Por um arquivo (d)e memória: corpos-trans na Argentina e no Brasil


resumo resumo

André Cavalcante
Lucília Maria Abrahão e Sousa



Pedaços e(m) arquivo: o que está e(m) falta

Enquanto os homens exercem/ Seus podres poderes/ Morrer e matar de fome/ De raiva e de sede/ São tantas vezes/ Gestos naturais

Caetano Veloso. Podres Poderes. 1984

 

Estudar arquivo e corpo trans implica o difícil trabalho de tocar uma escrita cujas camadas de dizeres são atravessadas por silenciamentos, interdições e espaços lacunares de ausência, uma vez que dizer do corpo e do sexo fora da anatomia biologizante é um exercício desafiador. Mais ainda porque rompe com os efeitos naturalizados como óbvios para as palavras corpo, masculino e feminino, sempre tomadas no binarismo de diferenças excludentes. Nos países colonizados sob o jugo da religião católica e no modelo que tenta domesticar os sentidos de corpo, a evidência dos sentidos dominantes é ainda mais fixada. Esses sentidos remetem a duas metáforas, formuladas pela escritora Virginia Woolf, e analisadas por Assmann (2011, p. 173) nos seguintes termos:

 

Suas metáforas da memória enfatizada de modo feminino são a da costureira e a do varal de roupa. Nas duas imagens manifesta-se a associação errática como princípio estrutural da recordação: ‘a recordação é uma costureira, uma costureira pouco caprichosa. Guia sua agulha por dentro e por fora, para cima e para baixo, aqui e acolá. Nunca podemos saber o que vem a seguir e o que mais depois disso.’. As ações mais comuns são capazes de ‘invocar mil fragmentos estranhos, inesperados e desconexos, às vezes brilhantes, às vezes pálidos, estendidos, agitando-se pra cima e pra baixo, dobrando-se, deslumbrantes como as roupas de baixo de uma família de quatorze membros expostas no varal, sob a brisa fresca.

 

Mobilizamos a metáfora do varal em particular com a roupa intima exposta e disposta de modo a fazer misturar o vestuário de seus donos. Consideramos que as roupas mais íntimas, também chamadas de “roupas de baixo” (o que polissemicamente indica uma região do corpo) guardam as marcas do contato com a pele e, sobretudo, com os buracos do corpo humano, e recebem deles os vestígios, as secreções, os cheiros e as formas. Podemos tomá-las como materialidade e exposição daquilo que, no convívio social, está sempre recolhido, escondido e coberto, a não ser dito. Isso tem relação com nosso objeto, pois sobre o corpo diz-se sob certas condições históricas e também com o arquivo que disponibiliza o que está em exibição e o que foi suprimido e escondido. Eis o batimento dialético do varal e do arquivo.

Inicialmente pensamos a instância administrativa do arquivo, que Assman (2011, p. 367) coloca nos seguintes termos:

 

O arquivo está ligado desde o seu princípio com a escrita, a burocracia a administração e os atos administrativos. O que condiciona a existência de um arquivo são sistemas de registro que agem, como meios de armazenamento externos, e o mais importante deles é a escrita (...)

 

O predomínio da escrita na constituição dos arquivos exclui de saída a oralidade e os relatos que estão fora do registro escrito, o que marca uma ausência constitutiva no que ali se mostra. Em relação ao tema do corpo, consideramos que a fala, com frequência, sustenta a dinâmica das conversas cotidianas, muitas vezes marcadas por revelações, confidências, depoimentos e dizeres tomados pelo efeito de segredo e privacidade. Pouco dela entra na esfera do documento escrito de que tradicionalmente se nutre o arquivo; assim, o jogo de presença da escrita e da ausência da fala abre espaço para pensarmos, na contradição, a divisão e o embate de sentidos em curso na circulação de um arquivo. Sobre isso, Pêcheux (2010, p. 51) sinaliza que a construção do arquivo passa por gestos e percursos de leitura os quais produzem certos modos de seleção, exclusão, acréscimo, eleição e permanência.

Disso deriva a definição de arquivo como “um campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão”, e os dois adjetivos implicam uma voz administra que decide o que é (ou não) pertinente, importante e necessário a permanecer no arquivo, e o que deve (ou não) ser disponibilizado a ser visto. Isso coloca de saída a impossibilidade da completude e da totalidade do arquivo, sobretudo quando estamos tratando do varal das roupas de baixo, ou seja, sobre os sentidos sobre/do corpo trans. A falta, a ausência e o impossível, o que não pode ser exposto nem pendurado para a exposição ao sol. A “materialidade da língua na discursividade do arquivo” (PÊCHEUX, 2010, p. 59) é justamente o que permite considerar como as palavras funcionam a partir da determinação dos processos históricos de produção de sentidos. No fio do discurso, jogam tensa e contraditoriamente o pode e deve ser colocado, guardado e apresentado para exibição e, ao mesmo tempo, o que precisa não ser dito na trama institucional de um órgão que se autoriza a fazê-lo.

Na definição de Farge (2017, p. 58), o arquivo “é permanentemente uma falta” e trabalhar com ele “é traduzir esta falta em questão”. No caso do nosso objeto, que roupas podem ser colocadas no varal para dizer dos corpos trans? Como os sentidos sobre eles restam silenciados e/ou deslegitimados, tomados a partir da orientação dos efeitos da doença e da loucura? Como compor e constituir um arquivo sobre esse tema? Que documentos escritos e que depoimentos orais teriam autorização para circular na trama administrativa dos arquivos sobre os corpos trans? Como selecionar o que deveria/seria pertinente para ser mostrado? Se a falta é, em tese e de modo geral, o que melhor o arquivo implanta, no caso do nosso tema, tal falta é da ordem de uma interdição.

Robin (2016), a partir de uma investigação sobre o jogo do lembrar e fazer esquecer, discorre sobre os mecanismos de apagamento em diferentes redes de dizer, quais sejam, na trama digital, nos arquivos e nas cidades. Nelas há monumentos, prédios, locais que foram/são destruídos, demolidos, desaparecidos do mapa em sentido estrito, restando pouco ou nada da inscrição social deles. Ao mobilizar os verbos demolir, destruir e substituir, a autora sustenta que tais ações são modos de produzir a operação de apagamento na qual o branco é a cor do esquecimento. Pensamos, junto com a autora, que os dizeres sobre o corpo trans implicam considerar um branco nos arquivos oficiais, ou seja, o silenciamento (ORLANDI, 2007) que força os sentidos sobre o corpo trans a não circularem socialmente.              Silenciamento e apagamento de corpos, sujeitos e histórias de pessoas trans na nossa sociedade, como o que ocorreu com Xica Manicongo, conhecida atualmente como a primeira travesti na história do Brasil, vivendo em Salvador em torno dos anos 1590. Sobre essa travesti, Jesus (2019) nos diz que

 

Xica, por séculos, quando lembrada em nota de alguma pesquisa sobre as denunciações da primeira visitação do Santo Ofício à Bahia, [...] por tempo equivalente foi apontada como homem, até que sua história foi resgatada, nestes novos tempos de movimentos sociais, após estudos sobre a Inquisição no Brasil que consideraram a interseção com gênero e sexualidade algo necessário, que lhe apontaram como a primeira travesti alvo dos processos, e seu nome social atribuído postumamente por Majorie Marchi, militante travesti negra que presidia a ASTRA-Rio (Associação de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro), até seu falecimento. (JESUS, 2019, p. 4-5)

 

Xica desafiou as regras sociais de um Brasil colonial, um corpo travesti negro que enfrentou a Inquisição, ousou ir de encontro a normatização dos corpos pelo Estado e pela Igreja, sofrendo então, violência e censura. Ainda hoje as discussões sobre gênero e sexualidade sofrem diversas formas de censura. Em documentos oficiais, na escola, nos arquivos, em exposições museológicas, há interdição de significantes como “gênero”, “sexualidade” e “corpo trans” para não expor nem pendurar no fio do dizer “as roupas de baixo”. Sobre isso, Preciado (2014, p. 26) pontua as falhas do sujeito tradicional nos seguintes termos:

 

“O sistema sexo/gênero é um sistema de escritura. O corpo é um texto socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade como história da produção – reprodução sexual, na qual outros códigos se naturalizam, outros ficam epiléticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados. A (hetero)sexualidade, longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se reinstruir através de operações constantes de repetições e de recitações dos códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como naturais.”

 

Do campo da Filosofia, o teórico trans Preciado (2014) considera o sistema sexo/gênero como uma escritura, um texto construído socialmente no qual as práticas de repetição e recitações impõe a naturalização do que seria entendido como masculino ou feminino. Discursivamente, compreende-se que essas práticas que visam à naturalização de sentidos sobre determinados corpos e sujeitos são próprias da Ideologia. É a ideologia que fornece as evidências da ordem do “todo mundo sabe” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p.146). Tais evidências naturalizam os sentidos que devem ser ditos em relação aos sujeitos e seus corpos, como se fossem unos e transparentes, impossíveis de serem ditos e significados de outro modo (HERCULINO, 2021). É sob essa obviedade da interpelação ideológica (PÊCHEUX, op. cit.) que a ordem do dizível e do arquivável está posta e funciona de modo a silenciar.

 

Arquivos de sujeitos trans em latinoamérica

 

Será que nunca faremos senão confirmar/ A incompetência da América católica/ Que sempre precisará de ridículos tiranos/ Será, será, que será?

 Caetano Veloso. Podres Poderes. 1984

 

Pensando a relação arquivo e memória na discursivização sobre corpos trans, traremos para uma breve análise publicações de duas páginas do Instagram que têm como objetivo divulgar a história de sujeitos trans, na Argentina e no Brasil, para compreendermos a historicidade dos sentidos sobre os corpos trans em dois dos países mais populosos da América do Sul. A página brasileira chama-se “Acervo Bajubá”, @acervobajuba1, composta por um material mais diversificado, do grupo LGBTQIA+2; enquanto a página argentina é o “Archivo de la memória trans”, especificamente focado em pessoas trans. Tais nomes de páginas já acenam para um trabalho com a memória de um grupo específico, marcando também importância social do arquivo e da memória desses sujeitos.

A partir de prints da rede social Instagram, podemos acessar o “Archivo de la Memoria Trans”, @archivotrans3, página argentina, de uma organização não governamental, que se apresenta como ““Espacio fundado por María Belen Correa, para protección, construcción y reividicación de la Memoria Trans.” Espaço fundado pela ativista trans María Belen, conhecida na luta pelos direitos LGBTQIA+ na Argentina. Essa definição na “bio” do instagram indicam três grandes objetivos: proteção, construção, reivindicação da memória trans. Essa iniciativa, então, pretende proteger determinados arquivos para que uma memória das transgeneridade na Argentina seja construída. A própria publicação na rede social pode se constituir como um arquivo, que se compõe pela falta, pelo excesso, pelo desejo de completude.

Vejamos alguns prints do Archivo Trans.

 

Figura 1: Archivotrans

 

Fonte: Rede social Instagram

 

Na Figura 1, podemos conhecer alguns funcionamentos do instagram, como número de publicações, os números de pessoas que seguem a página, o número de usuários que a página segue, a bio, os stories (imagens ou vídeos momentâneos que são disponíveis por 24h), os destaques, que, em forma de stories, podem ficar por tempo permanente, como por exemplos “livro”, “ecobags”, “fundos documentais”, “mostra”. Pode ser observado também um panorama da página @archivotrans, fotografias de pessoas trans, eventos, vídeos, bandeiras trans. E, sobretudo, corpos trans que se dão a ver e a saber cada vez mais digital, como veremos na próxima imagem.

 

Figura 2: Reparación

 

Fonte: Rede social Instagram

 

Esta rede social concentra-se na publicação de imagens e, geralmente, as publicações funcionam pelo imbricamento entre materialidade verbal e visual, como na imagem 2. Uma sequência de fotos mais antigas de pessoas trans, uma sequência em carrossel. Na legenda da foto, inscrevem-se dizeres como “Reparación histórica URGENTE para las travestis/trans mayores. Exigimos uma Ley Integral Trans Ya!” e “Una Ley que garantice la inclusión social y los derechos en igualdade de condiciones para la poblacion Trans.” Com estes dizeres, os sujeitos-trans reclamam uma reparação história de caráter urgente para as pessoas trans e travestis idosas, uma lei que garanta inclusão e igualdade de condições para a população trans. É importante salientar que tanto no Brasil como na Argentina, há uma especificidade das pessoas trans idosas. Essas pessoas sobreviveram a ditaduras, a perseguição, violência do Estado e falta de acesso à saúde. Nos dois países a expectativa de vida de pessoas trans é muito inferior à de pessoas cisgêneras. Chegar a velhice sendo uma pessoa trans é resistir a uma política de silenciamento e apagamento de formas de identificação que abalam pré-construídos sobre masculinidades e feminilidades. (CAVALCANTE, 2021).                                                                  Pessoas trans reunidas, na luta, no dia a dia, em comemorações dão a saber da existência de sujeitos em “formas de aparição fugidia de alguma coisa ‘de uma outra ordem’, vitorias ínfimas que, no tempo de um relâmpago, colocam em xeque a ideologia dominante tirando partido de seu desequilíbrio” (PECHEUX, [1978] 2009, p. 278).

Sobre reunião de pessoas trans, traremos mais uma imagem:

 

Figura 3: Amistad

 

Fonte: Rede social Instagram

 

Na imagem 3, seis mulheres trans juntas, felizes, abraçadas, fotos de fundos documentais, publicadas no Dia da Amizade, 20 de julho, com dizeres como “Celebramos as nuestrxs compañerxs que nos abrazan. Amistades de toda uma vida, de tantas relaciones y tantas resistências juntxs. Hoy es um dái para recordar aquellxs que yá no están.”. Recordar aqueles que não estão, aqueles que estavam à frente nos momentos de luta, na resistência, é algo que tanto os Archivos de la memoria trans como o Acervo Bajubá se interessa uma vez que

 

Os sujeitos-trans, ao se subjetivarem na sociedade, trazem consigo uma memória de um corpo que foi significado, categorizado, lido como um outro, de um outro gênero pelas vias da ideologia, que controla corpos através da cisnormatividade. [...] Ser trans, (binários, não-binários e travestis), habitar um corpo trans numa sociedade extremamente violenta, onde mais se matam pessoas trans no mundo, é um ato de resistência, é estar à margem, produzindo sentidos. Assim, tal corpo é, ele (se) significa. Estes corpos quando se identificam com a transgeneridade parecem deixar de ter cidadania, como se estivessem fora do Estado e de sua forma de individua(liza)ção, isto é, à margem, provocando medo e estranhamento na sociedade, pois, desestruturam os já-ditos sobre corpos, sexos e gêneros. (CAVALCANTE, 2021, p. 72-73)

 

Estar à margem, produzindo outras formas de subjetividades, de conhecimentos. Estar no sentido sem ser o dos universos logicamente estabilizados (PÊCHEUX, 2015 [1983]), é uma maneira de desestruturar já ditos do/sobre corpo, sexo e gênero. Margem que não é um não-lugar como inexistente, mas lugar que é de silenciamento e ao mesmo tempo de produção de sentidos outros. Mesmo que cerceamentos de corpos e sentidos, eles reclamam sentidos, como veremos agora nas publicações do @acervobajuba.

  

 

 

 

Figura 4: Bajubá

 

Fonte: Rede social Instagram

 

Na bio da imagem 4, podemos compreender que “O acervo Bajubá é um projeto de preservação, salvaguarda e instigação historiográfica da arte, memória e cultura LGBT brasileiras.” As palavras preservação”, “salvaguarda” e “instigação historiográfica” qualificam esse projeto em torno da arte, memória e cultura LGBTQIA+ brasileira. O que se diferencia do @archivotrans é que a página brasileira abrange um grupo mais amplo, como dissemos. Diferença que não implica no maior número de seguidores na página brasileira, pelo contrário, é bem inferior a página argentina. Também observamos outros pontos nessa imagem, os destaques como “exposições”, “acervo”, “podcast”, entre outros. E algumas publicações que compõe o acervo, jornais históricos da população LGBTI+, como o ChanaComChana, jornal pra lésbicas, eventos, personalidades LGTI+ como a cantora Angela Ro Ro, etc. Sobre o comparecimento desses sujeitos em matérias jornalísticas, traremos uma outra imagem.                                          

 

 

 

 

 

 

 

Figura 5: Ivaná

 

Fonte: Rede social Instagram

 

Na imagem 5, há uma publicação de uma matéria da Revista do Rádio com Ivaná cantando, creditada como diz na manchete “Quem trouxe a moda do travesti para o Brasil”. Inscrito neste enunciado há alguns dizeres que ressoam sobre a memória desses sujeitos: 1. Moda travesti. Algo que alguém inventa e “traz”, algo que não é das identificações do sujeito. 2. O travesti. Neste momento, e ainda utilizado como uma forma de deslegitimar as identificações trans, são usados pronomes no masculino. Na legenda da imagem, há algo que faz eco ainda hoje a relação identidade e performance: “Após inúmeras performances ao longo das décadas de 1950 e 1960, participação em cinco produções cinematográficas, Ivaná foi uma superestrela na arte travesti no Brasil.”.

Há momentos em que a arte drag e as identidades trans, no Brasil, eram intrinsicamente associadas uma vez que a arte, a performance, era um dos lugares possíveis para transgredir as normas de gênero. Arte, lugar de resistência e de possibilidade de se dizer de outros modos, como também contam as divinas divas brasileiras Rogéria, Brigitte de Búzios, Jane de Castro... Hoje, pode-se dizer, que há alguns limites mais ou menos delimitados entre performances de drags queens, como Pabllo Vittar e pessoas trans que também são artistas como Liniker e Linn da Quebrada.           

Por último, traremos uma última imagem do Acervo Bajubá:

 

Figura 6: Anyky

 

Fonte: Rede social Instagram

 

Na imagem 6, há a foto de “Vó Anyky”, “militante histórica dos direitos da população trans e travesti no Brasil.”. Uma senhora trans que, na imagem, está com outras travestis. A figura de Anyky Lima4, no post, representa um marco da história da transgeneridade no Brasil. Há uma nota de pesar sobre a morte da militante trans que foi expulsa de casa, foi prostituta durante décadas, enfrentou a violência da ditadura brasileira. Importante destacar que, historicamente, em vistas da violência e transfobia no país, as pessoas trans tem uma expectativa de vida infinitamente inferir a de pessoas cisgênera. Assim, Anyky se torna uma figura importante para a população trans, por ter extrapolado a expectativa de vida, por ter sobrevivido a epidemia de HIV/AIDS na década de 1980, assim como sobrevivido a “caça às travestis”, promovida pela operação tarântula. Essa imagem se assemelha ao que discutimos a respeito da figura 2. Travestis e transexuais idosas é algo episódico, constituindo algo da ordem de heroísmo, encarnando a figura de uma matriarca ou patriarca de uma geração de pessoas trans. Um sujeito que guarda saberes e experiências sobre “a dor e a delícia de ser o que se é” (VELOSO, 1986).                                                                                        

 

Projetos de (re)construção de arquivos                                                       

              Existirmos: a que será que se destina?

  Caetano Veloso. Cajuína. 1982

 

         Aqui trouxemos algumas breves reflexões sobre a transgeneridade na Argentina e no Brasil, perpassando materialidades das páginas @archivotrans e @acervobajuba que dizem respeito ao cotidiano de sujeitos-trans ao longo da História. Pessoas trans idosas, fotos antigas de pessoas trans, matérias jornalísticas sobre essa população, entre diversas formas de rememorar pessoas trans ao longo da história. Uma proposta inscrita no digital a partir de dois diferentes projetos com o intuito de salvaguardar a memória trans.

Ainda que tenhamos que reafirmar a todo momento a importância de projetos de arquivo, sabe-se que, a partir da ótica discursiva das diferentes formas de ler o arquivo, há algo que sempre escapa, que não é documentado. Várias vidas trans foram perdidas, para o Estado, para as doenças, para uma sociedade transfóbica. Com isso, subjetividades, sentidos e saberes foram interditados do fio do discurso. Corpos e sujeitos nos foram tomados por diferentes vias.                                                                                                              Assim, muito sobre as identificações e construções de saberes sobre a transgeneridade podem ter sido perdidos, ou estarem em vias de ser esquecido, com o que Gonçalves (2018) chama de (trans)epistemicídios, forma de dizimar as práticas de conhecimentos da/sobre a transgeneridade. Portanto, faz-se necessário olhar/construir o arquivo d(e) memória, compreender as formas subjetivação desses sujeitos. E, sobretudo, ouvir as vozes de sujeitos que reclamam sentidos outros frente a cisnormatividade, frente ao silenciamento e às violências sofridas diariamente.

 

Referências:

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação – formas e transformações da memória cultural. Campinas, Editora da Unicamp, 2011.

CAVALCANTE, André. O corpo que habito: resistências e produção de sentidos dos/sobre os corpos trans. (Tese de Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, Niterói: 2021.

FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009. FUKS, B. B. O homem Moisés e a religião monoteísta – Três ensaios: O desvelar de um assassinato. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

GONÇALVES JR., Sara W. P. Morte anunciada: reflexões de uma mulher travesti sobre o assassinato de Dandara. JESUS, D. M; MELO, G. C. V; TCHALIAN, V; GONÇALVES JÚNIOR, S. W (Orgs.). Corpos transgressores: políticas de resistências. Campinas: Pontes Editores, 2018.

HERCULINO, Bruno Monteiro. Discurso e Psicanálise: efeitos de corpo nas transidentidades. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, USP: Ribeirão Preto, 2021

JESUS, Jaqueline Gomes de. Xica Manicongo: a transgeneridade toma a palavra. In: ReDoC, Revista Docência e Cibercultura. V3. N1. Rio de Janeiro: 2019.

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Pontes, 2007.

PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. IN: Eni Orlandi. (org). Gestos de leitura. Campinas: Editora da Unicamp, [1982] 2010.

PÊCHEUX, Michel. O discurso: Estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes Editores, [1983] 2015.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, [1975] 2009.

PRECIADO, Paul. B. Manifesto contrassexual (Tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro). São Paulo: N-1 Edições, 2014.

ROBIN, Régine. A memória saturada. Campinas: Editora da Unicamp, 2016.

VELOSO, Caetano. Dom de Iludir. In: VELOSO, C. Totalmente Demais [CD]. Rio de Janeiro: Philips Records, 1986.

 

 

Data de Recebimento: 03/07/2022
Data de Aprovação: 22/08/2022


1  Disponível em https://instagram.com/acervobajuba?utm_medium=copy_link, acesso em 28/12/2021. As figuras 4, 5 e 6 estão disponíveis nessa página.

2  Esta sigla representa uma das formas de agrupar um grupo diverso e heterogêneo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Pessoas queers, Intersexuais, Assexuais e outras formas de identificacações.

3  Disponível em https://instagram.com/archivotrans?utm_medium=copy_link, acesso em 28/12/2021. As figuras 1, 2 e 3 estão disponíveis nesse link.

4  Para mais sobre Anyka, https://projetocolabora.com.br/ods5/morre-anyky-lima-referencia-de-luta-e-acolhimento-para-a-comunidade-trans/, acesso em 10/12/2021.






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