Pixação e o circuito artístico brasileiro: ambiguidades e convergências


resumo resumo

Priscila Mocelin Lara
Patricia Camera Varella



Introdução

Para ampliar as reflexões sobre os espaços expositivos e a interação da pixação com o circuito artístico, mercado de arte e instituições artísticas no Brasil, esse texto propõe trazer um apanhado histórico, resumido, da constituição desse campo no país a partir de eventos ocorridos em 2008. Para tanto, a análise desse panorama passa por aspectos relativos ao campo da história da arte e do uso de imagens, tendo como base as reflexões teóricas apresentadas por Maria Lúcia Bastos Kern (2019). A partir desse resgate histórico, será possível compreender parte das motivações do grupo de pixadores e das instituições que marcam o cenário artístico brasileiro. Além disso, esses conceitos nos ajudarão a problematizar a relação da pixação com os espaços artísticos, trazendo à tona questionamentos relativos à sua complexidade.

Em suma, Kern (2019) descreve no artigo “Cultura visual, história da arte e paradigmas do conhecimento”, que a história cultural (a partir de 1990) estuda os monumentos públicos, o design, a fotografia e as imagens da cultura de massa que, até pouco tempo, não eram focalizados pelo historiador da arte. Ela, também, parte do pressuposto de que a imagem se constitui como cultura visual e se interessa por seus usos e funções sociais no passado. (p. 81)

Kern (2019, p. 78) nos apresenta a concepção de Whillian Thomas Mitchell, que escreve o visual no processo com o espaço de interação social, de definição de subjetividades, abarcando amplo espectro de experiências visuais em um cotidiano de tempos compósitos. O autor defende a necessidade de se problematizar, teorizar, criticar e revisar a história do processo visual em si, bem como estudar a cultura visual como um ramo dos estudos visuais.

Mitchell (apud KERN, 2019, p.80) afirma que os estudos das imagens, fundamentados pelo descobrimento pós-linguístico delas, se constitui num complexo jogo entre a visualidade, os aparatos, as instituições e os discursos.

 

A pluralidade de práticas artísticas na atualidade, o abandono dos suportes tradicionais e a integração com outras atividades cotidianas conduzem a uma série de questões, com as quais a História da Arte (HA) não tinha sido ainda desafiada. Novas interrogações aparecem quando as antigas certezas se desagregam. A complexidade da arte contemporânea amplia-se à medida que o historiador observa a pluralidade, a fragmentação e a função assumida pelos artistas de reinterpretar o passado, sem praticar discursos e gestos de ruptura. (KERN, 2019, p.82)

 

Essa complexidade da arte contemporânea é vista quando observamos o acontecimento de absorção da pixação pelas instituições e como o campo, após ser tensionado e desafiado, tem dificuldade de abarcar e de compreender essas novas linguagens, feitas por sujeitos que se mostram externos ao campo formal do universo artístico. Essas rupturas observadas com a pixação e com outras formas de arte popular desafiam os pesquisadores da história da arte e da cultura à revisar as “certezas” perante ao que ainda é considerado belo e correto no que tange as exposições e obras de arte.

Outra pesquisadora que dá subsídios para avançar no assunto é Anne Cauquelin (2005). No livro Arte Contemporânea, a autora divide a arte contemporânea em dois esquemas. Primeiro, como uma cadeia de consumo linear que seria ainda resquício da arte moderna. Já o segundo, um esquema circular de comunicação, relacionado à arte contemporânea, que se desenvolveu a partir do surgimento do pensamento e da produção de dois artistas: Marcel Duchamp e Andy Warhol.

A partir desses dois esquemas encontram-se diversos agentes que atuam de forma geral nas categorias de produtor, mediador e consumidor. Segundo Cauquelin (2005), retomando os preceitos marxistas, divididos em um sistema tripartite: produção, distribuição e consumo.

Os autores Querino & Ferreira (2015, p. 119) a partir do pensamento de Cauquelin (2005), descrevem que o primeiro esquema se desenvolveu a partir de características herdadas historicamente, ou seja, a partir do rompimento da arte com a academia real e das transformações sociais, que permeavam o mundo naquele momento. Em outras palavras, quando as revoluções industriais e o surgimento da arte moderna resultaram em uma quebra de paradigmas de uma arte dita “oficial” e na descentralização do controle do entendimento do que seria “bom” ou “ruim”.

Em relação ao segundo esquema, Cauquelin defende que a arte contemporânea e a comunicação, os produtores, intermediários e consumidores não podem mais ser distinguidos. Nesse caso, segundo Querino & Ferreira (2015, p. 121) a partir da reflexão da obra de Cauquelin (2005), todos os papéis podem ser desempenhados ao mesmo tempo. O percurso de uma obra até o consumidor presumido não é mais linear, mas circular.

Essas associações mais independentes em relação ao mercado podem ser observadas nos trabalhos dos artistas pixadores tratados nessa pesquisa. Para além disso, é necessário salientar sobre o entendimento de como esse regime de comunicação se encontra no contexto da arte brasileira, integrando-se ou distanciando-se de categoriais conceituais da história das artes visuais, baseada no formalismo e historicismo de movimentos artísticos (KERN, 2019). Segundo Kern (2019, p. 71), a partir dos anos de 1960, a arte moderna vive uma fase de crise das premissas que a institucionalizaram. Assim, as categorias de pureza, autonomia, originalidade, autoria e gosto universal se aplicam de forma reduzida, diante do hibridismo, da mescla da arte com outras atividades práticas e de sua pluralidade.

Ainda, a percepção ou o conceito sobre a origem e suas derivações da arte brasileira tem suas nuances diferenciadas, sob a defesa de Tadeu Chiarelli (2002). Para ele, a arte brasileira divide-se em dois grandes grupos. O primeiro grupo congrega as manifestações marginalizadas (derivadas de indígena, africana, portuguesa e de outros povos imigrados no passado), com caráter fundamentalmente popular. O segundo grupo é caracterizado pela produção erudita, herdada da cultura europeia, iniciada no Brasil pela Academia Imperial de Belas Artes no século XIX.

 

O circuito artístico brasileiro foi se constituindo de maneira singular, tendo de um lado a Academia, o Estado e um pequeno setor da burguesia, interessados numa produção que deveria enaltecer as glórias do Império ou os valores daquela classe social; do outro, artistas de origem predominantemente popular, mais artesãos que artistas eruditos, repetindo fórmulas revelhas ou engendrando uma visualidade pouco ligada àquela requerida pelos padrões instituídos do século XIX. Esse circuito, que se perpetuaria até este século, parece ter sido significativamente preenchido com o passar do tempo por dois segmentos estranhos ou a princípio marginalizados em relação ao contingente dos "filhos das classes abastadas". (CHIARELLI, 2012, p. 14).

 

O pesquisador Charles Narloch (2007) em seu texto “Das artes liberais ao hibridismo: As revoluções nos conceitos nas artes visuais” afirma que o conceito de arte passou por quatro grandes revoluções em sua definição. A primeira se deu no Renascimento, com o surgimento do conceito das Belas Artes. O segundo, foi quando surgiu a Fotografia, em 1822, onde o pintor francês Delaroche proclamou “a morte da pintura”. A terceira revolução ocorreu no início do século XX quando, “na busca por uma liberdade de expressão, a arte afastou-se da necessidade de expressar a natureza, seguindo à direção da abstração” (NARLOCH, 2007, p. 31). O hibridismo seria então a quarta revolução da arte. Ele a define como uma impossibilidade de conceituar uma criação artística como pertencente a uma única vertente, categoria ou cultura, decorrente do ilimitado experimentalismo da arte contemporânea (NARLOCH, 2007, p. 32).

Desta maneira podemos pontuar que existe uma “invasão” das artes visuais no cinema, no teatro, no espaço urbano, nos meios de comunicação, na política, etc. Dessa maneira, torna-se cada vez mais difícil estabelecer diferenças entre processos artísticos que caracterizem um lugar ou uma cultura específica.

Segundo Narloch (2007, p. 34) a desmaterialização da arte, provocada pelos processos híbridos de criação, aliada aos novos hábitos de moradia e comportamento urbano, fez ruir outro conceito considerado secular: o mito do ateliê.

 

O ateliê perdeu sua função inicial: ser “o” lugar de fabricação de imagens. Como resultado, o artista se desloca, vai para onde as imagens são feitas, insere-se na cadeia econômica, tenta intercepta-las. O ateliê, portanto, não é mais o local privilegiado da criação, ele é apenas o lugar onde se centralizam as imagens coletadas por toda parte. Além disso, um ateliê é onde a matéria-prima é manipulada. (BOURRIAUD, 2003 apud NARLOCH, 2007).

 

Em relação às produções da arte contemporânea, para a autora Anne Cauquelin (1996, p. 35), o objeto estável cedeu lugar a um processo de construção permanente em que a cidade não é mais fixa, pois qualquer ser humano de qualquer ponto do planeta pode entrar e sair deste invólucro e participar, como membro ativo, da cidade mundial.

Para Canclini (1998) o grafite1, juntamente com as histórias em quadrinhos, seriam gêneros constitucionalmente híbridos. Segundo o autor, essas práticas desde seu nascimento abandonaram o conceito de coleção patrimonial. Lugares de intersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular, aproximam o artesanal da produção industrial e da circulação massiva.

Canclini (1998) comenta, também, que a cultura urbana é a principal causa da intensificação da heterogeneidade cultural. Nesse sentido, podemos constatar que há uma grande diversidade cultural nas cidades, diversos grupos sociais ou “tribos”, classificados de acordo com idade, credo, sexo, condição financeira, etc. Esses grupos acabam por desenvolver características únicas e múltiplas, constituindo uma heterogeneidade imensa dentro de uma mesma cidade, que, por sua vez, tem uma característica homogeneizada de acordo com as outras cidades.

A pixação, o graffiti e o hip hop em geral, os quais fazem parte de um mesmo nicho cultural, está relacionada a uma cultura mais periférica desde sua origem. No Brasil, vemos esses grupos, também, numa camada mais marginal e periférica da sociedade, juntamente com o funk.

Segundo a autora Ivana Bentes (2007, p.54),

 

Essa cultura das favelas e periferias (música, teatro, dança, mídia, vídeo, moeda, educação), surge como um discurso político “fora de lugar” (não vem da universidade, não vem do Estado, não vem da mídia, não vem de partido político) e coloca em cena novos mediadores e produtores de cultura: rappers, funkeiros, [...], produtores da chamada economia informal, artistas urbanos, grupos e discursos que vêm revitalizando os territórios da pobreza e reconfigurando a cena cultural urbana. Transitam pela cidade e ascendem à mídia de forma muitas vezes ambígua, podendo assumir esse lugar de um discurso político urgente e de renovação num capitalismo da informação.

 

A ideia de grupo, relativa à essas culturas marginalizadas, ressalta a questão de uma identidade onde os sujeitos produzem cultura. Neste campo tentam elaborar um espaço buscando visibilidade dentro da sociedade capitalista que fazem parte.

Segundo Anna Paula Ferraz Dias Vieira (2018) em sua dissertação intitulada O direito à cidade e a cultura marginal: a narratividade como luta por visibilidade, a cultura marginal periférica tem desempenhado importante papel na disputa simbólica pelo espaço urbano.

Vieira (2018, p.78) ressalta que é a partir de uma consciência dessa marginalização, imposta sobre si e seu território, bem como da identificação dos espaços estruturais de poder, que essa cultura toma os espaços da cidade, periféricos ou não, dotando-os de novos sentidos e criando novas territorialidades. Com isso, passa a reconstruir simbolicamente esses espaços.

Deste modo, podemos inferir que o direito de existir na cidade é reivindicado pelas culturas periféricas, ocupando espaços para obter uma maior visibilidade, que resiste mesmo com as tentativas de apagamento pelo Estado ou pela rejeição de um campo institucionalizado e elitizado das artes.

 

Desdobramentos: ArtRio 2019 e a valorização do pixo no Museu da Língua Portuguesa

 

Os eventos seguintes, abordados nesta seção, podem ser entendidos como desdobramentos das discussões ocorridas em 2008. Isto é, envolvendo a pixação paulistana e o circuito artístico brasileiro, como a ocupação da 28ª Bienal de São Paulo e na galeria Choque Cultural. Esses eventos trouxeram um holofote e interesse midiático aos pixadores/pichadores, que passaram a participar mais ativamente do meio artístico, como galerias, exposições e debates.

O primeiro evento ocorreu em 18 de setembro de 2019, quando o coletivo Massive Ilegal Arts (MIA) pichou uma parede no galpão da feira de arte ArtRio, realizada na Marina da Glória (Rio de Janeiro). Na ação, o artista João França pichou a palavra NEGRO e explicou a ação na rede social Instagram. Segundo o artista, a “Intervenção na @artrio_art para mostrar o quanto a arte contemporânea é segregadora e quer afastar os negros da arte. Mas somos a RESISTÊNCIA e estamos aqui pra provar que o NEGRO está no poder e não pode contar com a $ORT€!!! Chora playboy!!!!”. Em sua rede social, o artista apresenta seu trabalho como uma forma de resistência ao campo artístico estabelecido, enaltecendo o trabalho de artistas negros e periféricos.

Segundo a reportagem de Tatiane de Assis, na Veja São Paulo (2019), a ex-consulesa e jornalista francesa, Alexandra Loras, que estava no evento no momento da ação, opinou sobre ação. Segundo ela, o ato “foi algo rápido e com muita adrenalina. Era só pintura, não foi agressão”. Para ela, a pichação do artista estimula o debate sobre a questão racial. “No Brasil, apesar da maioria da população ser negra, vemos uma segregação cordial em espaços de elite. Talvez o incômodo provoque uma discussão.”

Do mesmo modo, a lógica defendida por Tatiane de Assis pode ser aplicada ao coletivo MIA, que já era conhecido pela mídia por pichar monumentos históricos. Em 2018, MIA pichou a fachada do Pateo do Collegio2 em São Paulo com a frase “Olhai por Nóis”. Em sua justificativa3 o artista João França relatou que queria chamar a atenção para a quantidade de pessoas em situação de rua que ficava diariamente em frente ao prédio histórico. A frase escolhida foi “Olhai por Nóis”, referência a oração da “Ave Maria”.

 

Figura 1 - Pichação no Pateo do Collegio.

Fonte: Felipe Rau/Estadão Conteúdo.

 

A pichação em monumentos e construções histórias costumam causar revolta em grande parte da sociedade. Segundo o artigo 65 da lei Nº 9.605 prevê que caso a pichação ocorra em “monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico” a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa. Apesar da intensa polêmica causada na época do ocorrido e da multa de R$ 20 mil reais como punição4, ninguém foi preso.

Para tratarmos desse tema, buscamos Canclini (1998, p.301) que reintroduz a questão dos usos modernos e pós-modernos da história com a referência, segundo ele, mais desafiadora e aparentemente mais solene que ele conhece: os monumentos. Para o autor, enquanto nos museus os objetos históricos são subtraídos à história, e seu sentido intrínseco é congelado em uma eternidade em que nunca mais acontecerá nada, os monumentos ficam abertos à dinâmica urbana e facilitam que a memória interaja com a mudança. Assim, os monumentos urbanos estão felizmente expostos a que um grafite ou uma manifestação popular que os insira na vida contemporânea.

Para tratar desse problema, Canclini (1998, p. 309) afirma que é necessário reescrever politicamente os monumentos e de se trabalhar os processos (combinados) de descolecionamento e desterritorialização. Para ele, a interação dos monumentos com mensagens publicitárias e políticas situa em redes heteróclitas a organização da memória e da ordem visual

Outro fator que deve ser levado em conta na análise de pichações em edifícios históricos e monumentos é a noção do território, frequentemente levantada pelos pichadores. Na perspectiva de Rogério Haesbaert (2006, p. 42), o território envolve sempre relações de poder e ao mesmo tempo, uma dimensão simbólica, cultural, por meio de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de controle simbólico sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e também a uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos.

Ainda com Haesbaert (2006), o autor afirma que os processos de desterritorialização correspondem a uma perda de referências espaciais (mas não a uma perda de espaço) e a um processo de desenraizamento involuntário, junto da perda de autonomia e liberdade na apropriação simbólica e funcional do espaço geográfico e consequente crise social e psicológica com desajustes de afirmação identitária e económica.

Portanto, em casos como observamos na pichação de MIA, é necessário segundo Haesbaert (2006) e a partir das reflexões levantadas por Canclini (1998), compreender o território sempre como um híbrido, que orbita entre materialidade e imaterialidade, sobre a sua função (objetivo) e sua expressão, seja ela feita por palavra ou imagem, pois, as dimensões são inseparáveis e os processos de territorialização/desterritorialização são concomitantes, na apropriação (simbólica) e na dominação (política).

Retornando ao caso da ação realizada por MIA, uma fotografia com a pichação feita por ele no Pateo do Collegio foi exposta sem autorização do pixador na 15ª Feira de Arte SP-Arte em abril de 2018, no estande reservado para os alunos da Faculdade Belas Artes, ampliando ainda mais a complexidade desse tema.

João França, do coletivo MIA, ao saber disso, realizou no dia da abertura da Feira uma intervenção “ao vivo” na fotografia exposta, escrevendo por cima do vidro a palavra NEGRO. A obra foi retirada do estande e a faculdade nunca se pronunciou sobre o caso.

 

Figura 2 - Fotografia pichada por MIA na Feira de Arte de SP (2018).

Fonte: Reprodução/Ponte.org.

 

Interessante destacar que o episódio gerou outros valores no mercado das artes e significados sobre autoria. Segundo a reportagem de Arthur Stabile (2019) no website ponte.org, o artista João França, ao saber do ocorrido pelo fotógrafo, fez algumas exigências ao expositor: “dobrar o valor para venda da foto, que estava em R$ 4 mil, me repassarem metade deste dinheiro e seu nome assinado”. Entretanto, a foto já estava no fim do processo de exposição e não houve acordo. Neste caso, autoria, co-autoria e apropriação passam a ser conceitos significativos que estão envolvidos no processo do ato de pixar, fotografar, documentar a pichação por meio da fotografia e retomar o ato da pichação na obra em si. Nesta complexidade de processos, o artista vai para além da pixação na fotografia. Ele resolveu espalhar pelo espaço da exposição notas de dinheiro falsas com a escrita “arte da elite”.

Nas duas ocasiões citadas, onde MIA intervém em espaços expositivos, o artista usou a palavra NEGRO, escrita com a cor vermelha. Segundo relatou o artista à STABILE (2019), a palavra escolha da palavra negro se dá “pela exploração do povo e do trabalho do negro. Eu sou de periferia, jamais teria uma obra exposta na SP-Arte. Quem expôs foi um fotógrafo estudante da Escola Belas Artes, branco, não o autor da intervenção, um homem negro”. Esse posicionamento reforça os apontamentos feitos relativos à autoria, visibilidade, origem de fala e da escrita, espaço urbano e espaço institucional (galerias, museus, etc.)

MIA utiliza suas redes sociais para criticar ações do estado nas ruas e mostrar suas pichações, sempre criticando o sistema e o preconceito contra negros e moradores de rua. Nessas ocasiões, ocupou espaços de arte elitizados e de venda de obras de arte (Feira Art Rio e Feira de Arte de São Paulo).

O segundo evento de relevância para reflexão proposta nesta pesquisa, se deu no Museu da Língua Portuguesa, que reabriu suas portas para o pixo. A exposição “Língua Solta” marcou a reabertura do Museu após o incêndio em 2015. Os curadores Moacir dos Anjos e Fabiana Moraes montaram uma exposição composta por objetos de arte popular e obras de arte contemporânea, que fixam seus significados no uso da palavra.

 A obra que levou o pixo à mostra foi constituída por 16 cartazes (tags) e, segundo o artista-pichador Ronaldo Gentil em entrevista ao jornal A Gazeta, cada uma delas representa um pouco da peculiaridade da arte da pixação do estado que foi elaborada. O artista, que mora no Espírito Santo, ainda relatou ao jornalista Pedro Permuy (2021) que apesar da pichação ser uma tradição popular, ela ainda não é totalmente reconhecida pelo meio artístico. Segundo Gentil, participar de um projeto como esse (exposição no Museu da Língua Portuguesa) válida sua obra não só como arte gráfica, mas também, como comunicação e linguagem.

 

Figura 3: Obra do Coletivo Círculo Forte Brasil – Museu da Língua Portuguesa (2021).

 

Fonte: Agazeta. Arquivo pessoal de João Wainer. (2021).

 

 

Neste evento, ocorrido no Museu da Língua Portuguesa, é importante ressaltar que ocorre um reencontro entre Cripta Djan, Rafael Augustaitiz e o curador Moacir dos Anjos, que anteriormente havia convidado esses pichadores a expor na Bienal de São Paulo em 2010, juntamente com Agnaldo Farias.

O artista Cripta Djan fez uma postagem em sua rede social Instagram, em 3 de outubro de 2021, agradecendo ao curador Moacir dos Anjos e a Fabiana Moraes por, segundo ele, “terem a sensibilidade de incluir o pixo dentro de uma mostra tão importante para a cultura brasileira”.

Na descrição do projeto “Língua Solta” apresentada no website oficial do Museu da Língua Portuguesa (2021), Moacir dos Anjos disserta sobre os significados da exposição:

 

A língua é solta porque perturba os consensos que ancoram as relações de sociabilidade dominantes, tanto na vida privada quanto na pública. Incorporada em imagens e objetos diversos, ela sugere outros entendimentos possíveis do mundo. E tece, assim, uma política que é sua. (DOS ANJOS, 2021).

 

Ainda na descrição do projeto, a língua é vista como operador social que não somente reflete, como também, reorganiza formas de vida. Segundo Fabiana Moraes (2021) “A gente entende que a língua é um espaço de disputa de poder e vai se refletir em questões várias do Brasil – de raça, de classe, de gênero e de geografias”.

A partir dessas duas falas importantes, podemos ressaltar que o pixo nessa exposição é entendido como uma expressão da língua brasileira vista como “popular”, que está incorporada ao meio e que está atrelada as disputas de poder, trazendo questões importantes à identidade, especialmente ao negro.

Nessas ocasiões, a ideologia da pixação aparece incorporada as outras expressões artísticas, compondo a exposição com imagens ou performance. Com esses exemplos, é possível notar o esforço dos artistas em criar uma expressão fiel a ideologia do pixo que é seu caráter de transgressão, sem precisar literalmente “pixar” uma parede. Neste caso, a interação do pixo com o campo artístico ocorre de forma harmônica, quando respeitada suas características e intenções do pichador, buscando-se novas formas de exibição da cultura do pixo.

Essa ampliação do campo traz questões pertinentes à origem, desenvolvimento, apropriações, exposições, reelaborações da pixação, o que promulga discussões, que devem ser pensadas sob diferentes perspectivas. Tal panorama é instigante, por levantar informações relativas as multiplicidades da comunicação, arte, formas de expressão do pixo, mostrando suas ambiguidades e convergências.

 

Referências bibliográficas

 

ARTS, MASSIVE ILEGAL (MIA). Página no Instagram (@massive_mia). Disponível em: <instagram/massive_mia>. Acesso em: 31 jan 2022.

ASSIS, Tatiane. ArtRio é pichada e não apaga mensagem feita como protesto. Veja, São Paulo. 20 set 2019. Disponível em: . Acesso em: 19 ou 2021

BENTES, Ivana. Redes colaborativas e Precariado Produtivo. Revista Periferia, v. 1, n. 1, jan./jun. 2009.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1998. p.283-350: Culturas híbridas, poderes oblíquos.

Catálogo da 29ª Bienal de São Paulo: Há sempre um copo de mar para um homem navegar / curadores Agnaldo Farias, Moacir dos Anjos. São Paulo: Fundação Bienal São Paulo, 2010. Disponível em: . Acesso em: 01 jun 2021.

CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea: Uma introdução. São Paulo: Martins, 2005.

CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. São Paulo: Lemos Editorial, 2002.

DOS ANJOS, Moacir. Entrevista. “Para Bienal, "pixo" pode ser arte e política”. Folha de São Paulo, 15 abri 2020. Disponível em: . Acesso em: 25 out 21.

DJAN, Cripta. Página do Instagram (@criptadjan). Disponível em: . Acesso em: 31 jan 22.

DJAN, Cripta. Fotografia da exposição Língua Solta. Agradecimento aos curadores. Disponível em: <https://www.instagram.com/p/CR_9Vn4Luvp/> . Acesso em 19 out 2021.

HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

KERN, Maria Lúcia Bastos. Cultura visual, história da arte e paradigmas do conhecimento. In: VILELA, Ana Lucia; BORGES, Maria Elizia (orgs). História e Arte: temporalidades do sensível. Vitória: Editora Milfontes, 2019.

NARLOCH, Charles. Das artes liberais ao hibridismo: as revoluções dos conceitos nas artes visuais. In: LAMAS, Nadja de Carvalho (org.). Arte Contemporânea em questão. Joinville: Univille / Instituto Schwonke, 2007.

PERMUY, Pedro. Capixaba expõe pichação na reabertura do Museu da Língua Portuguesa. A Gazeta. Vitória, 08 ago 2021. Disponível em: . Acesso em: 18 out 2021.

PORTUGUESA, Museu da Língua. Exposição Língua Solta. São Paulo, 2021. Disponível em: . Acesso em: 19 out 2021.

STABILE, Arthur. Foto que retrata obra de artista negro é vendida sem autorização do autor. Ponte, 11 abr 2019. Disponível em: . Acesso em: 09 nov 2021.

VIEIRA, Anna Paula Ferraz Dias. O direito à cidade e a cultura marginal: a narratividade como luta por visibilidade. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2018.

 

Data de Recebimento: 03/07/2022
Data de Aprovação: 22/08/2022


1  Cabe relembrar ao leitor que, os conceitos de grafite, pichação e pixação acabam se misturando fora do Brasil, visto que essas diferenças são típicas de nosso país.

2  O Pateo do Collegio é com complexo religioso histórico que pertence à Companhia de Jesus, ordem religiosa dos jesuítas fundada em 1540 por Inácio de Loyola. Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil em 1549 com a missão de evangelizar os indígenas.

3  Vídeo publicado em sua rede social Instagram. Disponível em: <https://bityli.com/VEHhul>. Acesso em: 20 de setembro. 2020.

4  RAUPP, Jean. Pichadores do Pateo do Collegio são multados em R$ 10 mil cada um. G1, São Paulo. 2018. Disponível em: <https://bityli.com/rkiKlM>. Acesso em: 09 nov 21.