado pela forma da rosa, articula-se com o simbólico a partir dos significados que surgem com a associação entre o símbolo e os elementos que interagem com eles, sejam os mesmos subjetivos, como a figura da antiga gestora, ou material, como a praça. Essa configuração é desenvolvida a partir de elementos da comunicação que fortalecem a associação entre o objeto e a pessoa e transforma a praça em um experimento urbano publicitário.

Essa articulação reforça a ideia de que os elementos dos planos não são independentes, mas sim interdependentes, pois os sentidos produzidos são fortalecidos pela materialidade da forma exposta, criando uma relação em que o formato e o significado se desenvolvem a partir dessa interação, composta também por elementos culturais (Floch, 2001).

Por exemplo, um turista que visita Mossoró, mas não conhece a história política da cidade, dificilmente relacionaria o símbolo da rosa a alguma figura local. A vivência dos moradores e a bagagem cultural construída pela observação e vivência dessa conjuntura municipal favorecem a associação entre o objeto e os sentidos relacionados a ele.

Ao estabelecer o símbolo como uma referência direta à antiga prefeita, é possível refletir sobre o interesse da atual gestão, oposição ao grupo dela, em apagá-lo como forma de minimizar a presença representativa da figura pública da 'Rosa'. Isso caracteriza o uso da praça como vitrine propagandística e disputa política.

Essa facilidade de associação como consequência da mediação da prefeitura no município também tem seus aspectos negativos para os representantes, pois, se o espaço não agrada à comunidade, as críticas se tornam mais direcionadas à figura pública associada a ele. A nova Praça Antônio da Graça Machado, apesar das contradições, contrasta com a realidade do espaço antes da restauração, que estava dominado pelo mato, mal iluminado, pouco cuidado e, como consequência, com baixa presença de pessoas.

As rosas, nesse sentido, serviram não apenas para relembrar quem construiu, mas também quem abandonou. A ex-prefeita estava em sua sexta gestão não consecutiva quando foi derrotada nas urnas pelo atual gestor do município. A solicitação da reforma não havia sido atendida por ela e as rosas diariamente relembravam essa negação. O novo modelo do piso da praça (Figura 12) adota um tom mais neutro ao não remeter a nenhuma gestão em específico, mas a própria substituição da rosa pode ser vista como uma forma de apagamento, transformando a praça não só em um espaço de lazer, mas também de disputa de narrativas políticas.

Figura 12 – Novo piso

Fonte: Registro fotográfico do autor.

 

Esse cenário permite entender a praça por meio de uma configuração discursiva. Quem fala através dela? O que é interpretado? A semiótica discursiva apresenta o conceito do enunciador, que cria significações a partir de suas intervenções textuais (Fiorin, 2004). Logo, a praça não é neutra, pois está suscetível ao discurso político que nela pode ser exposto pela linguagem publicitária. Sua reforma também representa esse local de disputa, em que o apagamento de símbolos é uma forma de imposição e promoção de uma nova gestão, e o espaço, ao ser transformado em um instrumento de comunicação, pode possuir mais de um enunciador, demarcado pelo contexto político do período.

Retorna-se, a todo momento, às reflexões do início deste artigo, em que entendemos que a relação das pessoas com os espaços constrói símbolos e significados a partir da experiência, que também são transmitidos pelas rosas no chão. Se ela significou, por muito tempo, abandono, a reforma remodelou o seu significado ao estabelecer limites na conexão entre comunidade, praça e símbolo, pois, ao iniciar a restauração que retirou todos os blocos com rosa do piso, alguns moradores levaram para casa uma pedra com a rosa desenhada, como uma forma de manter as lembranças e vivências que ali se acumularam dentro de um símbolo.

 

Praça de condomínio fechado

  Durante a entrega da Praça Antônio da Graça Machado, um vereador da cidade disse: “Uma praça bonita como essa só tem em condomínio fechado”. As cidades são entendidas, também, por sua forma de hierarquizar, dividir os lugares baseados nas questões socioeconômicas e delimitar quem pode e quem não pode estar em determinado local (Ferrara, 2015). A Praça da Abolição IV está presente em uma região periférica da cidade de Mossoró e, ao ser reformada, adotou um novo disfarce, máscara essa que difere da realidade do local ao assumir uma representação de “Praça de Rico”.

A nova estrutura, os equipamentos modernos e a comparação com um condomínio fechado constroem um discurso que vai além da funcionalidade da praça. Ele propõe uma reconfiguração do imaginário urbano, sugerindo que a periferia pode ter acesso a um padrão de lazer mais elitizado. Esse discurso se mostra presente nas rampas de acesso, na academia ao ar livre, na nova quadra. O espaço se torna um texto enunciado que se comunica por símbolos e por sua organização, já que, de acordo com Floch (2014), projetos arquitetônicos também comunicam sentido e estabelecem relações com grupos que neles interagem.

Então, o novo piso, os novos equipamentos e a nova estrutura estão ali para quebrar esse paradigma hierarquizado na mente da comunidade e mostrar que a partir daquele espaço a comunidade também é valorizada. A praça comunica um privilégio para os moradores do Abolição IV, privilégio esse que está presente na própria existência dela dentro de suas estruturas.

              É nesse aspecto que o principal benefício de se relacionar à praça, na perspectiva da gestão, é evidenciado, pois, ela não é só um quarteirão e tal como não é só um conjunto de bancos, brinquedos e equipamentos sob um novo piso, pois ela assume um significado de ruptura hierárquica, ao se assumir como um espaço “de rico” em uma região mais periférica, como se a população pudesse vivenciar um contexto de minimização das desigualdades depois da reforma. O objeto que a praça representa é um símbolo de riqueza. O lazer, o esporte e o bem-estar são uma porta de entrada prática para o valor figurativo que está sendo promovido.

Porém, as interações da comunidade mostram que só o conceito não basta. O significado de riqueza simbólica promovido pela praça não é completamente efetivo se não houver uma transformação financeira para as pessoas que ali vivem. Por isso, a comunidade a transformou em mais do que um espaço de esporte e lazer, mas também em um ambiente profissional. No dia da inauguração, inúmeros comerciantes aproveitaram a movimentação para vender seus produtos. Essa configuração permaneceu após a inauguração pois, diariamente, alguns empreendedores montam suas estruturas improvisadas para utilizar trechos da praça como local de trabalho.

O trabalho realizado pela comunidade ali não é uma novidade da restauração, pois já existiam bancas de salgados e espetinho antes mesmo do início da reestruturação, mas que foram fortalecidas a partir dela, pois é notável a maior presença de possíveis clientes, tal como uma diversidade maior nas ofertas comerciais. Um dos novos pontos comerciais que não existiam ali antes é a venda de plantas (Figura 13). Podemos pensar que a existência desse comércio na praça gera maior número de pessoas circulando e uma sensação de segurança pelo frequente uso das calçadas por este comércio. Como aponta Jane Jacobs (2011) em reflexão sobre a importância da existência dos olhares na rua:

 

[...] a calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente, tanto para aumentar na rua o número de olhos atentos quanto para induzir um número suficiente de pessoas de dentro dos edifícios da rua a observar as calçadas. Ninguém gosta de ficar na soleira de uma casa ou na janela olhando uma rua vazia. Quase ninguém faz isso. Há muita gente que gosta de entreter-se, de quando em quando, olhando o movimento da rua (Jacobs, 2011, p. 36).

               

Figura 13 – Venda de plantas na praça


Fonte: Registro fotográfico do autor


A autora (2011, p. 35) também defende que esse olhar deve vir dos “proprietários naturais da rua”, ou seja, as pessoas que convivem ali, diferente do fenômeno do policiamento, por exemplo, como se os espaços urbanos também servissem para elas como uma forma de distração através apenas do olhar, e a transformação da praça ampliou esse contexto ao se tornar um lugar de maior pertencimento. Logo, mais olhares sob a praça de dentro e de fora dela. De fato, existem mais pessoas nas calçadas da redondeza dedicando parte de seu tempo à observação da novidade, o que torna o objeto uma espécie de passatempo, forma de entretenimento ou até distração. Mas, distração do quê?

O convite para os olhares para a praça se coloca como um elemento de distração da realidade da comunidade. Retornando ao conceito de paisagem, quem passa por ali pode enxergar o mesmo que a comunidade e a gestão enxergaram, um ambiente de riqueza que mais parece feito para um condomínio fechado do que para uma periferia. Será que essa interpretação imediata também não possibilita uma forma de mascarar a desigualdade real daquele bairro?

              Essa reflexão parte da crença de que a praça é transformada em um símbolo daquela região e daquela comunidade, como se aquele quarteirão fosse um resumo da vivência diária daquele lugar. Logo, se aquele quarteirão passa uma imagem de riqueza, aquele povo, aquela comunidade e aquele bairro corresponderiam a essa imagética. Bovo, Hahn e Ré (2016) colocam as praças como uma representação da própria cidade e também da realidade da vida cotidiana da população.

Nesse caminho, a Praça do Abolição IV é posicionada como a vitrine de uma falsa realidade, de uma suposta superação das desigualdades e ruptura das hierarquias. Uma distração urbana para contemplação da comunidade de uma paisagem simbólica que não se estende para sua verdade, pois, em sua completude, o espaço não revela o atraso das obras e a falta que o mesmo fez para a comunidade. Tal como não indica as críticas dos moradores da região à realidade do bairro para além da praça. Denúncias da situação das ruas e calçamentos de outros pontos do bairro foram constantes durante a observação participante e expõem um olhar exclusivo da praça, enquanto ambientes da redondeza ainda sofrem com o descaso.

Floch (2014) destaca a relação entre o enunciador, representado pela gestão, e o enunciatário, a comunidade, como uma espécie de contrato. No entanto, ele compreende a interpretação como um processo dinâmico de significação, no qual a comunidade não apenas recebe o discurso imposto, mas também se torna produtora de seu próprio sentido, o que pode levar à negação do enunciador. Esse discurso se materializa nas atividades e nas formas de interação dos moradores. Assim, os habitantes da região desempenham um papel ativo na construção do discurso urbano, que pode ressignificar a praça idealizada de acordo com suas próprias necessidades.

Ao mesmo tempo que é positivo possuir um espaço planejado em regiões periféricas, é necessário que essa organização não seja exclusiva de um quarteirão. Uma praça estetizada que oferece lazer, esporte e distração também pode comunicar uma tentativa de apagamento da realidade de um bairro, possibilitando assumir significações distintas a partir da vivência da comunidade em seu espaço e em áreas para além dele. Nessa perspectiva, uma praça que promove um estilo de vida “de rico” tem seu sentido contrariado pela realidade na qual está inserida.

Afinal, se as praças são feitas para oferecer uma melhor qualidade de vida, por que isso não se estende para além delas? Por que trechos tão próximos da praça estetizada não possuem o mesmo tratamento que aquele localizado na principal avenida do bairro?

As possibilidades comunicativas de espaços públicos não estão apenas em cartazes ou símbolos dispostos nele, mas estão em si próprios, apresentando significados e conceitos para a comunidade e para quem passa pelas proximidades. Nesse sentido, a própria praça é configurada em um formato midiatizado, que pode se transformar em uma espécie de propaganda da gestão pública.

 

Considerações finais

            A compreensão do urbano não existe somente a partir do que é tangível, já que novos significados e diferentes dinâmicas são constituídas a partir da presença humana, representada pelas aspirações da gestão política de uma cidade e pelas intervenções sociais desenvolvidas pela população como forma de apropriação. Ambas as dinâmicas são construídas com finalidades diferentes que geram diálogos desiguais. Se a gestão enxerga a praça como uma vitrine, constituindo a midiatização de um espaço, a comunidade a compreende como objeto de vivência.

              A desigualdade persiste quando o olhar sai da praça restaurada e visualiza a falta de cuidado em ambientes urbanos das redondezas, principalmente ruas e calçadas com estrutura incompleta. Nesse caso, a praça reformada se torna uma máscara comunicativa que promove uma organização que não se faz presente para além de si, o que causa um contraste perceptível entre o quarteirão reestruturado e os espaços urbanos da redondeza.

              Transformar a materialidade física em uma vitrine convém o aproveitamento da tangibilidade espacial para a impressão de símbolos representativos que se relacionam a uma gestão ou uma figura pública. No contexto de oposição, a concretude da autopromoção constrói uma conjuntura de disputa política no urbano, o que possibilita um novo olhar para os fenômenos de reformas públicas como tentativas de apagamento de uma imagética ligada a opositores.

Essa facilitação do diálogo entre publicidade e ambientes físicos também pode prejudicar os próprios representantes promovidos, visto que as péssimas condições de uma estrutura urbana associada simbolicamente a uma determinada gestão é capaz de evidenciar um certo abandono sentido pela população, prejudicando, assim, a percepção pública de figuras políticas.

Apesar das constantes intervenções, a população interage com as praças e desenvolve novos sentidos para elas, aproveitam até sua incompletude estrutural e podem produzir sociabilidades por meio da vivência, convivência e trocas comerciais.

A reforma urbana deve ser instaurada em uma perspectiva que promova bem-estar não só em um quarteirão, mas também em toda a cidade. Assim, o sentido simbólico que a praça assume pode ser percebido em uma extensão que rompe com sua própria limitação geográfica. Quando a significação do espaço é limitante, o contraste que há em volta é uma minimização do seu próprio sentido. Logo, o desenvolvimento dessa restauração deve alcançar a área por completo, seja ela um bairro ou uma cidade, e articular com os movimentos que a comunidade promove.

 

Referências:

BARRETO, Bruno. Lentidão e desorganização em reforma da Praça do Abolição IV incomodam moradores do bairro. Blog do barreto, Mossoró, 1 jun. 2021. Disponível em: https://blogdobarreto.com.br/lentidao-e-desorganizacao-em-reforma-da-praca-do-abolicao-iv-incomodam-moradores-do-bairro/. Acesso em: 8 ago. 2023.

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Data de Recebimento: 07/06/2024
Data de Aprovação: 14/02/2025






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